La visión de la barbarie es un tema que ha sido inagotable debido a la constante capacidad humana de reinventar las dimensiones del horror. No obstante, si se le analiza desde la filosofía política, es un tema que requiere reinterpretarse continuamente para evitar el riesgo de reinstalar el horror en la lista de preocupaciones del mundo contemporáneo. La reinstalación del horror en este contexto estaría apoyada en la debilidad que hoy tienen las instituciones democráticas, como consecuencia de las virulentas críticas que exponen sus males, a menudo merecidas. Nosotros creemos que la barbarie es inabarcable e inabordable en su totalidad si se le ve desde un solo ángulo metodológico. Por lo tanto, nuestro objetivo con este artículo es aportar al continuo proceso de reflexión una posible aproximación conjunta desde la literatura (Jünger y la literatura de los supervivientes), así como de la filosofía política (Schmitt y sus críticos).
The view of the barbarity is a theme that has been inexhaustible due to the constant human ability of reinventing the horror’s dimensions. However, if analyzed through the political philosophy, this is a theme that requires continuous rereadings in order to prevent the risk of reactualization of the horror in the contemporary world’s roll of concerns. The horror’s reactualization in this context would be assisted by the weakness that is currently happening at the democratic institutions as a result of virulent denouncing criticisms that expose its infirmity, often deservedly. We believe that the barbarity is unembraceable and unapproachable in its integrality if seen through one single angle. Therefore, our purpose in this text is supporting the continuous process of reflecting about this theme through the possible conjunctive approximation of literature (Jünger and the survival’s literature) and political philosophy (Schmitt and his critics).
- Sumario
- I.
- II.
- III.
- IV.
A cor cinza é a mesma cor a qual se refere Jünger. Dizia ele que naqueles anos “a vida tornou-se cinzenta e, no entanto, pode parecer suportável àquele que, ao lado da escuridão, vislumbra o negro absoluto”.1 Discordamos quanto ao papel do negro absoluto, como dissemos logo acima. Simbolicamente a cor cinza também exerceu seu papel, afinal, aproxima-nos à mesma que sombriamente emergia das chaminés dos fornos crematórios nos campos de concentração (Konzentrations-Zentrum) do nazismo.2 Em ato sinistro subseqüente ao terror, encobria os campos de concentração e jogava sob os parentes e amigos sobreviventes os plúmbeos restos dos violentamente trucidados.
O tempo do elogio da violência organizada foi o da primeira parte do século 20. O triunfo temporário da força e do belicismo não traduziu a barbárie tão intensamente como os próprios atos e condutas originalmente concebidos para mostrar do que realmente o regime era capaz. Não raro deparamos com oradores de abjetos discursos que ainda pretendem negar o Holocausto.3 Nos momentos imediatamente subseqüentes ao término do conflito, durante o julgamento de Nuremberg e frente a todas as exaustivas provas, incluindo filmes, nada disto demoveu o oficialato nazista de dar continuidade (ao menos em grande parte dele) à linha de defesa concebida por Goering era a de negar o Holocausto ou, pelo menos, de admitir que se ele realmente fôra praticado, tinha sido por alguns fanáticos do III Reich, mas não com o consentimento do Führer nem com o dele próprio, o segundo homem do regime.4
Em acréscimo a tudo isto, que até mesmo a culpa haveria de ser “atri-buída aos próprios judeus”,5 pois as próprias vítimas, pois teriam provocado através de campanhas pela imprensa judaica e antinazista. Em síntese, falsificava, “houve uma luta” (Ib.). Como consequência desta luta, então, não reconhecia o Holocausto, muito embora confesse que “todos nós sabíamos que as pessoas sofriam processos sumários nos campos de concentração e eram condenadas à morte, mas não sabíamos do extermínio de gente inocente”.6 Neste sentido ressoava o apoio de teóricos o Reich em que predominava o entendimento de que o regime poderia praticar a exclusão sem que deixasse de ser democrático. Nesta perspectiva, por exemplo, dizia Schmitt que …uma democracia …pode excluir uma parte da população dominada pelo Estado, sem deixar de ser democracia. Até hoje, as democracias geralmente também incluíam escravos ou pessoas que de alguma forma tinham poucos direitos, nenhum direito ou eram até mesmo afastadas totalmente do exercício do poder político, quer fossem chamadas de bárbaros, selvagens, ateus, aristocratas ou contra-revolucionários.7
Insanidade sobre o real ao admitir à exclusão e a barbárie, atendo-se ao nivelamento de uma escalada de direitos que era gradativamente ampliada a outras populações mas, não obstante, lançava mão das restrições todavia existentes em diversas democracias como se, no entanto, aquelas restrições fossem necessidades do próprio sistema antes do que o resultado de um processo evolutivo de expansão dos direitos e suas garantias. Acaso fossem tão interessadas e sinceras as críticas de Schmitt sobre a falta de direitos de mais de trezentos milhões de habitantes dentre os quatrocentos milhões do Reino Unido,8 seguramente a Alemanha nacional-socialista haveria tomado para si a questão de assegurar direitos. Não foi esta a realidade.
