A oclusão da artéria hipogástrica pode ser necessária na reparação endovascular de aneurismas da aorta abdominal (EVAR). A oclusão intencional da hipogástrica pode ter complicações isquémicas. As endopróteses de bifurcação ilíaca (IBD) surgiram como alternativa endovascular à oclusão da hipogástrica em doentes com elevado risco para isquemia pélvica. Os autores descrevem um caso de oclusão precoce do ramo hipogástrico de IBD com graves consequências clínicas.
Caso clínicoSexo masculino, de 74 anos, com aneurisma da aorta abdominal (diâmetro máximo de 55mm) com envolvimento de ambas as bifurcações ilíacas e segmentos proximais das hipogástricas (diâmetro máximo de 31 e 32mm), submetido a EVAR com revascularização hipogástrica esquerda via IBD (Cook Zenith®) e coiling+overstenting da artéria hipogástrica contralateral. O procedimento decorreu sem complicações e a angiografia final mostrava permeabilidade da hipogástrica revascularizada e escassa colateralidade pélvica. O pós‐operatório imediato complicou‐se de dor lombar e glútea bilateral associada a manifestações cutâneas isquémicas e monoparesia do membro inferior esquerdo. Por agravamento progressivo nas primeiras 24h e angioTC com oclusão do stent da hipogástrica esquerda, procedeu‐se novamente a revascularização da hipogástrica, com bom resultado na angiografia final. Apesar da revascularização bem‐sucedida, houve agravamento progressivo do estado geral, com isquemia pélvica irreversível e rabdomiólise. Óbito ao 5.°dia pós‐operatório.
ConclusãoA isquemia pélvica aguda é uma complicação grave e frequentemente fatal que pode advir da oclusão bilateral das artérias hipogástricas. A falência da revascularização por IBD pode ser fatal, pelo que os autores aconselham um cuidado redobrado no controlo angiográfico final e um baixo limiar para investigação na suspeita de complicações pós‐operatórias. Se maior risco de falência técnica, embolização ou escassa colateralidade pélvica, a preservação bilateral de fluxo nas artérias hipogástricas pode estar recomendada.
The occlusion of internal iliac artery may be necessary in Endovascular Aortic Aneurysm Repair (EVAR). The intentional hypogastric occlusion may have several ischemic complications. The Iliac Branch Devices (IBD) are an alternative to hypogastric occlusion in patients at high risk to pelvic ischemia. The authors report a case of early IBD occlusion with serious clinical consequences.
Case ReportA 74‐year‐old man presented a 55‐mm abdominal aortic aneurysm with bilateral involvement of iliac bifurcation and proximal hypogastric arteries (maximum diameter of 31 and 32mm). He underwent EVAR, left hypogastric revascularization by IBD and coiling+overstenting of contralateral hypogastric. There wasn¿t intraoperative complications and final angiography showed hypogastric patency and poor pelvic collateral circulation. Postoperatively, the patient complained of bilateral lumbar and gluteal pain and presented with ischemic skin alterations and left lower limb monoparesis. As his clinical state deteriorates in the first 24hours and computed tomography angiogram revealed left hypogastric stent occlusion, he underwent hypogastric revascularization again with good angiographic results. Despite successful revascularization, there was a progressive clinical deterioration with irreversible pelvic ischemia and rhabdomyolysis. Death on 5th postoperative day.
ConclusionThe acute pelvic ischemia is a serious complication and often a fatal outcome, which may result of bilateral hypogastric artery occlusion. As IBD revascularization failure may be fatal, the authors advise an extra caution in final angiography and a high level of suspicion for postoperative complications. Bilateral hypogastric preservation using IBD may be recommended, if there is a higher risk of technical failure, embolization or poor pelvic collateral circulation.
Apesar dos aneurismas ilíacos isolados serem raros, o envolvimento aorto‐ilíaco corresponde a uma proporção significativa dos casos de aneurisma da aorta abdominal (AAA). O envolvimento unilateral da artéria ilíaca primitiva está presente em 44% dos casos e o envolvimento bilateral em 11% dos casos de AAA. Nestes casos, a reparação endovascular dos AAA impõe uma extensão distal da endoprótese para a ilíaca externa, com necessidade de embolização uni ou bilateral da hipogástrica1. A importância da preservação do inflow para as hipogástricas tem sido debatida desde a implementação do endovascular aneurysm repair (EVAR). Inicialmente, o sacrifício uni ou bilateral das hipogástricas era considerado um procedimento seguro, mas com o tempo constatou‐se que este não é um procedimento benigno e pode levar a complicações isquémicas pélvicas numa proporção significativa de doentes2.
A oclusão intencional da hipogástrica pode provocar complicações isquémicas, que se podem manifestar de forma aguda – isquemia cólica, isquemia medular com paraplegia e necrose glútea – mais raramente, ou crónica – claudicação glútea e disfunção erétil2,3. As endopróteses de bifurcação ilíaca (IBD) surgiram como alternativa endovascular à oclusão da hipogástrica em doentes com elevado risco para isquemia pélvica4, nomeadamente indivíduos jovens, fisicamente ativos, e doentes com disfunção ventricular esquerda1,5.
