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Vol. 30. Núm. 2.
Páginas 51-53 (mayo - agosto 2015)
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Vol. 30. Núm. 2.
Páginas 51-53 (mayo - agosto 2015)
Editorial
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Abortamento: reflexões
Abortion: reflections
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Affonso Renato Meiraa,b,c
a Sociedade Brasileira de Reprodução Humana, São Paulo, SP, Brasil
b Academia de Medicina de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
c Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil
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Por abortamento se compreende o evento biológico da expulsão do organismo da mulher ou do animal fêmea, do feto morto produto denominado aborto. Portanto, não se confunda aborto produto do evento da sua expulsão do organismo da mulher, como ocorre no Código Penal brasileiro,1 que pune literalmente o aborto, porém com a finalidade de punir quem produz o abortamento.

Entre tantos eventos que preocupam os que cuidam da saúde, o abortamento se salienta pela dificuldade de apresentar medidas cabíveis para minimizar seus efeitos na população. A problemática do abortamento apresenta uma dificuldade de promover diálogos, uma vez que existem opiniões contraditórias.

A primeira contradição paira sobre quando o ser biológico, produto da fecundação de um casal, deve ser considerado pessoa, preencher as condições físicas, psíquicas e sociais que o caracterizam como tal.

Quando se trata da evolução de técnicas baseadas em conhecimentos das ciências da saúde, se encontra um natural envolvimento com aspectos da vida das pessoas. Na discussão sobre a vida, principalmente quando se cuida de sua preservação, a razão se confronta com a emoção e a fé. As reflexões bioéticas têm seu papel a ser desempenhado, exatamente nessa confrontação, procurar estabelecer qual deve ser o rumo a ser tomado e respeitar o modernismo dos avanços, mas não olvidar o conservadorismo dos valores tradicionais.

As posições opostas, representadas de um lado pelos que defendem o princípio da autonomia e do outro pelos que argumentam com a heteronomia, impedem a possibilidade de um diálogo capaz de levar, se não ao consenso, a uma situação conciliatória.2

Para fazer se uma análise que permita reflexões é necessário colocar de pronto alguns aspectos. Assim, é preciso relembrar que pelos séculos, desde que se tem notícia de que o homem vive na terra, a vida tem sua origem considerada como proveniente do sopro divino de deuses. Deuses de diferentes rituais, desde os místicos, característicos dos povos ágrafos, até os de pompa maior encontrada em tantas igrejas. Esses diversos rituais compreendem a doação de oferendas, que vão das preces às vidas. Deuses, porém, que sempre serviram para a explicação, de maneira cabal e dogmática, do que ocorre com o sobrenatural, exatamente sobre aquilo que os conhecimentos humanos não sabem e nem tem condições de fazer afirmativas categóricas.

Por mais que o saber da ciência traga novidades sobre desde quando o homem tem sua constituição atual, qual seu início, qual sua possível evolução a partir de outros animais, as perguntas sobre essas questões apresentam respostas que trazem sempre controvérsias. Aqueles que pensam racionalmente, baseados nos valores científicos, têm posições a respeito do homem e de sua presença que ao surgir produziram confrontos a partir de meados do século XIX. Recentes essas ideias, se comparadas com os tempos da humanidade. Têm a força da modernidade e a convicção dos mais letrados. É a razão que se antepõe à fé. São os cientistas de diferentes matizes a discutir com os crentes de todas as igrejas.

Na Bíblia Sagrada,3 no Antigo Testamento, naquele que é o livro primeiro do Pentateuco, o livro das origens, Gênesis, se lê: “No princípio criou Deus o céu e a terra”. Adiante se encontra no mesmo livro: “Disse também Deus: façamos o homem à nossa imagem e semelhança, o qual presida aos peixes do mar, às aves do céu, às bestas e a todos os répteis, que se movem sobre a terra, e domine em toda a terra. E criou Deus o homem à sua imagem: fê‐lo à imagem de Deus, e criou‐os macho e fêmea”.

De acordo com a teoria da evolução, proposta por Darwin, hoje considerada por muitos, como completamente verificada em todos os seus propósitos e significados, os seres vivos são aparentados uns com outros e tiveram um ancestral comum em alguma ocasião desde o aparecimento da vida. A origem da vida ocorreu há mais de mil milhões de anos. Apesar do aprofundamento dos estudos e das informações obtidas até hoje, não existe, ainda, uma evidência inequívoca que permita entender que essas teorias que traduzem a presença do homem nos diversos instantes de sua vida na terra sejam irrefutáveis. Como surgiu a primeira célula que permitiu a partir dela a evolução para se chegar ao homo sapiens?

A teoria da evolução teve sua aceitação nas elites das sociedades pelos letrados, pelos estudiosos, pelos cientistas, enquanto as camadas mais baixas continuavam a crer em diferentes deuses, estimulados por sacerdotes que, independentemente de suas crenças, tinham sempre um ou mais deuses para adorar.