Mas em uma escalada de horrores, parece que nos neutralizamos. Não raro, nos deparamos com violências que já não mais nos tocam. Será por algum motivo ignoto, e logo parecemos já inatingíveis à miséria humana que nos cerca. Insensibilidade ao humano representa, em si mesmo, violência de grau superior. Nesta trilha da barbárie, talvez mesmo uma arma letal tenha sido a sua exposição brutal, que com isto adquire o poder de nos tornar indiferentes. A este respeito nos chama a atenção Müller de que “se por um lado a selvageria choca, por outro, a sua ênfase é responsável por nos anestesiar, na medida em que explora o tema à exaustão. Habituamo-nos e conformamo-nos à sua “fatalidade”.9 Quando os fatos se repetem, nos desviamos, como que à procura de um surpreendente mundo novo, quiçá pródigo em boas novas. Ainda a respeito, percuciente análise nos é desenvolvida e ofertada por Baudrillard: a miséria e a violência nos tocam ainda menos porque elas nos são significadas e mostradas abertamente. É a lei do imaginário. É preciso que a imagem nos toque por ela mesma, que ela nos imponha sua ilusão específica, sua língua original, para que algum conteúdo nos afete. Para que haja transferência afetiva sobre o real, é preciso haver contratransferência da imagem a estar concluída. Lamenta-se que o real tenha desaparecido sob o pretexto de que tudo passa pela imagem.10
No contexto desta dramática inabordabilidade da violência, nossa perspectiva nestas linhas reduz-se ao objetivo de que possamos sugerir alternativas para redimensionar o homem perante este inexpugnável (por amplo e complexo) mapa da violência. Acreditamos que não há melhor tradução deste tempo do que na capacidade de descrever os eventos encontrada na prosa e na poesia concebida pelos próprios sobreviventes do Holocausto, sem desconsiderar outras narrativas teóricas que bem nos servem secundariamente. Um destes sobreviventes e honrado com o Nobel, é o escritor Elie Wiesel. Em trecho de uma de suas obras11 nos conta de certa passagem de horror em campo de concentração em que este preso junto à seu pai: Those who were selected that day were incorporated into the SonderKommando, the Kommando working in the crematoria. Béla Katz, the son of an important merchant of my town, had arrived in Birkenau with the first transport, one week ahead of us. When he found out that we were there, he succeeded in slipping us a note. He told us that having been chosen because of his strength, he had been forced to place his own father´s body into the furnace.12
O trecho coligido de Wiesel apenas destaca um micro-relato em meio a tudo quanto aconteceu, mas nestes detalhes também é perceptível a dimensão do horror. A escala do mal atingiu todas as dimensões, quero crer, mesmo o inimaginável foi suplantado pela realidade do nacional-socialismo. Ali a gênese e resumo da aplicação ao grau máximo da violência como realização da política de Estado. Mas é quando a violência se torna a arma do Estado para implementar políticas —e disto a história é testemunha o suficiente, como bem o demonstra a experiência dos Estados totalitários de todos os vernizes ideológicos—, o Estado encontra-se, quando muito, a poucos e fáceis passos da barbárie. Fácil é transpô-los.
Em seu momento histórico a Alemanha pôde facilmente transpor o limite da violência das ruas, das SS, da Gestapo, da Hitlerjugend (juventude hitlerista), das perseguições aos judeus (Kristallnacht)13 das violências perpetradas nas ruas durante o processo eleitoral que levou Hitler do Putsch em München em 1923 ao poder até chegar em janeiro de 1933 e a posterior consumação da barbárie. Esta transposição foi realizada contando com apoio de intelectuais de peso assim como de uma massa de homens comuns, mas não necessariamente de pouca instrução, como mostra a realidade alemã da época.
