A neurofibromatose tipo I (NF1), também designada doença de Von Recklinghausen, é causada por uma anormalidade no cromossoma 17, de transmissão autossómica dominante, responsável pela produção deficiente de neurofibromina. Caracteriza‐se por displasia nos tecidos mesodérmicos e neuroectodérmicos, e tem uma incidência de um para 2.500‐3.300 nascimentos. A presença de manchas café‐au‐lait, neurofibromas cutâneos e hamartomas da íris são sinais cardinais da doença.
Primeiramente descrita por Ruebi em 1945, a patologia vascular é uma complicação subestimada e pouco reconhecida na NF1.
A ocorrência de hemorragia fatal ou quase fatal está reportada ocasionalmente nas cavidades pleural, abdominal, retroperitoneu, tecidos moles do tronco e extremidades. Esta hemorragia massiva é causada pela rutura de vasos sanguíneos friáveis, característicos pelos níveis reduzidos de neurofibromina e consequente proliferação endotelial e de músculo liso nas artérias e veias. Uma das consequências clínicas mais sérias descritas na NF1 é a ocorrência de hemorragia severa e dificuldade em alcançar controlo hemostático.
ObjetivoExposição de caso clínico de extenso hematoma cervical e hemotórax espontâneos por rutura troncos venosos braquiocefálico, veia subclávia e junção subclávio‐jugular em doente com NF1.
Caso clínicoRelata‐se caso clínico de mulher de 51 anos, com antecedentes conhecidos de NF1 e hipertensão arterial.
Foi admitida no serviço de urgência em choque hipovolémico hemorrágico, no contexto de dor súbita no ombro direito e volumosa tumefação cervical direita. Em angioTC foi objetivado volumoso hematoma, envolvendo a região cervical direita, a região retrofaríngea‐prevertebral, escavado supraclavicular direito, mediastino, associando a importante hemotórax direito.
Procedeu‐se a abordagem supraclavicular com drenagem do hematoma e identificação de fontes hemorrágicas, nomeadamente: tronco venoso braquicefálico, veia subclávia e confluência subclávio‐jugular. Foi necessária secção da clavícula para controlo hemorrágico e realização de rafias dos troncos venosos com prolene. Intraoperatoriamente, foi evidente a fragilidade e friabilidade excessiva dos vasos sanguíneos. Após controlo hemorrágico, foi realizada videotoracoscopia para drenagem de hemotórax e evacuação de coágulos, confirmando‐se a ausência de hemorragia ativa.
No pós‐operatório a doente recuperou estabilidade hemodinâmica, sem evidência analítica de queda de hemoglobina. Realizou‐se angioTC, onde se confirmou franca melhoria do hematoma cervical direito e retrofaríngeo em critérios quantitativos, e ausência de extravasamento de contraste. Objetivou‐se adicionalmente aneurisma sacular da artéria vertebral direita, corrigido ulteriormente através de embolização com coils.
ConclusãoA NF1 é uma doença genética que raramente se pode associar a hemorragia life‐threatening. A vasculopatia é uma complicação subestimada e pouco reconhecida na NF1. A existência de friabilidade vascular excessiva com consequente hemorragia espontânea na NF1 é rara e pode ser fatal, exigindo um diagnóstico rápido e tratamento atempado.
Neurofibromatosis type1 (NF1), also known as Von Recklinghausen disease, is caused by an autosomal dominant abnormality in chromosome 17, responsible for the impaired production of neurofibromin. The presence of cafe‐au‐lait spots, neurofibromas and iris hamartomas are cardinal signs of the disease. The occurrence of a fatal or near‐fatal haemorrhage is reported in pleural, peritoneal, retroperitoneum, soft tissues of the trunk and extremities. The massive hemorrhage is caused by rupture of friable blood vessels as a consequence of impaired expression of neurofibromin in the arteries and veins. One of the most serious clinical consequences described in NF1 is the occurrence of severe haemorrhage and difficulty achieving hemostatic control.
ObjectivesWe report a case of spontaneous massive cervical hematoma and hemothorax as a result of venous rupture of innominate, subclavian and subclavian‐jugular veins junction in a NF1 patient.
Case reportA 51 year‐old woman with past history of neurofibromatosis type I and hypertension was admitted to the emergency department with an haemorrhagic shock in the clinical set of a sudden right shoulder pain and a expansive right cervical swelling. The CT angiography showed a massive hematoma, involving the right cervical, retropharyngeal‐prevertebral, right supraclavicular and the mediastinum regions, associated with an important right haemothorax.
