A cirurgia endovascular tem atualmente um papel preponderante no tratamento de doentes com isquemia crítica (IC) por doença do sector tíbio‐peroneal, reduzindo substancialmente o número de procedimentos de revascularização aberta.
No entanto, quando não é possível a abordagem endovascular ou na sua falência e existindo um padrão apropriado, podemos considerar a cirurgia de bypass distal ou ultradistal como uma alternativa válida na salvação do membro em doentes selecionados?
Apresentam‐se neste artigo os casos de 2 doentes com isquemia crítica em que, pela ineficácia ou falência do tratamento endovascular inicial, foi efetuada uma cirurgia de revascularização ultradistal com salvação do membro.
Endovascular interventions currently play a major role in the treatment of critical limb ischemia due to atherosclerotic disease of the infrapopliteal arteries. They are responsible for reducing the numbers of open surgical revascularization procedures.
However, the question remains whether a surgical bypass to the pedal arteries should be considered as a valid option to avoid amputation, when an endovascular option is not feasible or has resulted in failure.
We present two cases of critical limb ischemia, in which a first attempt at revascularization by an endovascular procedure was unsuccessful. In both cases ultradistal bypasses to the pedal arteries resulted in limb salvage.
A isquemia crítica (IC) por doença oclusiva que envolve o sector tíbio‐peroneal, muito comum nos doentes diabéticos, apresenta dificuldades acrescidas na obtenção de revascularização convencional ou endovascular eficaz.
O padrão da doença oclusiva na diabetes cursa habitualmente com compromisso importante das artérias crurais, mas com permeabilidade mantida nas artérias do pé – a artéria pediosa e as artérias plantares.
Na década de 90 foram desenvolvidos procedimentos cirúrgicos convencionais de revascularização destas artérias que ficaram conhecidos como cirurgias de bypass ultradistal, com boas taxas de permeabilidade e de salvação de membro1–3.
A era endovascular revolucionou o tratamento da IC e a cirurgia endovascular é atualmente a primeira opção terapêutica para muitos autores4,5.
No sector crural permite a obtenção de revascularização eficaz de forma menos invasiva e obter fluxo direto no angiossoma que apresenta a lesão trófica6,7.
No entanto, a durabilidade destes procedimentos parece ser ainda inferior à da cirurgia convencional e frequentes reintervenções são necessárias para obter eficácia clínica semelhante8.
No tratamento contemporâneo da IC a estratégia de revascularização é individualizada a cada doente segundo o padrão de distribuição da doença oclusiva e a extensão das lesões tróficas. Frequentemente a cirurgia convencional e endovascular apresentam‐se como armas terapêuticas complementares, que podem ser utilizadas simultaneamente em procedimentos híbridos ou de forma diferida para assegurar permeabilidade secundária.
Os autores apresentam 2 casos de IC em que, pela ineficácia e pela falência do tratamento endovascular, foi efetuada revascularização ultradistal para a salvação do membro.
Casos clínicosCaso clínico 1Um doente do sexo masculino de 79 anos com diabetes não‐insulinotratada, hipertensão e tabagismo inativo, foi admitido por IC, por doença oclusiva de predomínio crural e necrose seca de D2 e D3 do pé direito.
A angiografia pré‐operatória mostrou: ausência de doença significativa dos sectores aorto‐ilíaco e fémoro‐poplíteo; artéria poplítea distal e tronco tíbio‐peroneal sem lesões; artéria tibial anterior permeável na origem, mas com oclusão extensa sem reabitação da artéria pediosa; artéria peroneal com oclusão extensa e sem reabitação distal; artéria tibial posterior permeável no segmento inicial com oclusão extensa e reabitação distal da artéria plantar externa e a arcada plantar.
O doente foi submetido a procedimento endovascular, sob sedo‐analgesia e por acesso femoral ipsilateral percutâneo, tendo sido efetuada a recanalização da artéria tibial posterior com fio‐guia seguida de angioplastia com balão (Cook® – 2×200+2,5×200+3×200), com recuperação da permeabilidade da artéria tibial posterior até à arcada plantar, sem reestenoses residuais relevantes e com recuperação de pulso tibial posterior. No mesmo procedimento foi realizada a desarticulação dos 2.° e 3.° dedos do pé direito (fig. 1).