A Alemanha realizou esta transposição desde uma concepção democrática presente na Constituição de Weimar até alcançar alguns anos depois o III Reich,14 não sem contar para tanto com a genialidade e a arte sofística de Carl Schmitt.15 Contudo, próhomens do regime como Goering negava valor não apenas à República de Weimar como à concepção de democracia, uma vez que, dizia, “…me fartei da chamada democracia. …Não é algo natural para mim, nem para meu povo. Nós, alemães, somos apolíticos, e uma eleição pode ser facilmente manipulada”.16Vê-se, portanto, que enquanto Schmitt procurava um caminho sutil de ocultação dos princípios do nacional-socialismo, outros altos oficiais não se preocupavam em disfarçar seu antagonismo relativamente ao valor da democracia.
Contudo, mesmo os mais embrutecidos e bárbaros regimes políticos totalitários precisam de espessas máscaras em um cenário de brutalidade, de volumosas cortinas de fumaça que enebriem tanto o público como seus atores, de sorte a produzir adesão ao roteiro principal da peça. De não ser assim, os regimes de violência não conseguem existir,17 mas, pela sua própria natureza violenta, também não possuem perspectivas de longevidade a amparar-lhes. Em palavras de Jünger, “a violência pura …não pode triunfar por muito tempo”.18 Há razão em seu comentário.
Em toda a ameaça e violência há um porvir de nebulosa execução. Toda uma dose exacerbada de terror está por vir, a ameaça por materializar-se, sem que se saiba ao certo quando e se haverá um por que. Provavelmente seriam mais outros piolhos a serem exterminados pela vontade última do Führer que, a conceder algum crédito a Goering, logo nos primeiros tempos apresentava-se piedoso ao cancelar penas de morte,19 enquanto que no último ano da guerra já nenhuma vida mais valia grande coisa.20 O mesmo Goering, no entanto, é quem não dá crédito à versão de que Hitler teria ordenado “as atrocidades”21 mas, em outros momentos, se contradiz ao afirmar que se o fez foi por influência de Goebbels22e Himmler.23
Nada do que ocorreu, contudo, careceu de bom anúncio nas linhas do marketing nacional-socialista. Difícil conceber que não se soubesse o que estava por vir, pois, retomando Jünger, dizia que quando “ouvimos o tema principal, ainda antes de se abrir o pano, e sabemos aos primeiros acordes que o espetáculo vai ser ameaçador”.24 A violência não encontra acolhida senão em ambientes nebulosos, obscuros, ambíguos, ali onde a transparência não é valor vigente na órbita pública.
Não obstante seus arranjos e malabarismos cênicos para perpetrar-se no poder, o regime não se consolida e eterniza sob o signo do puro engodo. O ovo da serpente tem de dar lugar à realidade nefasta que carrega. A cortina desce, seus atores perdem a máscara, e o público, finalmente, partícipe (in)voluntário do terror, imerge na coletiva percepção dos horrores de que foram cúmplices. Caíra a máscara com que atuara o regime, cuja opressão impusera ao público uma gris forma do tradicional kabuki.25 Como dizia Jünger, “o medo adopta as máscaras, o estilo de cada época”,26 e este do terror e da dissimulação foi o do nazismo.
Reconhecer todo o terror seria tão doloroso quanto desconhecê-lo. Isto se deu aos alemães no pós-guerra, e também às gerações seguintes em que todavia pulsa a dor da culpa coletiva.27 Mas ora, paralelamente à acusação de Goldhagen de que haviam carrascos voluntários28 na Alemanha nacional-socialista foi apresentado o argumento de Jünger. A objeção levantada por Jünger consiste em argumento histórico e político de que havia na tradição alemã, desde os tempos das monarquias absolutas, uma concepção vigente de submissão ao Estado.
Se em outros tempos houvera uma reação, agora, pensava-se em algo similar. Não obstante, resultava difícil ao cidadão médio entender, primeiramente, porque deveria ter se levantado contra o status quo vigente durante o III Reich e, após, como os vencedores lhes acusavam de não resistir devidamente ao regime.29 Ao seu tempo, contudo, homens como Max Weber, Friedrich Nauman (1860-1919) e Hugo Preuss (1860-1925) souberam encontrar os caminhos, através do liberalismo, para enfrentar o Império e suplantá-lo.
A nova realidade alemã, contudo, não desobriga a que observemos a história do país e, mesmo sendo fato que uma tradição como esta não era estranha à Alemanha, isto não obsta a que encontrara-se à vista o direito/ dever de opor-se à barbárie, tal como antes os liberais o fizeram contra a monarquia absoluta. Aqui, com certeza, reside o ponto de partida para uma nova abordagem do direito de resistência no Direito Constitucional contemporâneo.
Não obstante a argumentação de Jünger aduzir esta reflexão de cunho histórico que tem fundamento, ela parece não prosperar quando examinamos, dentre outros argumentos, o fato de que a quebra de paradigmas do nacional-socialismo. O regime valeu-se de uso singularmente bárbaro da violência como forma de implementar projetos político-ideológicos.