Essa discussão é fundamental, pois ela embasa as opiniões a respeito ou não da sacralidade da vida. É a polêmica: se a maior importância está na sacralidade ou na qualidade da vida. Isso traz junto o que Engelhardt (1998)4 expõe quando diz que “a vida moral é vivida em duas dimensões”.

Não pretendo entrar no debate de se a ética secular ou se a ética canônica deva prevalecer. Aceito e acato as posições religiosas, mas ao lado de posições religiosas, principalmente da Igreja Católica, algumas incongruências se revelam entre aqueles que são contra a possibilidade de se liberar o abortamento mas, aceitam a realização de técnicas de reprodução assistida nas quais embriões são descartados. Convêm recordar que nos anos 1970 a ideia da fertilização assistida era recriminada como agora é a liberação ainda restrita do abortamento.

Quanto ao abortamento, de premissa existem duas posições éticas. Uma é a daqueles que negam a possibilidade da feitura do abortamento em qualquer condição, que é a posição defendida pelos pregadores da religião católica, que consideram que a vida de uma pessoa começa quando o espermatozoide encontra o óvulo. É a posição muito próxima de devotos de outras igrejas que consideram que a vida da pessoa se inicia em momentos diversos, mas antes do nascimento, como pregam os seguidores do judaísmo e do islamismo, ou de outras que consideram que a vida da pessoa surge quando do nascimento. Essas posições são produtos da fé que o ser humano tem nos dogmas de sua religião. Não cabe discuti‐las, mas sim respeitá‐las. Todavia, é preciso citar que Gafo, padre católico espanhol, em um de seus escritos afirma que a Bíblia não condena clara ou explicitamente o abortamento.2

Outra posição é da aceitação da feitura do abortamento, seja com restrições, seja liberado. Essa, sem dúvida, é atualmente a posição majoritária em todo o mundo. O abortamento, se feito em razão de uma justificativa aceitável, não sofre qualquer tipo de sanção por parte da sociedade. As variações ocorrem no tipo de justificativas, que vão até exigências rigorosas que quase impedem a sua feitura, como é o caso da legislação brasileira.1

Entre as justificativas, as que repercutem com maior intensidade são as dos chamados abortamentos terapêuticos, ou seja, feitos para salvar a vida da gestante, e os abortamentos eugênicos, feitos quando o feto apresenta anomalias. Essas justificativas encontram amparo na defesa da saúde da mulher.

De acordo com o Código Penal brasileiro,1 o abortamento constitui um crime do qual não são punidos o médico nem a mulher, quando essa consente que se faça o abortamento, nos casos em que a gestação é produto de estupro. Estupro é o crime cuja tipificação é a feitura da conjunção carnal mediante violência física ou grave ameaça, ou com menor de 14 anos, assim como com mulher possuidora de perturbação mental que a impeça de compreender os fatos.

A lei não prevê e nem sempre é discutido o que aqui denomino de “estupro sentimental”. Quando o homem, sem usar da violência física ou da grave ameaça, consegue por meio de promessas e juras de amor manter uma relação sexual com mulher que depois de comprovada a gravidez é abandonada. É diferente da fraude, porque em muitas ocasiões, antes da gravidez da mulher, o homem não tinha a intenção de abandonar a parceira, sequer agia sem o consentimento da mulher. Abandona em razão de não querer assumir a paternidade, ao contrário da fraude, quando a intenção do abandono é desde pronto o objetivo do homem. A discutir o fato da permissão para o ato, que, entretanto, se assemelha ao não punido quando a mulher é incapaz de entender a relação. Não entende o fato quando é incapaz intelectualmente ou quando é menor de 14 anos. Não entende o fato quando é enganada.

Também não é punida a feitura do abortamento quando não houver outro meio de salvar a vida da gestante. Existe uma impunidade estabelecida para a mulher e para o médico, nessas condições, para um crime que continua a constar do código. O nascimento de crianças anencéfalas tem trazido à discussão a possibilidade de que nesses casos a gravidez possa ser interrompida.5 Os conhecimentos da medicina fetal, hoje, permitem que um feto venha a ser operado, como permitem conhecer uma anencefalia em um feto. A evolução dos conhecimentos científicos evidentemente não é acompanhada pelas modificações na legislação. Para isso acontecer são necessárias decisões corajosas que produzem debates. Para a discussão é necessário trazer à luz o pensamento daqueles que, mesmos ligados aos postulados religiosos, compreendem que esses posicionamentos devem mudar.