Through a supraclavicular approach, it was performed hematoma drainage and identification of bleeding sources including: brachycephalic venous trunk, the subclavian vein and subclavian‐jugular confluence. It was required clavicle section to achieve haemorragic control and suture the ruptured venous trunks. A VATS was performed for haemothorax drainage and confirmed the absence of active bleeding.
A postoperative CT angiography confirmed the resolution of the right cervical hematoma and absence of contrast extravasation. Additionally it was found a saccular aneurysm of the right vertebral artery corrected later by embolization with coils.
ConclusionNF1 is a genetic disorder that rarely can be associated with life‐threatening haemorrhage. The vasculopathy is an underestimated complication with limited recognition in NF1. The excessive vascular friability with spontaneous bleeding in NF1 is rare and can be fatal, requiring a timely diagnosis and prompt treatment.
A neurofibromatose tipo I (NF1) ou doença de Von Recklinghausen, é uma doença neurocutânea causada por uma mutação no gene supressor tumoral NF1 localizado no cromossoma 17 (17q11.2), de transmissão autossómica dominante, que se traduz na produção deficiente da proteína neurofibromina7. Até 50% dos casos têm origem em mutações espontâneas6–9.
Historicamente descrita em 1882 por um patologista, Friedrich Daniel von Recklinghausen6,9,11,12, caracteriza‐se por displasia nos tecidos mesodérmicos e neuroectodérmicos, e tem uma incidência de um para 2.500 a 3.300 nascimentos1,2,4. Sem predominância conhecida de raça ou género, a doença tem uma distribuição mundial com diversas expressões fenotípicas relacionadas com os tecidos afetados, mais frequentemente derivados da crista neural e da mesoderme6.
A presença de manchas café‐au‐lait, neurofibromas cutâneos e hamartomas da íris são sinais cardinais da doença5,10. Além das manifestações clínicas típicas secundárias a lesões celulares pigmentadas, presentes em 95% dos doentes9, existe uma propensão ao desenvolvimento de tumores do sistema nervoso central e periférico, de que são exemplos meningiomas, feocromocitomas, ganglioneuromas6,7. Os neurofibromas plexiforme e nodular podem sofrer transformação maligna em tumores da bainha nervosa periféricos em 2‐16% dos doentes9.
A hipertensão desenvolve‐se em 6% dos casos, com 1/3 de etiologia secundária relacionada com doença renovascular, coartação da aorta ou feocromocitoma9.
A maioria dos doentes apresenta‐se com uma ou 2 das referidas características, nas quais assenta o diagnóstico, definindo critérios de diagnóstico formais6,7.
Condicionando uma esperança média de vida reduzida (idade média de morte de 54,1 anos e mediana de 59 anos), a mortalidade na NF1 está associada primariamente com a patologia neoplásica. A segunda causa de morte relaciona‐se com a doença vascular, particularmente em doentes com menos de 40 anos4,5,9,11. Anormalidades vasculares são apontadas em cerca de 50% dos doentes com neurofibromatose post‐mortem10.
Primeiramente descritas por Ruebi em 1945, as manifestações vasculares são uma complicação subestimada e pouco reconhecida na NF13,11,14.
Existe um alargado espectro de anormalidades vasculares associadas à NF1. A maioria consiste em doença aneurismática ou doença estenótica aórtica, renal e mesentérica5,12. A sua etiopatogenia, espectro clínico e história natural permanecem desconhecidos5.
A ocorrência de hemorragia fatal ou quase fatal está reportada ocasionalmente nas cavidades pleural, abdominal, retroperitoneu, tecidos moles do tronco e extremidades1,2. Esta hemorragia massiva é causada pela rutura de vasos sanguíneos friáveis característicos pelos níveis reduzidos de neurofibromina e consequente proliferação endotelial e de músculo liso nas artérias e veias2. Uma das consequências clínicas mais sérias descritas na NF1 é a ocorrência de hemorragia severa e dificuldade em alcançar controlo hemostático2.
Atendendo à raridade das manifestações vasculares agudas no contexto da NF1, expõe‐se um caso clínico de extenso hematoma cervical e hemotórax espontâneos, por rutura troncos venosos braquiocefálico, veia subclávia e junção subclávio‐jugular em doente com a doença de Von Recklinghausen.
Caso clínicoRelata‐se caso clínico de mulher de 51 anos, com antecedentes conhecidos de NF1 (fig. 1) e hipertensão arterial.
Não havia história de traumatismo, lesão ou cirurgia da região supraclavicular, fratura da clavícula, nem de tentativas de cateterismo dos vasos do pescoço.