Assim, por tão impactante, não cabia a ninguém permanecer na mesma posição que em outros tempos supondo que o dever de submissão era o mesmo. A omissão também era culpa.30 Depois de tudo, como o segundo homem do regime gabava-se em dizer, a Alemanha era o país de referência em matéria cultural na Europa, que a Alemanha tinha mais teatros, óperas e operetas e teatros permanentes do que quase qualquer outro país.31 Por qual motivo não lançaram mão desta capacidade de discernimento? Custaria a este cidadão entender a culpa implícita na acusação de não ter levantado vozes contra a morte indefesa de milhões sob o regime?
Logo após a guerra Arendt nos dava o testemunho de que os alemães, salvo exceções, eram “fantasmas vivos, intocáveis pelo discurso e pelo argumento, pelo olhar dos homens e pelo luto dos corações”.32 O nacionalsocialismo erigiu a obra da violação do homem, da transmutação de seres humanos em sombrias figuras perdidas em um corpo esfarrapado. O pósguerra representou a imersão coletiva do povo alemão no mesmo espírito.
Em verdade, a violência transforma, marca, a violência profunda, esta enrudece, entorpece, rudimentariza e paralisa, enquanto a violência organizada desconstitui e desfigura as subjetividades humanas, e ao retirar-lhes suas próprias almas em vida, tenta nadificá-las. Os autores do Holocausto tentaram o impossível, aquilo que é quase tão difícil quanto criar o homem, a saber, destruí-lo. Contudo, disse Levi, “custou, levou tempo, mas vocês alemães, conseguiram”.33 Tal destruição tem a ver com a negação do homem perante si mesmo e os demais. A destruição física é a mera conseqüência de todo o processo.
Quando em sua versão estatal e organizada a violência produz ainda mais deletérios efeitos, produz sentimento de desconstituição íntima, de perda de referenciais, de sentimento de pertença à humanidade. Coletivamente, o Holocausto propiciou o sentimento de vida em uma sociedade que rumava para a negação da alteridade a imensos grupos cujo tratamento não raro era o bastante expressivo “filthy dog”.34
Todos eles, presos e vítimas do terror, eram, na verdade, Untermenschen, por isto, não era inadequado matá-los como piolhos, ou nem isso. Eram abandonados à pior morte possível. Até hoje não encontramos explicações para o comportamento sádico e voluptuoso dos guardas alemães. Contudo, o clima de ódio criado pela ideologia nacional-socialista auxilia a compreender o comportamento individual cujo zelo na execução de ordens letais potencializou sua magnitude a níveis impensados, talvez até mesmo pelos burocratas do III Reich, e muito especialmente no que concerne a solução final concebida para os judeus.
Levi narra ilustrativa passagem em que, colocados ao trabalho pesado pelos nazistas no campo de concentração, vizinho a ele instalara-se um acampamento da Hitlerjugend. Por vezes seus treinadores os levavam a observar os judeus trabalhar. Certa feita, narra, o instrutor dissera aos pupilos: “Esses que vocês estão vendo são inimigos do Reich, os inimigos de vocês. Olhem para eles: vocês os chamariam de homens? Eles são Untermenschen, sub-homens”.35 Era a intervenção bastante clara, e até o cerrar das cortinas, do bem conhecido conceito schmittiano do amigo-inimigo. Isto sim, aqueles inimigos era menos que homens ou, parafraseando Brodsky,36 menos que um, quase nenhum ou nada mesmo. Da retórica do processo de nadificação do ser humano a matá-lo como piolhos o passo era mesmo curto. E foi dado.
Mesmo ao lançarmos mão de uma brilhante literatura como a de Wiesel, parece que as palavras ressecam o horizonte de toda uma barbárie que teima em apresentar-se como indescritível e inapreensível. Passo seguinte, proponho retomar a poesia do mesmo autor com o escopo de adentrar em outra dimensão de apreensibilidade da barbárie. Quem sabe, ao ouvirmos a história uma vez mais, e ainda outra, quiçá, não terminemos por apreender-lhe o sentido. Mas talvez, ainda, nos valha o Dov, de Levi, que nos diz que “tudo isso são coisas que já contei e não existe tédio maior do que se repetir”.37 Seria a repetição exaustiva a criação de um véu de tédio em torno do horror do Holocausto? Não creio que tenhamos uma (boa) resposta para esta pergunta. Apenas estamos certos é de que ela vale a pena ser lançada.