Os autores descrevem um caso de oclusão precoce do ramo hipogástrico de IBD, com graves consequências clínicas.
Caso clínicoDoente do sexo masculino, de 74 anos de idade, com antecedentes de HTA, dislipidemia, tabagismo, IRC terminal sob hemodiálise, AVC sem sequelas, endarterectomia carotídea esquerda em 2007, isquemia crítica do membro inferior esquerdo (MIE) e síndrome de roubo de FAV com necessidade de correção cirúrgica recentemente, internado eletivamente para exclusão endovascular de aneurisma aorta abdominal e ilíaco.
Durante o procedimento de correção cirúrgica da síndrome de roubo de FAV (distal revascularization with interval ligation), foi realizada uma angiografia diagnóstica e, simultaneamente, tratamento da lesão da artéria ilíaca comum esquerda detetada, via angioplastia com balão 9×40mm (EverCross®). Na angiografia foi igualmente detetado um aneurisma aorto‐ilíaco, posteriormente, melhor caracterizado por angioTC, com diâmetro máximo de 55mm, envolvendo ambas as bifurcações ilíacas e segmentos proximais das hipogástricas (a dilatação aneurismática era sobretudo ostial com colo distal), com um diâmetro máximo de 31 e 32mm (fig. 1).
Após resolução de isquemia via angioplastia ilíaca esquerdo, o doente foi internado eletivamente para EVAR. Foi decidido excluir os aneurismas ilíacos, uma vez que ambos tinham dimensão superior a 30mm, sendo passíveis de tratamento endovascular. Optou‐se por revascularização hipogástrica esquerda, via endoprótese ilíaca bifurcada (Zenith® IBD 12‐45‐41), e extensão para a hipogástrica com stent coberto (Advanta V12® 8×38×120). À direita, optou‐se por coiling (nos ramos distais da hipogástrica e saco aneurismático) e overstenting da artéria hipogástrica. O AAA foi excluído com endoprótese bi‐ilíaca (Zenith® 24×82) com extensão e bridging stent à esquerda.
O procedimento decorreu sem complicações e a angiografia final mostrava permeabilidade da hipogástrica revascularizada e escassa colateralidade pélvica (fig. 2).
O pós‐operatório imediato complicou‐se de dor lombar e glútea bilateral associada a manifestações cutâneas – aspeto mosqueado e zonas de cianose fixa (fig. 3) e monoparesia do MIE.
O quadro, inicialmente, foi interpretado como consequência de embolização pélvica, mas, dado o agravamento progressivo nas primeiras 24h e a monoparesia do MIE, o doente realizou angioTC que revelou oclusão do stent da hipogástrica esquerda, em provável relação com kink (fig. 4).
Procedeu‐se a drenagem de líquor (que não foi realizada previamente porque a avaliação inicial por neurologia sugeriu um quadro mais periférico – síndrome de cauda equina) e revascularização da hipogástrica via aspiração de trombo e angioplastia intra‐stent, com stent expansível por balão (Assurant Cobalt, Medtronic®). A angiografia final revelou permeabilidade de hipogástrica e ramos distais, apesar de algumas imagens de subtração sugestivas de trombo residual.
Apesar da revascularização bem‐sucedida, houve agravamento progressivo do estado geral, com isquemia pélvica irreversível e rabdomiólise (fig. 5). Óbito ao 5.°dia pós‐operatório.
DiscussãoOs autores descrevem um caso clínico de AAA, com envolvimento de ambas as bifurcações ilíacas e segmentos proximais das hipogástricas, com indicação operatória (aneurismas ilíacos com diâmetro>30), sendo passíveis de tratamento endovascular. Deste modo, o doente foi submetido a EVAR+IBD unilateral e coiling+overstenting da artéria hipogástrica contralateral, com o objetivo de manter uma hipogástrica permeável e, assim, evitar complicações isquémicas. Optou‐se pela revascularização de apenas uma hipogástrica, para reduzir a complexidade e custo do procedimento, o que, apesar de não ser consensual, é uma opção bastante comum3,5. A hipogástrica esquerda foi a selecionada para revascularização via IBD, porque, à esquerda, as características anatómicas das ilíacas encontravam‐se dentro das IFU do dispositivo (Cook Zenith®) e a anatomia era mais favorável. Apesar do sucesso técnico, no período pós‐operatório precoce, o doente iniciou um quadro compatível com isquemia pélvica aguda, tendo‐se constatado oclusão precoce do stent da hipogástrica. O doente foi reoperado – angioplastia intra‐stent na hipogástrica – com bom resultado angiográfico final. No entanto, houve um agravamento clínico progressivo, tendo‐se verificado o óbito ao 5.°dia pós‐operatório.