O pós‐operatório imediato evoluiu com bom efeito de revascularização do pé, confirmando‐se fluxo trifásico na artéria tibial posterior no exame eco‐Doppler de controlo. Duas semanas após a cirurgia o doente referiu o reaparecimento de dor em repouso, que se associou ao início de má evolução cicatricial. Realizou‐se nova angiografia que mostrou a reoclusão da artéria tibial posterior em toda a sua extensão, persistindo a permeabilidade da artéria plantar externa com boa continuidade para a arcada plantar.
Atendendo à extensão da reobstrução, optou‐se por efetuar um bypass venoso poplítea distal‐plantar externa com veia grande safena (VGS) homolateral invertida e revisão da loca de amputação.
A evolução clínica foi favorável, tendo o doente alta no vigésimo dia de pós‐operatório sob anticoagulação oral. A ferida evoluiu para uma cicatrização completa ao fim de 2 meses e meio (fig. 2).
Atualmente, um ano e meio após a cirurgia, o doente mantém a cicatrização das lesões, ausência de dor, permeabilidade do enxerto e encontra‐se em programa de vigilância clínica e com eco‐Doppler.
Caso clínico 2Um doente de 70 anos com hipertensão arterial, fibrilhação auricular sob anticoagulação oral, tabagismo e etilismo recorreu ao serviço de urgência no contexto de uma gangrena húmida de D4 do pé direito com 3 semanas de evolução. Referia aparecimento de dor no pé há poucos meses, que agravava durante a noite e aliviava com o membro pendente.
Nos exames angio‐TC e angiografia observou‐se um padrão de doença multisegmentar com doença estenosante importante no sector iliofemoral, oclusão da artéria femoral superficial, reabitação da artéria poplítea supragenicular, oclusão das artérias tibial anterior e peroneal no seu terço inicial e permeabilidade da artéria tibial posterior até ao pé. A artéria plantar externa e a arcada plantar estavam permeáveis e aparentemente íntegras.
Por apresentar doença predominantemente proximal, o doente foi inicialmente submetido a kissing stenting da bifurcação ilíaca com stents 9×40mm expansíveis por balão associado a endarterectomia da bifurcação femoral e desarticulação de D4.
Por má evolução clínica, foi necessário proceder, uma semana depois, à desarticulação de D3 e D5 associada a bypass venoso fémoro‐poplíteo infragenicular com VGS invertida ipsilateral e a angioplastia com balão (3×80mm) da artéria tibial posterior, a qual se revelou extremamente calcificada.
Apesar de se ter confirmado por angio‐TC a permeabilidade da artéria tibial posterior (fig. 3), a loca de amputação manteve má evolução cicatricial e, por se constatar a permeabilidade da artéria plantar e respetiva arcada, efetuou‐se, 3 semanas após o segundo procedimento, jumping graft venoso com VGS contra‐lateral à artéria plantar externa, obtendo‐se um bom resultado angiográfico e clínico.
A evolução no pós‐operatório foi boa. Iniciou vacuoterapia no 6.° dia de pós‐operatório, que manteve durante 7 semanas. Atualmente, 2 meses e meio após a ultima intervenção cirúrgica, a ferida encontra‐se praticamente cicatrizada, o doente não tem dor e o enxerto mantém‐se normalmente permeável (fig. 4).
DiscussãoA expansão das técnicas endovasculares permitiu alterar o paradigma de tratamento da doença oclusiva infrapoplítea. Enquanto no passado a angioplastia se reservava a doentes com estenoses curtas ou que não tinham indicação para bypass, hoje muitos autores proclamam uma estratégia de «endovascular‐first»4,5.
As recomendações da European Society for Vascular Surgery (ESVS)9 referem que «o tratamento endovascular das artérias infrageniculares tem o potencial de atingir níveis de salvação de membro semelhantes, com menor morbilidade e mortalidade perioperatória. A angioplastia na IC com lesões infrageniculares é uma boa opção na maioria dos casos, desde que o procedimento não impossibilite intervenções futuras» (nível 4, grau C). Estas recomendações são apoiadas por recentes meta‐análises sobre a eficácia da angioplastia crural na IC que determinaram que, a médio prazo (36 meses), apesar de o grau de permeabilidade ser inferior com a angioplastia, o resultado clínico – salvação de membro – era de 82%, um valor semelhante ao da revascularização convencional10.