Dentre outras formas artísticas de acesso ao Holocausto, nos deparamos com a poesia. Ela, contudo, já sofreu seus impedimentos. É famosa divisa de Adorno de que a poesia não seria mais possível após Auschwitz-Birkenau. A leitura de Adorno feita por Leminski não conduz demasiado longe desta perspectiva: Para Adorno, a grandeza da arte está em sua capacidade de resistir ao estatuto de mercadoria, em situar-se no mundo como um ‘objeto não identificado’. Em sua recusa de assumir a forma universal da mercadoria, a arte, a obra de arte é a manifestação, em seus momentos mais puros e radicais, de uma ‘negatividade’. Ela é a ‘antítese da sociedade’. Ela é a antítese social da sociedade.38
A crítica de Adorno esgota-se na interpretação feita por Leminski da ideia de arte no frankfurtiano. Pensamos, com Leminski, no potencial emancipador da cultura mas, em especial, da poesia, relativamente a quem Adorno manifestava seu ceticismo. A poesia adquire ainda maior importância ao constituir-se em poderosa arma para dizer-nos da dor que a miséria de uma filosofia provocou. Leminski, entre nós, provocou a insensibilidade ao questionar poeticamente: “lua à vista / brilhavas assim / sobre Auschwitz?”.39
Profunda é a força poética que nos aproxima da catarse coletiva provocada pela barbárie. Cremos que pode ser encontrada em Wiesel a capacidade de narrar-nos a rotina dos campos de concentração,40 quando ali nos descreve o embrutecimento, o envilecimento que a violência é capaz de produzir no ser humano. Eram tragédias pessoais compartilhadas por milhões.41
Em certo trecho Wiesel nos oferece um poema que melhor nos diz acerca do sofrimento do que algumas das mais bem elaboradas teorias sobre o totalitarismo: Never shall I forget that night, the first night in camp, that turned my life into one long night seven times sealed. Never shall I forget that smoke. Never shall I forget the small faces of the children whose bodies I saw transformed into smoke under a silent sky…421
Talvez se sua força poética houvesse interrompido aqui a mostra da dilaceração de sua alma já nos houvéssemos com muito, mas não foi o caso. Era impossível ainda esquecer outras tantas coisas, outras tantas mortes diárias, vivenciadas ou meramente testemunhadas. Assim, seguia ele dizendo que Never shall I forget those flames that consumed my faith forever. Never shall I forget the nocturnal silence that deprived me for all eternity of the desire to live. Never shall I forget those moments that murdered my God and my soul and turned my dreams to ashes Never shall I forget those things, even were I condemned to live as long as God Himself Never43
Quem esqueceria a viva experiência de ver-se retirado psiquicamente de seu corpo ainda em vida, quem poderia olvidar a experiência de observar uma realidade compartilhada com tantos outros desafortunados em tal nível de segregação? Ninguém poderia, e Levi comenta que, “estranhamente, com o passar dos anos, essas lembranças não desaparecem nem se atenuam”.44 Poderia ser diferente o impacto na mente diferido no tempo? Não parece provável. Isto tem lugar porque, como sugere Foucault, há momentos em que o Estado opta por penas que segregam a pessoa em um espaço interior, a saber, “moral, psicológico, público, constituído pela opinião. É a ideia das punições ao nível do escândalo, da vergonha, da humilhação de quem cometeu uma infração”.45 O Estado projeta o horror, imprime a ferro e fogo sua marca na subjetividade que, ao que parece, não logrará desvencilhar-se dessas impressões malditas.
A ideia do regime era precisamente a de fomentar o surgimento de sentimento de aversão, de desprezo e de condenação aos grupos de pessoas visadas (judeus, comunistas, ciganos, etcétera) como forma de realizar seu projeto de poder. Tornar seus supostos inimigos desprezíveis e repugnantes era parte do processo. A política racial era, por exemplo, um instrumento retórico necessário para criar o ódio. A expropriação de bens e o extermínio de judeus eram, então, os eixos para a prática da violência. Não eram condutas irracionais, ao contrário, o nacional-socialismo lançava mão da melhor racionalidade, instrumental.