Apesar da permeabilidade descrita para as IBD ser excelente (permeabilidade primária de 81,3% e secundária de 91,4% aos 5 anos, por Parlini et al.6, permeabilidade primária de 98,4% aos 30 meses por Donas et al.7 e permeabilidade primária de 85,4% e secundária de 87,3% aos 22 meses por Ferreira et al.8), neste caso clínico houve uma oclusão precoce do stent hipogástrico, que esteve na origem, provavelmente, do quadro de isquemia pélvica aguda.
É verdade que estão descritas na literatura inúmeras outras técnicas, abertas, endovasculares ou híbridas, para exclusão de aneurismas aorto‐ilíacos e preservação do fluxo para as artérias hipogástricas (por exemplo, interposição aorto bi‐ilíaca com pontagem para a hipogástrica, bell bottom, técnica trifurcada, sandwich, snorkell, EVAR com extensão à ilíaca externa+pontagem à hipogástrica, entre outras). No entanto, neste doente, optou‐se por uma via completamente endovascular (mesmo na reintervenção), dadas as múltiplas comorbilidades que o doente apresentava e elevado risco anestésico‐cirúrgico. Dentro dos meios endovasculares, optou‐se pela IBD, uma vez que estava dentro das IFU do dispositivo, tal como já referido.
Atualmente, ainda não existem critérios morfológicos definidos para a utilização de IBD, mas Karthikesalingam et al. descrevem fatores associados a dificuldades técnicas que podem predispor à oclusão de IBD: bifurcação aórtica estreita, tortuosidade ou calcificação ilíaca, presença de trombo intraluminal nas artérias ilíacas primitivas, kinking acentuado da artéria ilíaca externa, estenose ostial da hipogástrica e aterosclerose ou dilatação aneurismática da hipogástrica1. No caso apresentado, coexistem vários fatores adversos, como dilatação aneurismática da hipogástrica, calcificação e trombo nas artérias ilíacas, mas os restantes fatores de risco não estavam presentes. No entanto, a oclusão de ramo da IBD nem sempre está relacionada com consequências isquémicas graves1.
Assim, na sequência da oclusão de uma ou ambas as hipogástricas, a gravidade dos sintomas isquémicos é influenciada pelas necessidades dos órgãos irrigados por estas artérias, assim como pela rede de colateralidade pélvica1. Para a rede de colateralidade pélvica contribuem: a hipogástrica contralateral, as artérias ilíacas externas e artérias femorais profundas, bilateralmente1. Lin et al. também alertam para o facto da embolização com coils, corpos estranhos de pequeno calibre, trombogénicos que se alojam distalmente, ser muito mais prejudicial para o estabelecimento de colateralidade pélvica (versus laqueação proximal da hipogástrica utilizada na cirurgia convencional), sobretudo quando ocorre em território vascular ateroscletótico5. O nosso quadro enquadrava‐se no grupo de maior risco, devido a oclusão da hipogástrica contralateral e escassez de ramos colaterais hipogástricos e femorais.
Como as artérias hipogástricas fornecem colateralidade para circulação iliolombar (a última com inflow excluído com a endoprótese aorto bi‐ilíaca), a oclusão das hipogástricas pode ainda contribuir para isquemia medular5, o que se verificou no caso apresentado.
Neste caso clínico, a tortuosidade da ilíaca primitiva esquerda, bem como a sua estenose, apesar de previamente submetida a angioplastia, a dilatação aneurismática da hipogástrica e o kinking na porção inicial do ramo interno da IBD, apesar de não ser visível na angiografia final do procedimento, poderão ter contribuído para a oclusão precoce do stent da hipogástrica. Para além da falência técnica, o surgimento das complicações isquémicas de forma aguda e fatal poderá ter sido potenciado pela embolização distal com coils na hipogástrica contralateral, bem como a escassa colateralidade pélvica, já previamente descritas como fatores preditores de complicações isquémicas.
Apesar de todos estes fatores poderem ter contribuído para o quadro clínico, os autores consideram que os fatores preponderantes, neste caso, para a complicação fatal foram a existência do kinking na hipogástrica após colocação de IBD e a escassa colateralidade pélvica.
ConclusãoA isquemia pélvica aguda é uma complicação grave e frequentemente fatal que pode advir da oclusão bilateral das artérias hipogástricas. No caso apresentado, a falência da revascularização por IBD revelou‐se fatal, pelo que se aconselha um cuidado redobrado no controlo angiográfico final (biplanar) e um baixo limiar para investigação e atuação na suspeita de complicações pós‐operatórias imediatas. Se as características anatómicas forem mais complexas ou existir escassa colateralidade pélvica, a preservação bilateral para as artérias hipogástricas, via IBD, pode estar recomendada.
Responsabilidades éticasProteção dos seres humanos e animaisOs autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com os da Associação Médica Mundial e da Declaração de Helsinki.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.