Em todas as outras ocasiões que não as estabelecidas pela legislação, o abortamento no Brasil é feito na sombra. Grupos sociais, entre os quais são incluídos médicos, reivindicam uma amplitude na gama de justificativas para a feitura do abortamento, principalmente quando se verifica a presença de fetos portadores de anormalidades, o que os levaria a uma sobrevida, após o nascimento, sofrida e pouco duradoura. Essa última colocação exemplifica bem a diferença que se faz sentir entre os que consideram a vida sagrada e aqueles que julgam mais importante saber da qualidade da vida. Esse é o dilema fundamental nessa questão. Ainda que minoritários, os que defendem uma posição contrária à liberação do abortamento têm a força das igrejas e dos dogmas divino.

Com modernos procedimentos da prática da fecundação artificial já se procede à escolha de embriões saudáveis a serem fecundados e os não saudáveis são eliminados. Não se trata de uma incongruência aceitar esse procedimento e se posicionar contra o abortamento? Esses fatos levam a que os dados sobre a feitura de abortamentos sejam desconhecidos em virtude da ilegalidade de praticá‐lo. Todavia, por meio de levantamentos feitos de história de gestações é possível estimar que aproximadamente um terço das mulheres férteis e com vida marital sofre um abortamento em sua vida. A metade desses abortamentos é provocada de maneira quase sempre precária. Precariedade nas condições de sanidade na feitura do ato cirúrgico e precariedade no acompanhamento psicológico da mulher que se propõe a ele se submeter.

O Conselho Federal de Medicina,6 ao se pronunciar sobre a reforma do Código Penal brasileiro, recomenda que não se puna como crime o abortamento em mulheres com gestação de até 12 semanas, como ocorre há mais de meio século em inúmeros outros países. A liberação do abortamento, tendo como razão para a sua feitura o desejo da mulher ou a defesa de sua saúde, com consentimento ou não de seu companheiro, seja formal ou fortuito, e independente de uma justificativa que não seja a que ela estabelece para si própria, encontra suporte na autonomia que todos os seres humanos, responsáveis e competentes, têm e têm o direito de exercê‐la.

A autonomia inclui a decisão própria, o direito à liberdade, à privacidade, à escolha pessoal e a possibilidade de seguir seu próprio desejo e escolher sua própria conduta. Essa autonomia se limita quando esbarra na autonomia de outro ser humano e esse aspecto é levantado pelos que negam a possibilidade da feitura do abortamento, pois o feto, desde momento da fecundação, se constitui, na compreensão desse grupo, em outro ser humano. E se volta ao dilema sobre se a vida é sagrada e de que quando essa condição deve prevalecer, na concepção ou no nascimento.

Essa atitude de aceitar a escolha e o desejo da mulher grávida, desde que seja responsável e que tenha sido claramente informada sobre todas as consequências de seu ato, se reforça se forem obedecidos os ditames da beneficência e da justiça. Sem dúvida, feito fora das sombras da ilegalidade, como uma atitude clara e transparente, o abortamento não só obedecerá a normas científicas muito mais adequadas como também o impacto de culpa, da realização oculta, estará superado. Portanto, não só se evitará um mal maior como se estará agindo em condições muito melhores para o bem da mulher. Por outro lado é justa, pois universalizará as condições, para a feitura desse ato, hoje discriminatório, vez que é geralmente feito em condições inadequadas e com pessoal que se constitui em comparsas na violação da lei.

A permissão de se fazer um abortamento por solicitação de uma mulher grávida não obrigará a sua feitura, mas somente permitirá às que assim o desejarem a possibilidade de tomar essa atitude. A mulher, responsável, consciente e claramente informada dos riscos a que submete ao fazer um abortamento, decidirá de maneira clara e transparente. Médico algum terá a obrigação de fazê‐lo, se assim não o desejar.

Referências
[1]
Código Penal: Constituição Federal e legislação complementar.
Parte especial. Título I. Dos crimes contra a pessoa. Capítulo I. Dos crimes contra a vida. Artigos 124,125,126, 128.
16a ed., Editora Saraiva, (2010), pp. 79
[2]
A.R. Meira.
Folhas soltas: bioética e meditações.
Grupo Editorial Scortecci, (2007),
[3]
Bíblia Sagrada.
Antigo Testamento. Pentateuco. Gênesis I. As origens.
Editora Paulus, (2002),
[4]
H.T. Engelhard.
Fundamentos da bioética.
Edições Loyola, (1998),
[5]
Conselho Federal de Medicina.
Resolução 1989. Dispõe sobre o diagnóstico de anencefalia para a antecipação terapêutica do parto e dá outras providências.
Diário Oficial da União. Seção I, (2012), pp. 308 e 309
[6]
Conselho Federal de Medicina [homepage na internet]. Conselhos de Medicina se posicionam a favor da autonomia da mulher em caso de interrupção da gestação. Mar 2013. [acesso 26 jun 2015]. Disponível em: http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23661
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