Estes planos encontravam metodologias de rígida execução, eram, neste sentido, racionalmente concebidos para que os meios empregados alcançassem os fins. Contudo, toda esta movimentação, como diz Arendt, tem como pano de fundo que a questão racial era, sobretudo, uma questão ideológica.46 Mas o genocídio foi além da organização burocrática, havia um pathos perante o mero ethos burocrático. Conforme nos conta Goldhagen, na iminência do final da guerra, e mesmo após ordens expressas de Himmler para que cessasse a matança, os “alemães comuns perpetradores do Holocausto, voluntária, fiel e zelosamente, massacraram os judeus”.47 Um dos problemas para perceber o massacre reside justamente em seu caráter diferenciador de tudo quanto se viu: a frivolidade para perpetrar a matança de milhões. Assim, como diz Baudrillard, se a morte de um pode importar, ser chorada e lamentada, o que dizer, como sugeria Baudrillard, da pouca importância de que esta única morte se reveste no meio de milhões?48
Contudo, persiste uma grande diferença da violência no Estado moderno e das penas conforme assinala Foucault para com regime do III Reich que é, precisamente, e por regra, que não havia uma infração a justificar esta ideia de punição. O sofrimento gratuito e sem-sentido degradava ainda mais profundamente os indivíduos e limitava suas possibilidades de sobrevivência, tanto psíquica quanto fisicamente.
Enfim, a dor intensa acompanhava a degradação exitosa promovida pela brutalidade institucionalizada e triunfante durante anos. Esta violên-cia é maximizada ainda pela falta de perspectiva certa de que se tratara apenas de um tormento passageiro. Novamente, através da poesia de Wiesel, nos surge o cinzento como a coloração da miséria da humanidade, e da humanidade imersa na degradação mais profunda, como dizia ele em trecho da citação anterior: “Never shall I forget those moments that murdered my God and my soul and turned my dreams to ashes”.49 Quem esqueceria momentos como estes?
Ao contrário desta inviável possibilidade, difícil mesmo é esquecer, ainda quando os esforços para tanto sejam sublimes. Há até mesmo relatos dos que tentaram livrar-se do pesadelo de ter sobrevivido aos campos e deram morte a si mesmos já em liberdade. Talvez alguns estivessem efetivamente ressecados a ponto de a morte advir como o ponto de descanso para um corpo e mente destroçados pela barbárie. Não é qualquer espécie de Schadenfreude (deleite na infelicidade). Em verdade, estas recordações que são capazes de conduzir até mesmo ao auto-aniquilamento. Por outro lado, Primo Levi é raro exemplo de sobrevivente de Auschwitz-Birkenau —o mais letal dentre os mortíferos campos nazistas— que viveu para dar seu testemunho, e sua obra é uma narrativa autobiográfica profunda pela história que as circunstâncias fizeram com que se tornasse um dos personagens.50
Tal vivência e sobrevivência não teve lugar sem deixar impressas as suas marcas, as quais lhe perseguiriam vida afora, como uma voz que fala para dar vazão a todos os discursos e fantasmas que lhe habitaram até seu último dia.51 Como diz Müller em sua leitura de Levi, o fato de haver sobrevivido “não significa apagar as marcas profundas deixadas pelo nazismo, mas aprender a conviver com elas…”.52 Borges parece resumir poeticamente o dilema ao recordar-nos algumas inscrições de castelos franceses: “O frontispício do castelo advertia: / “Já estavas aqui antes de entrar / e quando saíres não saberás que ficas”.53 Este “não saber que ficas” traduz com perfeição este terror n´alma que jamais parece ter abandonado aos sobreviventes em sua longa jornada de culpa e horror em vida”.
Quão poucos foram os sobreviventes para legar-nos testemunhos, escritos ou não que precisam atualizar-se tanto nas gerações atuais como em todas as gerações futuras. Nas gerações futuras o efeito já não é o de causar o sofrer, ou o estranhamento profundo, de induzir ao desespero do auto-aniquilamento. Ao contrário, a ideia é de que opere como antídoto para o surgimento do extermínio, de que perante velhas diatribes as massas saibam reconhecer o ovo da serpente, que diante de bandas e bandeiras, soberanos e seus asseclas, não se encontrem súditos dispostos à imolar-se perante a causa e seu ignominioso altar. Simplesmente por que não há a causa. Ao retomarmos estas lembranças, inevitavelmente recordaremos o quão profundo e degradantes são os poços a que a violência permite vislumbrar de perto.