Foi admitida no serviço de urgência com choque hipovolémico hemorrágico, no contexto de quadro súbito de dor no ombro direito e volumosa tumefação cervical direita. Apresentava prostração e tensão arterial de 43/30mmHg, com frequência cardíaca de 90 batimentos por minuto. Ao exame objetivo apresenta múltiplos neurofibromas subcutâneos, volumosa tumefação na região supraclavicular direita e cervical homolateral.
Analiticamente, a hemoglobina à admissão era de 7,8g/dL, hematócrito de 23,2% com 2,61x10^12/L eritrócitos.
A radiografia de tórax (fig. 2) demonstrou derrame pleural direito, desvio da traqueia para a esquerda e alargamento do mediastino.
Em angio tomografia computorizada (angioTC) foi objetivado volumoso hematoma, envolvendo a região cervical direita, a região retrofaríngea‐prevertebral, escavado supraclavicular direito, mediastino, associando importante hemotórax direito (figs. 3, 4 e 5).
Procedeu‐se a abordagem supraclavicular (fig. 6) com drenagem do hematoma e identificação de fontes hemorrágicas, nomeadamente: tronco venoso braquicefálico, veia subclávia e confluência subclávio‐jugular. Foi necessária secção da clavícula para controlo hemorrágico e realização de rafias dos troncos venosos com prolene. Intraoperatoriamente, era evidente a fragilidade e friabilidade excessiva dos vasos sanguíneos. Após controlo da hemorragia, foi evidente a recuperação da estabilidade hemodinâmica da doente e estabilização da hemoglobina.
Após controlo hemorrágico, foi realizada videotoracoscopia para drenagem de hemotórax e evacuação de coágulos, confirmando‐se a ausência de hemorragia ativa.
Durante a intervenção cirúrgica, objetivaram‐se perdas sanguíneas de 4.060cc, tendo sido administradas 6 unidades de concentrado eritrocitário e 3 de plasma fresco.
No pós‐operatório a doente recuperou estabilidade hemodinâmica, sem evidência analítica de queda de hemoglobina. Teve necessidade de internamento em unidade de cuidados intensivos durante 5 dias, tendo sido extubada no 2.° dia de pós‐operatório. Realizou‐se angioTC para avaliação torácica no 2.° dia de pós‐operatório (figs. 7,8,9), onde se confirmou franca melhoria do hematoma cervical direito e retrofaríngeo em critérios quantitativos, e ausência de extravasamento de contraste. Objetivou‐se adicionalmente aneurisma sacular da artéria vertebral direita, corrigido ulteriormente através de embolização com coils (fig. 10, Serviço de Neurorradiologia H. S. José).
Do estudo complementar inerente à NF1, verificou‐se o achado de nódulo em topografia paravertebral direita, adjacente a um buraco de conjugação, com 14mm, representando provável tumor neurogénico. Foi ainda excluída doença arterial adicional de outros territórios nas suas diferentes formas de apresentação. A angioTC excluiu a presença doença aneurismática ou oclusiva dos principais leitos arteriais (nomeadamente doença aterosclerótica das artérias renais), assim como fístulas arteriovenosas.
DiscussãoA presença de manchas café‐au‐lait, neurofibromas cutâneos, hiperpigmentação áreas axilar e inguinal, gliomas óticos, hamartomas pigmentados da íris, anormalidades ósseas, tumores intracranianos, entre outras características, são alguns dos achados que caracterizam a doença de Von Recklinghausen, que envolvem os tecidos derivados da crista neural e, menos frequentemente, da mesoderme1,2.
O seu diagnóstico é especialmente difícil, atendendo a: variabilidade clínica, desde o envolvimento cutâneo exclusivo ao atingimento de diferentes órgãos; evolução imprevisível do curso da doença; e prognóstico muitas vezes incerto8. O prognóstico depende essencialmente da existência de tumores cerebrais, responsáveis pela mortalidade em 72% dos casos11.
A frequência do envolvimento vascular da NF1 é subestimada, em resultado de as lesões dos vasos serem muitas vezes assintomáticas e, por vezes, atribuídas a outras causas1,11. A prevalência de lesões vasculares em grandes séries varia de 0,4‐6,4%5,12.
As alterações vasculares podem surgir sob a forma de estenoses, aneurismas e fístulas arteriovenosas das artérias coronárias e braquicefálicas1. As lesões arteriais resultam do contexto de compressão extrínseca por massas tumorais, espessamento intramural e/ou degeneração aneurismática sacular e fusiforme secundaria a displasia vascular de diferentes tipos1.
