Devido à sua morbilidade e mortalidade consideráveis, a cistite rádica hemorrágica é uma importante complicação da radioterapia pélvica, tendo os atuais tratamentos conservadores uma eficácia muito limitada. O oxigénio hiperbárico tem vindo a demonstrar eficácia no tratamento de lesões induzidas por radiação, como a cistite rádica. Pretende‐se analisar a eficácia e o perfil de segurança da oxigenoterapia hiperbárica na cistite rádica hemorrágica refratária.
Material e métodosAnálise retrospetiva dos registos clínicos de 176 doentes com cistite rádica hemorrágica refratária tratados com oxigénio hiperbárico no nosso centro. A evolução da hematúria macroscópica foi o parâmetro utilizado para analisar a eficácia do tratamento.
ResultadosEm 23,9% dos doentes constataram‐se outras lesões rádicas concomitantes, como proctite ou enterite rádicas. Após uma média de 37 sessões, 89,8% dos doentes apresentou resolução da hematúria. Foram identificados efeitos adversos em 1,7% dos doentes.
ConclusõesA terapêutica com oxigénio hiperbárico foi segura e eficaz no tratamento da cistite rádica hemorrágica. A presença de lesões rádicas concomitantes foi relativamente frequente, o que torna o oxigénio hiperbárico uma excelente escolha como terapêutica inicial nesses doentes.
Due to considerable morbidity and mortality rates, radiation‐induced hemorrhagic cystitis is an important complication of pelvic irradiation. The available conservative treatment techniques show limited results. Hyperbaric oxygen has shown to be effective in the treatment of radiation‐induced lesions, including radiation cystitis. Our aim was to analyze the effectiveness and safety of hyperbaric oxygen therapy for refractory radiation‐induced hemorrhagic cystitis.
Materials and MethodsClinical records of 176 patients with refractory radiation‐induced hemorrhagic cystitis treated at our centre were retrospectively analyzed. The evolution of macroscopic hematuria was the main therapeutic outcome analyzed.
Results23,9% of patients showed other radiation‐induced soft tissue lesions. After an average of 37 sessions of hyperbaric oxygen, 89,8% of patients showed resolution of hematuria. Adverse events were reported in 1,7% of patients.
ConclusionsHyperbaric oxygen was a safe and effective therapy for radiation‐induced hemorrhagic cystitis. Concomitant radiation‐induced soft tissue lesions were relatively frequent, which makes hyperbaric oxygen an excellent choice as first line treatment in those patients.
A radioterapia constitui uma opção terapêutica na abordagem das neoplasias da região pélvica1–7. Apesar dos mais recentes desenvolvimentos técnicos, o desenvolvimento de lesões colaterais dos tecidos envolventes continua a ser relativamente frequente8–10. Apresentando uma morbilidade e mortalidade consideráveis, a cistite rádica hemorrágica constitui um dos efeitos adversos mais importantes da irradiação da região pélvica11,12. A radiação ionizante compromete a proliferação celular, causando endarterite obliterante progressiva e dando origem a tecidos hipocelulares, hipovasculares e hipóxicos, o que conduz ao desenvolvimento de um quadro de cistite, com edema, ulceração, diminuição da regeneração tecidual e fibrose da mucosa vesical10,13,14. Apesar de a utilização de técnicas conservadoras estar atualmente indicada como terapêutica de primeira linha na cistite hemorrágica, a sua reduzida eficácia a longo prazo torna frequente a necessidade de recorrer a técnicas mais invasivas para controlar a hematúria12,15–17.
Pelo aumento da oxigenação tecidual, o oxigénio hiperbárico promove a angiogénese, a atividade leucocitária, a proliferação fibroblástica e a deposição de colagénio, motivos pelos quais tem sido utilizado no tratamento de lesões hipóxicas e cicatriciais, aumentando consideravelmente a regeneração tecidual10,13,18–22. Embora se tenha vindo a verificar um aumento da evidência científica a favor da utilização de oxigénio hiperbárico como tratamento da cistite rádica hemorrágica, o facto de os estudos publicados se basearem em amostras de reduzida dimensão não permite obter conclusões significativas acerca da sua eficácia global21–27.