Retomar a poesia aqui nos permite reencontrar-nos com uma dimensão da vida que pode engendrar novos limites ao sofrimento, ao padecimento inenarrável. Talvez esta seja questão central com a qual a arte e da literatura te de ajustar contas em nosso tempo, a saber, “que as experiências traumáticas decorrentes de catástrofes deixam marcas, mas o acesso a elas nem sempre é possível”.54 Contudo, a arte, em geral, tem dons de promover a auto-regeneração de tecidos humanos profundamente lesados, quiçá mesmo de alguns necrosados. Nisto cabe recordar com Gagnebin, segundo quem Criar em arte —como também em pensamento— “após Auschwitz”, significa não só remontar aos mortos e lutar contra o esquecimento, uma tarefa por certo imprescindível, mas comum à toda tradição desde a poesia épica, mas também acolher, no próprio movimento da rememoração, essa presença do sofrimento sem palavras, nem conceitos, que desarticula a vontade de coerência e de sentido de nossos empreendimentos artísticos e reflexivos.55
Retomando a poesia de Wiesel, queremos sugerir que ela também pode nos redimir de certa falta de visão histórica, que ela nos aproxima à crítica da crítica de Adorno quanto às possibilidades do estilo literário poético. A redução humana, a coisificação do ser presente na obra de Wiesel é descritível em sua poesia de forma abrumadora, nos penetra e descostura internamente, goteja suas lágrimas dentro de nós, impondonos intimamente através de suas palavras um sofrimento particular com ingente e singular força. A violência como política encontra-se também nesta capacidade de fazer sofrer a outrem através de forma organizada e coletiva, seguindo os trâmites engenhosa e meticulosamente previstos em uma estrutura burocrática —burocracia instrumental, em seu melhor sentido weberiano consoante a interpretação de Schmitt—56 que se valeu de homens que encontraram em Eichman, talvez, a sua melhor (e mais triste) síntese.
As forças destrutivas mais sofisticadas e organizadas do corpo invariavelmente começam pela desconstrução da mente, da subjetividade e do autorespeito, valendo-se para isto da conspurcação da dignidade humana. Os atores principais e secundários (os executores das ordens) puderam destruir de tudo, e muito. Contudo, não puderam destruir absolutamente tudo. Restaram os relatos dos sobreviventes. Eles puderam destroçar e mutilar corpos, mas não o verbo que transmite a lembrança e a dor. Assim, “quando as catedrais vêm abaixo, subsiste um saber, uma herança nos corações, que mina, como se fossem catacumbas, os palácios dos tiranos”.57
Os alicerces de suas próprias catedrais foram algo que os nazistas não puderam destruir, antes tão somente documentos e as provas materiais bem como algumas instalações quando a guerra foi perdida. Este saber que subsistiu nos corações dos sobreviventes projetou-se como lembranças da dor e ganhou forma no relato dos sobreviventes com intensidade tal capaz de fazer tremer os palácios e catedrais de candidatos a tiranos.
Os relatos precisam ser recuperados como forma eficaz e eficiente para o combate às violências. Toda a ignomínia se perpetua e recai sobre os crimes e seus autores mas apenas quando se tem notícia dela, e a mais penetrante forma de realizá-lo não são tratados filosóficos nem matérias jornalísticas apuradas e com sobradas fontes de informação mas, antes, através dos relatos, através da transformação de números e estatísticas em nomes, relações intersubjetivas e dores, dores de todos os envolvidos naquela exponencial tragédia humana.58
Eram os promotores da Shoah (ali onde os homens não passavam de potenciais cadáveres) realmente homens? A esta pergunta de Primo Lévi em uma de suas obras deveríamos, lamentavelmente, responder que sim. Maior a nossa intranquilidade ao fazê-lo, mas a resposta é positiva. Antes pudéssemos qualificá-los como puros animais, doentes ou pára-humanos, mas assiste razão em grande parte desta necessária resposta positiva ao trabalho desenvolvido por Arendt. Efetivamente, não são irracionais mas, antes, como diz a autora, o pano de fundo do racismo é uma questão ideológica.59
Não parece ser a melhor explicação, se alguma houver, qualificar os perpetradores do Holocausto como bestas ou animais. Para nosso maior estupor, eram homens e, ainda pior, melhor estar alerta ao argumento de muitos alemães no pós-guerra que, apenas para obter relativo conforto, sustentavam que “os alemães fizeram aquilo que outros também são capazes de fazer…, ou aquilo que outros farão em um futuro próximo; …é argumento reconfortante insistir sobre a hipótese de …que todos os homens são igualmente pecadores”.60
Por lamentável que pareça, aceitar suas observações pode ser bastante mais prudente quando pensamos nas futuras gerações e em evitar-lhes o sofrimento que as anteriores tiveram. Acaso pretendamos algum avanço nos direitos humanos o cuidado com a memória do passado será imprescindível. Eis aqui, portanto, uma das razões para que neste encontro que envolve violência e direitos humanos voltemos ao caso alemão.