Primeiramente descrita por Ruebi em 1945, a patologia vascular na NF1 foi por ele classificada definindo 3 padrões histopatológicos (forma intimal‐pura, forma intimal‐aneurismática, forma nodular periarterial)1,5,6. Feyrter acrescentou as formas intimal‐avançada e epitelioide1,6.
A displasia arterial associada a NF1 caracteriza‐se pela acumulação de substância muscoide na íntima, proliferação das células mio‐intimais, espessamento da média ou disrupção do tecido elástico, que podem resultar em estenoses, oclusões, rutura, fístulas arteriovenosas ou degeneração aneurismática das artérias de grande e médio calibre1,2.
A patogénese desta vasculopatia da NF1 ainda está pouco esclarecida3–5. A deficiente expressão do gene supressor tumoral NF1 leva ao deficit da sua proteína neurofibromina, a qual se encontra expressa fisiologicamente nas células endoteliais e de músculo liso. A expressão endotelial alterada de neurofibromina poderá resultar na migração e proliferação excessiva de fibroblastos, células de músculo liso e células de Schwann3,4.
A maioria das lesões vasculares na NF1 são assintomáticas e habitualmente atingem múltiplos territórios. A artéria renal é o território preferencialmente envolvido (41% das lesões vasculares, unilateral em 68%), com a hipertensão renovascular como a apresentação clínica mais comum. Outros quadros clínicos vasculares comuns são a coartação da aorta abdominal (12%), aneurismas da artéria carótida interna e malformações arteriovenosas vertebrais cervicais, com afeção das artérias carótida, vertebral ou cerebrais em 19% das lesões vasculares5,15.
As indicações para intervenção ou cirurgia relacionam‐se com a idade, tipo e localização da lesão, presença de sintomas, rutura ou diâmetro aneurismático significativo5.
No artigo de revisão de Oderich et al., há referência a 46 aneurismas cerebrais, vertebrais e carotídeos ocorrendo na 3.ª década de vida e mais frequentemente nas mulheres (72%), dados em que se insere o caso clínico descrito. Uma apresentação clássica são as malformações arteriovenosas vertebrais cervicais que podem ser consequência tardia da rutura contida de aneurismas vertebrais5. No território da artéria subclávia, a rutura espontânea da artéria subclávia e malformações arteriovenosas das extremidades estão documentadas5,11,15. Existem, pelo menos, 3 casos reportados na literatura de envolvimento aneurismático venoso, todos afetando a veia jugular5,13.
A hemorragia severa espontânea ou mesmo após trauma é uma complicação rara da neurofibromatose que se associa a elevada taxa de mortalidade10,12. A mortalidade relacionada com causas vasculares na NF1 é particularmente frequentemente nos doentes com menos de 30 anos4,9. Para a hemorragia de difícil controlo contribui a já descrita displasia da parede vascular, frequentemente complicada pela existência de coagulopatia concomitante, relacionada com alterações das plaquetas e consumo de fatores da coagulação10. O controlo hemorrágico é assim complexo, atendendo à friabilidade dos tecidos e vasos e dificuldade em obter hemóstase4,11–13. É comum a todos os casos submetidos a intervenção cirúrgica descritos na literatura a presença de uma fragilidade excessiva da parede dos vasos, condicionando hemorragia intraoperatória significativa12,13.
Existem vários casos descritos de rutura espontânea de artérias, sendo caracterizada a elevada fragilidade do vaso em rutura em consequência da proliferação e distribuição de células epitelioides ou fusiformes dos tecidos envolventes, fragmentação da túnica muscularis e espessamento da íntima com oclusão do lúmen14. Está também descrita na histologia destes vasos friáveis a desintegração da estrutura vascular por invasão de fibras neurais14. O sistema venoso pode ser igualmente afetado e com maior intensidade.
No caso apresentado, após incisão supraclavicular foi evidente a abundante hemorragia venosa de difícil controlo e cujo acesso só foi possível após secção da clavícula.
A presença de hemotórax concomitante foi atribuído à drenagem descendente do hematoma cervical pelo espaço pleural.
ConclusãoA NF1 é uma doença genética que raramente se pode associar a hemorrafia life‐threatening. A vasculopatia é uma complicação subestimada e pouco reconhecida na NF13. A existência de friabilidade vascular excessiva com consequente hemorragia espontânea na NF1 é rara e pode ser fatal, exigindo um diagnóstico rápido e tratamento atempado.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.