No entanto, o único estudo randomizado que compara uma estratégia inicial de angioplastia versus cirurgia convencional para a doença arterial periférica, o «Bypass versus Angioplasty in Severe Ischaemia of the Leg» (BASIL)11, inclui doentes com doença infrainguinal e não com doença infrapoplítea isolada, sendo que no estudo não há referência ao padrão de doença oclusiva tratada e respetivos resultados. Esta realidade impossibilita quaisquer conclusões definitivas, sobre qual a melhor abordagem inicial em doentes com doença infrapoplítea.
Os 2 casos clínicos aqui apresentados são exemplo das limitações das técnicas endovasculares. Uma reoclusão precoce da única artéria crural permeável e a insuficiência do fluxo sanguíneo necessário para a cicatrização criaram a necessidade de uma intervenção alternativa.
Segundo as recomendações da ESVS «o tratamento cirúrgico deve ser a primeira opção para lesões mais complexas dos vasos infrageniculares ou em caso de falência da técnica endovascular e persistência dos sintomas de IC» (nível 4, grau C)9.
Assim sendo, a técnica de bypass ultradistal, há muito reconhecida como uma hipótese viável no tratamento dos doentes com IC com doença crural, apresentou‐se nestes 2 casos como uma boa opção terapêutica perante a falência das abordagens endovasculares iniciais.
Na primeira série de doentes tratados com bypass às artérias do pé, por Ascer et al., em 1988, foi demonstrada uma taxa de salvação de membro de 78% aos 5 anos1 e num vasto estudo retrospetivo desenvolvido ao longo de 10 anos por Pomposelli et al., onde foram efetuados 1.032 procedimentos à artéria pediosa, obteve‐se uma taxa de salvação de membro aos 5 anos também de 78%2.
Outra questão pertinente e atualmente discutida é o impacto da falência das técnicas endovasculares nos resultados de uma alternativa cirúrgica convencional posterior.
No estudo BASIL os doentes submetidos a bypass após falência da via endovascular apresentaram piores taxas de salvação de membro em comparação com os que foram submetidos a bypass primário12. Nolan et al. reportaram que uma intervenção endovascular prévia é um fator de mau prognóstico nos doentes com IC submetidos a cirurgia de bypass, levando a taxas de trombose do enxerto e de amputação mais elevadas13. Foram propostas algumas explicações para este fenómeno e que são as seguintes:
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a falência da angioplastia inicial pode ser indicativa de fatores de risco específicos do doente, como estados de hipercoagulabilidade, com o potencial de comprometer igualmente qualquer intervenção futura13.
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a técnica endovascular pode comprometer o runoff para uma futura intervenção por embolização ou trombose do leito arterial13,14.
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uma má qualidade da veia que ditou a opção por uma via endovascular inicial, ao ser utilizada na intervenção subsequente, influencia negativamente o resultado do bypass13.
No entanto, mais uma vez, estes estudos incluem doentes com doença infrainguinal e não são relativos a doença predominante do sector tíbio‐peroneal.
O único estudo publicado sobre este aspeto é da autoria de Christian et al15 e nele foi avaliado o impacto de uma intervenção endovascular prévia dos vasos crurais em doentes submetidos a bypass ultradistal. Os resultados não comprovaram diferenças significativas na taxa de permeabilidade primária, secundária, de salvação de membro e na sobrevivência15.
A técnica de bypass ultradistal apresentou‐se nestes 2 doentes como a melhor opção terapêutica. Depois de assegurado um bom inflow e uma artéria plantar externa permeável com continuidade para a arcada plantar, ambos tiveram uma boa evolução clínica, com controlo da dor e uma rápida cicatrização com salvação do membro, objetivos primordiais do tratamento da IC.
ConclusãoOs procedimentos de revascularização ultradistais são seguros, duradouros e eficazes em doentes com IC, desde que se observe um padrão apropriado de permeabilidade da artéria recetora com continuidade para a arcada plantar.
Os casos apresentados ilustram a sua importância nos casos de falência ou ineficácia das técnicas endovasculares e sugerem que nestes casos se deve investir na avaliação dos critérios de exequibilidade de cirurgia aberta, a qual parece ter um lugar relevante na salvação do membro.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.