Em Portugal, a relação entre o número de aneurismas da aorta abdominal (AAA) tratados e a população total é das mais baixas descritas na literatura. Este fenómeno poderá ser justificado pelo défice de diagnóstico ou pela reduzida prevalência da doença na nossa população. Até à data, nenhum rastreio populacional sistemático foi realizado em Portugal. O rastreio oportunístico «A aorta não avisa» descreveu uma prevalência de 2,4% na população avaliada. Vários estudos demonstram o benefício do rastreio populacional de AAA, tendo‐se verificado diminuição da mortalidade específica e por todas as causas, pelo que este já é recomendado pelas principais sociedades internacionais de cirurgia vascular – European Society for Vascular Surgery (nível 1 recomendação) e Society for Vascular Surgery (nível 2 de recomendação) em homens com mais de 65 anos. Para além da sua justificação académica e científica, as vantagens de um programa de rastreio em termos de saúde pública são inegáveis e irrefutáveis com base na evidência atual.
In Portugal, the number of abdominal aortic aneurisms (AAA) treated in relation with its population is among the lowest in the literature. This phenomenon can be explained by a low diagnostic rate or a reduced prevalence of AAA in our population. To date, no systematic population screening was conducted in Portugal. The opportunistic screening “A aorta não avisa” described a prevalence of 2.4% in our population. Several studies have shown the benefit of population screening for AAA, by describing a significant decrease in specific and all‐cause mortality. In that way, the screening is already recommended in men over 65 years by the leading international Vascular Surgery societies ‐ European Society for Vascular Surgery (level 1 recommendation) and Society for Vascular Surgery (level 2 recommendation). In addition to its academic and scientific justification, based on the current evidence, the benefits of an AAA screening program in terms of public health are undeniable and irrefutable.
Portugal é um país onde o número de correções de aneurisma da aorta abdominal (AAA) em relação à população total é dos mais baixos que existe na literatura. Tendo em conta que os critérios para intervenção cirúrgica são semelhantes nos diferentes países, a paucidade no tratamento desta patologia em Portugal poderá ser explicada essencialmente por 2 motivos: uma baixa prevalência de AAA na nossa população ou por um importante défice de diagnóstico. Para melhor esclarecer esta questão é necessário avaliar, de forma rigorosa e precisa, a real prevalência de AAA em Portugal. Até à data, nenhum rastreio populacional sistemático foi efetuado no nosso país. O programa de rastreio oportunista «A aorta não avisa» descreveu uma prevalência de 2,4% de AAA na população avaliada (dados apresentados no XII Congresso Anual da Sociedade Portuguesa de Angiologia e Cirurgia Vascular).
Vários estudos demonstram o benefício do rastreio populacional de AAA1,2, tendo‐se verificado diminuição da mortalidade específica e por todas as causas2. O número necessário rastrear (NNR) para diminuir a mortalidade aos 10 anos é de 2383, sendo inferior ao NNR no cancro colorretal (671)4 e cancro da próstata (1.245)5, rastreios já implementados em Portugal. Adicionalmente, este tipo de rastreio já demonstrou ser custo‐eficaz6.
Os diferentes programas de rastreio populacionais instituídos em países como Suécia, Reino Unido ou Estados Unidos da América associaram‐se, de forma reprodutível, a um conjunto de vantagens que não podem ser desvalorizadas7–9. De referir que o rastreio de AAA em homens com mais de 65 anos já é recomendado pelas principais sociedades internacionais de cirurgia vascular – European Society for Vascular Surgery (nível 1 de recomendação)10 e Society for Vascular Surgery (nível 2 de recomendação)11.
Rastreio de aneurisma da aorta abdominal – a evidência do seu benefícioO AAA é uma patologia com um diagnóstico particularmente acessível e o seu rastreio com base na ecografia abdominal cumpre todos os critérios da Organização Mundial de Saúde para rastreios populacionais sistemáticos12. Maioritariamente com base nos 4 grandes ensaios clínicos randomizados1,13–15 realizados para avaliar o impacto do rastreio de AAA1,11–13, já foram publicadas 3 meta‐análises2,16, incluindo uma revisão Cochrane17. As suas conclusões são sistematicamente reprodutíveis e reiteram que o rastreio de AAA diminui significativamente a mortalidade por AAA nos homens, mas não nas mulheres. As conclusões do grupo Cochrane referem que a redução da mortalidade por AAA se deve, essencialmente, à diminuição na incidência de ruturas aneurismáticas, com uma diminuição da morbilidade relacionada com o AAA de 40% ao fim de 3‐5 anos17.
Mesmo no que concerne ao efeito do rastreio do AAA na mortalidade por todas as causas, a evidência aponta para um efeito favorável. O resultado da maioria dos estudos apontou para ligeiras reduções na mortalidade por todas as causas3. Adicionalmente, após a publicação do The Multicentre Aneurysm Screening Study (MASS), Takagi et al. atualizaram a sua meta‐análise16, concluindo que o rastreio do AAA diminuía significativamente a longo prazo a mortalidade por todas as causas em homens com idade superior a 65 anos.