O presente estudo pretende avaliar, de forma retrospetiva, a eficácia e a segurança da utilização de oxigénio hiperbárico no tratamento da cistite rádica hemorrágica refratária.
Material e métodosFoi efetuada uma análise retrospetiva dos registos clínicos dos doentes tratados no nosso centro, de agosto de 1994 a setembro de 2009, em conformidade com os princípios da Declaração de Helsínquia e após aprovação formal pela Comissão de Ética da instituição. Tratou‐se de um estudo analítico observacional, com uma amostra não aleatória de conveniência, constituída por doentes submetidos a oxigénio hiperbárico para tratamento de cistite rádica hemorrágica.
Os doentes foram encaminhados para tratamento no nosso centro por serviços de urologia de diversos hospitais a nível nacional, com o diagnóstico de cistite rádica e após verificação da ausência de eficácia de pelo menos uma terapêutica conservadora adequada. A todos os doentes foi efetuada uma avaliação clínica específica, de forma a excluir a existência de fatores que constituíssem contraindicação para o tratamento em câmara hiperbárica.
Após a consulta inicial, foi prescrito um conjunto de 20 sessões de 90 minutos de oxigénio a 100%, a uma pressão de 2,5 atmosferas absolutas, numa câmara multilugar de categoria um, uma vez por dia, 5 dias por semana, após as quais foi efetuada uma consulta de seguimento, onde foi avaliada a indicação para manutenção ou suspensão do tratamento (mais 10 ou 20 sessões). Após o término do mesmo, os doentes foram referenciados de volta para os hospitais de origem, onde foi efetuado o seguimento subsequente. A avaliação subsequente consistiu na recolha de informação clínica periódica, de acordo com um questionário padronizado de evolução da hematúria e dos restantes sintomas de cistite rádica. Perante a evidência de recidiva, foi efetuada nova avaliação da etiologia da hematúria, de forma a excluir outras causas para a mesma e a avaliar o potencial benefício de retomar a terapêutica com oxigénio hiperbárico.
As variáveis analisadas foram sexo, idade, tipo de neoplasia primária, dose total de radiação, patologias rádicas concomitantes (proctite rádica ou enterite rádica), tempo decorrido desde a radioterapia até ao aparecimento da hematúria, necessidade de transfusões sanguíneas, tempo decorrido desde a radioterapia até à instituição da terapêutica com oxigénio hiperbárico, tempo decorrido desde o aparecimento da hematúria até à instituição da terapêutica com oxigénio hiperbárico, número de sessões, efeitos adversos, recorrência dos sintomas e período de seguimento.
Dos cerca de 420 doentes tratados no período descrito, 176 (41,9%) cumpriram os critérios de inclusão exigidos, pelo que foram incluídos no estudo. Os doentes em questão fazem parte da mesma amostra analisada num trabalho mais vasto publicado recentemente28.
A eficácia clínica do tratamento com oxigénio hiperbárico foi analisada através da evolução da hematúria macroscópica, categorizada em «Resolução», incluindo resolução completa (ausência de hematúria macroscópica) e resolução parcial (diminuição da frequência ou gravidade da hematúria macroscópica), ou «Sem resolução», incluindo manutenção (ausência de variação da frequência e da gravidade da hematúria) e agravamento (aumento da frequência ou da gravidade da hematúria).
A avaliação estatística foi efetuada com recurso ao Statistical Package for Social Sciences.
ResultadosCaracterização da amostraAs tabelas 1 e 2 apresentam a caracterização da amostra em estudo. A distribuição por géneros foi de 111 doentes do sexo feminino e de 65 do sexo masculino, com uma média de idades de 62 anos (dos 15 aos 85 anos). Relativamente ao motivo da irradiação pélvica, as neoplasias do colo do útero e da próstata foram as mais frequentes (50,6 e 31,8%, respetivamente).
