Apesar de décadas de experiência epidemiológica e clínica com sífilis materna e congênita, ambas continuam a ser importantes problemas de saúde pública no Brasil e no resto das Américas. Em 2010, com o apoio da Organização Mundial de Saúde (OMS), os Estados‐Membros da Organização Pan‐Americana da Saúde (Opas) aprovaram a Estratégia e Plano de Ação para a Eliminação da Transmissão Materno‐Infantil do HIV e da Sífilis Congênita, com o objetivo de reduzir a incidência de sífilis congênita para ≤0,5 casos para 1.000 nascidos vivos em 2015.1 Em 2014, 17.400 casos (1,3/1.000 nascidos vivos) de sífilis congênita foram notificados nas Américas e 17 países podem ter eliminado a transmissão materno‐infantil da sífilis.2 Apesar de alguns progressos, o Brasil não cumpriu a meta de eliminação da sífilis congênita, mas, ao contrário, a epidemia continua e resulta em mortalidade neonatal e fetal significativa. Em 2010, 6.916 casos (2,27/1.000 nascidos vivos) de sífilis congênita foram notificados ao Ministério da Saúde e à Opas, enquanto que em 2013 o número de casos aumentou para 13.705 (4,70/1.000 nascidos vivos) antes de diminuir para 6.793 casos em 2014.2,3
A sífilis congênita é uma doença evitável e deve haver tolerância zero para a sua ocorrência, pois até mesmo um caso representa uma falha do sistema público de saúde. Os profissionais de saúde sabem o que deve ser feito para prevenir a sífilis congênita e suas complicações, que incluem parto de natimorto, prematuridade, hidropsia fetal não imune e mortalidade neonatal.4 A OMS estima que, globalmente, 1,5 a 1,85 milhão de mulheres grávidas estão infectadas com sífilis anualmente e metade delas tem filhos com resultados adversos.4 Nos Estados Unidos, de 1999 a 2013, a mortalidade neonatal secundária à sífilis congênita foi de 12/1.000 nascidos vivos, com uma taxa de letalidade de 6,5%.5 Das 418 mortes registradas, 82% foram natimortos e 89% das mães tinham sífilis não tratada ou tratada inadequadamente. Além disso, menos cuidados pré‐natais foram associados com um aumento do risco de morte e, importante, 59% das mortes ocorreram por volta de 31 semanas de gestação.
É evidente que as mulheres grávidas devem ter acesso ao pré‐natal precoce e ser testadas sorologicamente para sífilis na primeira consulta pré‐natal e, em áreas de alto risco, novamente de 28 a 32 semanas durante a gestação e no parto.6 De acordo com a Opas, 94% das mulheres grávidas nas Américas comparecem a pelo menos uma consulta de pré‐natal durante a gravidez e 80% são testadas para sífilis em algum momento durante a gravidez.2 No Brasil, Domingues et al.7 entrevistaram 23.894 mulheres no pós‐parto e relataram que 98,7% tinham tido pelo menos uma consulta pré‐natal, 89% tinham documentação de pelo menos um teste de sífilis registrado nas fichas de pré‐natal, mas apenas um adicional de 41% tinha sido submetido a um segundo teste. De 2011 a 2014, a Opas relatou um aumento de 81% para 86% em mulheres infectadas com sífilis que tinham documentação de tratamento adequado, embora ainda estivesse abaixo de sua meta de 95%.2 Portanto, não é surpreendente que a sífilis congênita continue a ser um grande problema no Brasil e no resto das Américas.
Além da identificação de mulheres grávidas infectadas, o tratamento oportuno é obrigatório para prevenção da sífilis congênita.8,9 Em locais onde o acompanhamento é incerto ou difícil, o teste rápido de sífilis point‐of‐care deve ser feito de modo a que as mulheres sejam tratadas no local e sem demora. Além disso, o teste sorológico e o tratamento presuntivo do parceiro sexual são essenciais para evitar a reinfecção e a transmissão para o feto.10 No Brasil, estima‐se que apenas 12% dos parceiros sexuais recebam tratamento para a sífilis,11 certamente uma falha da infraestrutura de saúde pública, já que o rastreamento de contato e tratamento é o principal método de controle da transmissão da sífilis nas comunidades.
Penicilina G é o único agente antimicrobiano eficaz conhecido para prevenir a transmissão vertical da sífilis e tratamento da infecção fetal.6 As mulheres grávidas devem receber o esquema de tratamento com penicilina adequado para o estágio da infecção e se qualquer dose da terapia não for administrada para a sífilis latente, o esquema completo de tratamento deve ser repetido. As mulheres grávidas que têm um histórico de alergia à penicilina devem ser dessensibilizadas e tratadas com penicilina.