Independentemente dos ensaios previamente publicados, atualmente, as fontes mais importantes de evidência no benefício do rastreio de AAA são os dados referentes ao seu impacto nos países que já o adotaram de forma sistemática. Dados dos Estados Unidos da América sugerem que, por cada 1.000 pessoas rastreadas, se ganham 131 anos de vida7. A análise detalhada dos dados referentes à Suécia reiterou a segurança do rastreio e revelou que a rutura de AAA se deu apenas no subgrupo de pessoas que faltaram ao rastreio8. Igualmente, em Inglaterra, apenas foi descrito um caso de rutura de AAA na população rastreada9.
Embora a prevalência atual de AAA esteja em perfil decrescente, e bem inferior à descrita nos ensaios clínicos que serviram de base para os diversos programas de rastreio já instituídos (prevalências de 4‐7%)1,13–15, está previsto que o rastreio populacional de AAA se mantenha custo‐efetivo para prevalências da doença de até 1%18.
A ausência de tratamento de aneurisma da aorta abdominal em PortugalOs dados retirados da base de dados administrativos da Administração Central do Sistema de Saúde em Portugal revelam que, em 2010, foram tratados 361 AAA, em Portugal19. Para uma população que, em 2010, era de 10.460.000 habitantes, foram tratados 3,45 AAA por cada 100.000 habitantes. Estes números são francamente inferiores aos descritos em outros países ocidentais. Com base em informação retirada de bases de dados administrativas, na Noruega foram tratados, em 2013, 930 AAA20, o que para uma população de 5.084.000 habitantes equivale a uma taxa de 18,3 cirurgias por cada 100.000 habitantes. Da mesma forma, em 2010, nos Estados Unidos da América, foram operados 44.005 AAA21, o que corresponde a uma taxa de 14,1 correções por cada 100.000 habitantes. Estes números revelam que em Portugal a taxa de tratamento de AAA por habitante é 5 vezes menor que em outros países ocidentais.
Proposta de protocolo experimental de rastreio populacional de aneurisma da aorta abdominal numa unidade de saúde familiarNo sentido de abordar esta temática de forma rigorosa, importa conhecer a realidade dos números em Portugal, nomeadamente no que se refere à verdadeira prevalência deste problema na população. Apresenta‐se, de seguida, uma proposta de protocolo experimental com o objetivo de avaliar essa prevalência através de um rastreio de base populacional realizado numa unidade de saúde familiar (USF):
População alvo: utentes do sexo masculino, inscritos na USF, com idade igual ou superior a 65 anos. Critérios de exclusão: grau de dependência que impeça deslocação à USF; demência, codificada com ICPC‐2 P70 no processo clínico; outras situações de incapacidade temporária ou permanente do exercício de autonomia.
Seleção dos doentes: através de listagem obtida a partir do MIM@UF; os utentes incluídos serão contactados telefonicamente e convidados a participar no rastreio. Aos utentes cujo contacto telefónico não seja possível, será enviada uma carta registada. Aqueles que aceitem participar serão convidados para a realização de uma entrevista presencial e realização de ecografia abdominal nas instalações da USF.
Colheita de dados: será aplicado um questionário de forma presencial, em formato de entrevista, que avaliará a história de tabagismo, hipertensão arterial, diabetes mellitus, dislipidemia, história cardiovascular prévia (autodeclarada ou codificada no processo clínico), história familiar de AAA (familiar de 1.° grau) e conhecimento prévio sobre o AAA (antes de ser contactado para a realização do rastreio). A aorta infrarrenal será medida pelo método leading‐edge‐to‐leading‐edge22. Os exames serão realizados com ecógrafo dedicado, equipado com sonda abdominal. Serão agendados a cada 10 minutos e executados por profissionais com pelo menos um ano de experiência em eco‐Doppler vascular. Os doentes diagnosticados com AAA>4,5cm serão encaminhados para o serviço de angiologia e cirurgia vascular do hospital da sua área de residência. Os doentes com AAA entre 3‐4,5cm irão manter seguimento por ecografia abdominal anual.
Será solicitada a aprovação da realização do rastreio pela Comissão de Ética para a saúde da Administração Regional de Saúde.
ConclusãoO número de AAA tratados, ajustados à população em Portugal, chega a ser 5 vezes inferior ao descrito em outros países ocidentais. É imperativo esclarecer se a reduzida taxa de tratamento de AAA observada em Portugal se deve a uma reduzida prevalência desta patologia ou se há um importante défice de diagnóstico dos AAA na nossa população. A realização de um rastreio populacional sistemático experimental permitirá responder a esta questão. Para além da sua justificação académica e científica, as vantagens de um programa de rastreio de AAA em termos de saúde pública são inegáveis e irrefutáveis com base na evidência atual.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.