Caracterização da amostra (variáveis qualitativas)
% (n) | |
---|---|
Sexo | |
Feminino | 63,1 (111) |
Masculino | 36,9 (65) |
Neoplasia | |
Colo do útero | 50,6 (89) |
Próstata | 31,8 (56) |
Endométrio | 9,7 (17) |
Bexiga | 4 (7) |
Reto | 1,7 (3) |
Sarcoma Ewing | 1,1 (2) |
Ovário | 0,6 (1) |
Vulva | 0,6 (1) |
Patologias rádicas concomitantes | |
Sim | 23,9 (42) |
Não | 76,1 (134) |
Necessidade de transfusões | |
Sim | 19,3 (34) |
Não | 80,7 (142) |
Efeitos adversos | |
Sim | 1,7 (3) |
Não | 98,3 (173) |
%: valor relativo; n: valor absoluto.
Caracterização da amostra (variáveis quantitativas)
Média (min‐máx) | |
---|---|
Idade (anos) | 61,91 (15‐85) |
Dose total de radiação (Gy) | 56,27 (40‐71) |
Tempo radioterapia‐hematúria (meses) | 55,72 (0‐313) |
Tempo hematúria‐OHB (meses) | 13,69 (0‐168) |
Tempo radioterapia‐OHB (meses) | 69,41 (5‐326) |
Número de sessões OHB | 36,53 (7‐179) |
Período de seguimento (meses) | 12 (0‐108) |
min: valor mínimo; máx: valor máximo.
Desde o início da radioterapia até ao aparecimento de hematúria decorreram, em média, 56 meses, enquanto desde o início da radioterapia até ao início da oxigenoterapia hiperbárica decorreram, em média, 69 meses. Desde o aparecimento de hematúria até à instituição de terapêutica com oxigénio hiperbárico decorreram, em média, 13,69 meses.
Com uma dose média de radiação total administrada de 56Gy, cerca de um quarto dos doentes (23,9%) desenvolveu, para além de cistite rádica hemorrágica, outras patologias derivadas da irradiação pélvica, como a proctite ou a enterite rádica. Quanto à gravidade da hematúria macroscópica, aproximadamente um quinto dos doentes (19,3%) apresentava hematúria com necessidade de terapêutica transfusional.
Os doentes foram submetidos a uma média de 37 sessões de oxigénio hiperbárico, tendo sido registados efeitos adversos, nomeadamente barotraumatismos do ouvido, em apenas 3 doentes (1,7%). O período de seguimento após o término da oxigenoterapia hiperbárica foi de, em média, 12 meses.
Avaliação da taxa de resposta ao tratamentoA tabela 3 discrimina a resposta ao tratamento com oxigénio hiperbárico, avaliada através da evolução da hematúria macroscópica. No final da terapêutica com oxigénio hiperbárico, 89,8% dos doentes apresentava resolução da hematúria (67% com resolução completa e 22,7% com resolução parcial), face a 10,2% dos doentes que se apresentava sem resolução da mesma (9,1% com manutenção e 1,1% com agravamento). A recorrência da hematúria ocorreu em 24 doentes (13,6% da amostra).
DiscussãoA ação da radiação ionizante nos tecidos provoca hipoxia e fibrose através da limitação da proliferação celular e vascular, o que motiva a sua utilização no tratamento de lesões neoplásicas. No entanto, a incidência de radiação ionizante nos tecidos perineoplásicos tem como consequência o aparecimento lesões colaterais a curto e longo prazo8,10,13. Por aumentar a oxigenação tecidual, a angiogénese e a proliferação fibroblástica, o oxigénio hiperbárico tem obtido bons resultados no tratamento de lesões induzidas por radiação13,20.
A cistite rádica hemorrágica é, a longo prazo, um dos efeitos adversos mais importantes da radioterapia da região pélvica11. Embora diversas técnicas conservadoras sejam utilizadas como terapêutica na cistite rádica hemorrágica, a eficácia das mesmas tem sido limitada12. Alguns estudos sobre tratamento de cistite rádica com oxigénio hiperbárico têm vindo a apresentar resultados favoráveis23–27, pelo que, segundo a Sociedade de Medicina Subaquática e Hiperbárica, a cistite rádica constitui atualmente uma indicação formal para realização de oxigenoterapia hiperbárica13.