Infelizmente, o diagnóstico de sífilis congênita continua a ser um problema devido à incapacidade de se detectar ou cultivar Treponema pallidum em amostras clínicas. Assim, é necessário depender de exames laboratoriais que detectam anticorpos IgG maternos em testes não treponêmicos e treponêmicos transmitidos por via transplacentária para o feto. No entanto, o uso do teste de immunoblotting para IgM, ensaios de PCR e teste de infecciosidade em coelhos (RIT – a inoculação de fluido do paciente infectado em testículos de coelho com resultante infecção sifilítica do coelho) em laboratórios de pesquisa permitiu a análise racional baseada em evidência para o manejo de crianças nascidas de mães com sorologia reativa para sífilis.12–15
Recém‐nascidos com sífilis comprovada ou muito provável, isto é, aqueles que têm um exame físico anormal, titulação sorológica não treponêmica quantitativa no soro que é quatro vezes ou superior à titulação da mãe, microscopia de campo escuro positiva ou PCR de lesões ou fluidos corporais/tecidos/placenta,16 são prontamente diagnosticados e devem receber 10 dias de tratamento intravenoso com penicilina G cristalina aquosa ou tratamento intramuscular com penicilina G procaína. Virtualmente todas essas crianças têm um teste de immunoblotting para IgM positivo, e, pelo menos, 50% deles têm espiroquetas detectadas no líquido cefalorraquidiano por meio de RIT.17
A criança com boa aparência, com um exame físico normal e nascido de uma mãe com sífilis não tratada ou inadequadamente tratada (<4 semanas antes do parto ou qualquer forma de tratamento sem penicilina G) continua a ser um dilema diagnóstico. No entanto, enquanto até 20% dessas crianças têm um teste de immunoblotting para IgM positivo, indicativo de infecção intrauterina, quase nenhuma apresentará invasão do sistema nervoso central pelo T. pallidum se a sua avaliação completa (hemograma completo e plaquetas, radiografias de ossos longos e exame do líquido cefalorraquidiano [LCR]) for normal.17 Essas crianças podem receber uma única injeção intramuscular de penicilina benzatina (50.000U/kg).6 Finalmente, as crianças normais nascidas de mães adequadamente tratadas durante a gravidez e com duração superior a quatro semanas antes do parto devem ser considerados como um “contato próximo” e receber uma única injeção intramuscular de penicilina benzatina, embora nenhuma avaliação seja necessária ou recomendada.6 Da mesma forma, crianças normais que têm um resultado não reativo de teste não treponêmico no soro, mas são filhas de mães com sífilis não tratada ou inadequadamente tratada, podem receber uma dose única intramuscular de penicilina benzatina sem avaliação – um cenário cada vez mais comum com o uso de testes treponêmicos, tais como imunoensaios enzimáticos ou imunoensaios de quimioluminescência para detecção de sífilis (triagem por sequência reversa).18
Como a sífilis pode ser um cofator para a infecção pelo HIV, todas as mulheres e seu(s) parceiro(s) sexual(s) que têm sífilis devem ser testadas para a infecção pelo HIV. Crianças nascidas de mães coinfectadas com sífilis e HIV não requerem diferentes formas de avaliação, terapia ou acompanhamento.
Todas as crianças com testes não treponêmicos reativos devem receber exames cuidadosos de acompanhamento e testes sorológicos (isto é, um teste não treponêmico) a cada 2‐3 meses até que o teste se torne não reativo. Um teste treponêmico reativo no soro depois dos 18 meses de idade, quando os anticorpos maternos já desapareceram, confirma o diagnóstico de sífilis congênita, embora até 20% das crianças infectadas possam apresentar soroconversão completa para testes sorológicos de sífilis não reativos.
Recentemente, uma escassez de penicilina no Brasil e em outras partes do mundo representou uma grave ameaça para a saúde de fetos e filhos de mães com sífilis. Se os preparados de penicilina não estiverem disponíveis, um tratamento de 10 dias com ceftriaxona pode ser considerado com acompanhamento clínico e sorológico cuidadoso, incluindo a repetição da avaliação do LCR.6,19 São necessários esforços de pesquisas para avaliar se outros antibióticos, tais como a amoxicilina, podem tratar a doença do sistema nervoso central de maneira efetiva.
A falta de identificação oportuna e de tratamento adequado das crianças infectadas pode ter consequências profundas na vida adulta. Manifestações da sífilis congênita tardia envolvem o sistema nervoso central, ossos e articulações, dentes, olhos e pele e incluem a tríade de Hutchinson (ceratite intersticial, surdez por lesão do 8°nervo craniano, dentes de Hutchinson), em homenagem a Sir Jonathan Hutchinson (1828‐1913), da Inglaterra.
Pesquisas e esforços humanitários devem continuar a fim de controlar, tratar e, eventualmente, eliminar a sífilis congênita em todo o mundo. O impacto na saúde pública da sífilis na gravidez e na infância continua a ser significante e a eliminação da transmissão materno‐infantil da sífilis somente irá se tornar uma realidade nas Américas por meio de serviços de saúde pré‐natal de alta qualidade.
FinanciamentoO estudo não recebeu financiamento.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
O autor PJS agradece a Michael V. Norgard, PhD, por sua excelente orientação e mentoria, a George H. McCracken, MD, por prever que a sífilis congênita era uma área que necessitava de maiores investigações, e a George D. Wendel, MD, por seu constante apoio enquanto compartilhava seu vasto conhecimento sobre sífilis materna.