Uma vez que mais de metade da nossa amostra foi constituída por doentes do sexo feminino, os principais motivos para a instituição de terapêutica com radiação ionizante foram as neoplasias do aparelho genital feminino (colo do útero, endométrio, ovário e vulva), seguidas das neoplasias da próstata.
Para além da cistite hemorrágica, cerca de um quarto dos doentes analisados apresentou outros sintomas decorrentes da irradiação pélvica, como proctite ou enterite rádica. Uma vez que tem sido descrita a eficácia do oxigénio hiperbárico no tratamento de outros tipos de lesões induzidas por radiação, consideramos que doentes com cistite rádica hemorrágica que apresentem outras patologias rádicas concomitantes têm benefício acrescido em iniciar tratamento com oxigénio hiperbárico13,21.
O parâmetro utilizado para analisar a gravidade da hematúria macroscópica antes da oxigenoterapia hiperbárica foi a necessidade de suporte transfusional. Cerca de um quinto dos indivíduos analisados necessitou de transfusões de concentrado eritrocitário antes de iniciar a terapêutica com oxigénio hiperbárico, o que demonstra a gravidade dos quadros clínicos em questão e a importância de iniciar um tratamento eficaz.
De acordo com uma revisão sistemática da literatura realizada por Feldmeier e Hampson, em 2002 existiam 17 publicações de estudos de caso‐controlo relativos ao tratamento de cistite rádica hemorrágica com oxigénio hiperbárico29. De um total de 190 doentes tratados, 145 (76,3%) apresentou resolução da hematúria macroscópica após a terapêutica com oxigénio hiperbárico. Na nossa amostra, cerca de 90% dos doentes submetidos a oxigenoterapia hiperbárica apresentou cura ou melhoria da hematúria macroscópica após o tratamento. A diferença na taxa de resolução da hematúria entre o nosso estudo e a literatura deve‐se, provavelmente, a diferenças nos doentes que incluem a amostra em causa27,29.
Para uma média de 12 meses de seguimento por doente tratado (0‐108 meses), a taxa de recorrência foi inferior a 14%. No entanto, uma vez que uma percentagem considerável dos doentes tratados no nosso centro foi encaminhada de diferentes hospitais por todo o território nacional, nem todos os doentes tratados foram seguidos por um período adequado, motivo pelo qual se optou por não efetuar a análise estatística da taxa de recorrência da hematúria.
De um total de 176 doentes tratados, apenas 3 apresentaram efeitos adversos, todos de gravidade ligeira e sem consequências a longo prazo. Assim, em comparação com as restantes técnicas conservadoras utilizadas no tratamento da cistite rádica hemorrágica, o oxigénio hiperbárico apresenta‐se como uma opção bastante segura e com um baixo risco para o doente12.
Para alguns doentes, não foi possível obter informação detalhada sobre o tipo histológico da neoplasia de base, a dose total de radiação, os exames complementares de diagnóstico efetuados e as terapêuticas instituídas antes do início da oxigenoterapia hiperbárica, o número de unidades transfundidas e o número e gravidade de cada um dos episódios de hematúria macroscópica. Constituindo a principal limitação do nosso estudo, esta falta de dados prende‐se com o facto de os indivíduos tratados no nosso centro serem encaminhados de diversos centros por todo o país.
ConclusõesCom uma elevada eficácia terapêutica e uma reduzida taxa de efeitos adversos, a oxigenoterapia hiperbárica impõe‐se como técnica de eleição no tratamento da cistite rádica hemorrágica, principalmente nos doentes com sintomas refratários às restantes terapêuticas conservadoras. A presença de outras lesões rádicas, concomitantemente à cistite rádica hemorrágica, coloca a oxigenoterapia hiperbárica num lugar de destaque como terapêutica inicial destes doentes.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.
O presente estudo não teria sido possível sem a colaboração de todos os elementos do Centro de Medicina Hiperbárica da Marinha Portuguesa e sem o apoio da Direção de Saúde da Marinha Portuguesa, da Escola Naval e da Faculdade de Medicina de Lisboa, nomeadamente da Mestre Sónia Barroso, do Gabinete de Apoio à Investigação Científica.