IIA violência como política e a política na violênciaA literatura ao lado da filosofia nos oferece um mundo rico. Contu-do, esta última não consegue suplantar as misérias produzidas pela humanidade apenas projetando e, não raro, hiperdimensionado o curso de seu vale de lágrimas, tal como apontara Hobbes em seu momento. Para abordar a violência como política quero propor a análise cruzada de três autores, a saber, Arendt, Jünger e Schmitt.61
Os Estados totalitários encontram apoio na violência para a implementação de sua política. A rigor, como nos lembrava Brodsky, há apenas duas coisas que esses regimes permitem que os súditos tenham em comum com seu soberano: a doença e a morte.62 Contudo, e não é de pouca importância, tanto a doença do primeiro é mais cuidada como sua morte é alvo de maiores intentos para encontrar-se diferida no tempo. Sobrados cuidados com o soberano e, ao súdito, não raro, cuidados igualmente intensos, mas em sentido inverso: adoecê-lo para que morra ou, quando não funcione, executá-lo. Esta foi a lógica que o nacional-socialismo não deixou de seguir à risca e, não obstante, até o fim oficiais como Goering continuaram a defender o regime, mesmo sob julgamento no banco dos réus e com a pena de morte à espreita. Mesmo ali a crença inabalável na violência como método político permanecia ao dizer, entre outros, que a Alemanha não era afeita à democracia, mas que, isto sim, acreditava “no princípio da liderança [que] a Alemanha precisará de um líder forte no futuro, como sempre precisou”.63
Em seu prolífico estudo sobre os avanços do totalitarismo e o destino de seus personagens, Arendt nos fala dos homens que seguiram a lógica do sistema político baseado na comissão de assassinatos e que terminaram por perpetrarm a barbárie. Dentre eles, e talvez de forma lapidar, Eich-man, personificou o burocrata da morte, um dos máximos organizadores da racionalidade instrumental da morte. Talvez fosse excelente vizinho, dedicado pai de família, e nesta aprazibilidade é que vivem os verdadeiros tiranos.64 Perturbador, sem dúvida. Talvez fosse mesmo tão merecedor de encômios como Goebbels o era para Jünger.65 Mas apenas com os teóricos e organizadores, o Holocausto não teria podido alcançar sua dimensão real. Aqui uma das teses centrais de Goldhagen, que nos diz ter sido ne-cessária a adesão de muitos voluntários, de “perpetradores”, cujo prazer (sadismo) contrasta com sua defesa no pós-guerra, momento em que ar-güiram seguir ordens superiores.66
A violência desatada não era menos exatamente pouco conhecida dos cidadãos que, a rigor, e em diversas escalas, delas participavam. Participantes, quase todos, de forma direta ou indireta, uma vez que qualquer regime brutal (ou não) necessita de ordens que atinjam grau de eficácia mínimo e para isto a existência de um grupo de executores de ordens bem como de outro, de destinatários que lhes dêem cumprimento é es-sencial.67 Enfim, e nisto o escrito de Arendt precede ao de Goldhagen em algumas décadas, do que se trata é de que “homens isolados, sem outros a apoiá-los, nunca têm poder suficiente para recorrer à violência”.68 Mas se a violência realmente requer cúmplices, alguma finalidade ela haverá de ter. Dizia Jünger a este respeito, recordando Marx —embora desde outra leitura relativamente à necessidade da violência—,69 que não há parto sem dor. Mas qual parto haveria de justificar tanta dor? A rigor, não há o que justifique a dor a que se refere Jünger em suas entrelinhas.
Partindo desta observação de Goldhagen podemos questionar como efetivamente obter a concordância requerida em meio às práticas dos regimes autoritários? É interessante notar a este respeito, como nos diz Jünger, que mesmo as ditaduras precisam mostrar-se como abertas à liberdade cidadã de dizer não.70 No entanto, ainda assim, “as ditaduras não podem viver da pura adesão, se ao mesmo tempo o ódio, e com ele o terror, não dá o contrapeso”,71 ou seja, não lhe dá, por detrás do cenário, o suporte para que exerça e confirme sua vocação bárbara. Contudo, quem dirá o não às ditaduras vivendo nessas zonas de risco vital? Jünger sabe que as tiranias suprimem e aniquilam as liberdades.72
Em tudo isto parece encontrar-se subjacente em Jünger o argumento de que a violência vale-se de máscaras, mas de uma em especial, a da liberdade. E porque Jünger destaca o papel das máscaras para as ditaduras? Provavelmente o rosto de cada uma delas seja horripilante, incapaz de galvanizar o apoio das massas, e menos ainda de deles receber aclamação. Jünger nos diz que “as ditaduras não são apenas perigosas, estão ao mesmo tempo ameaçadas, uma vez que a ostentação brutal da força desperta igualmente a aversão”.73 A máscara ou maquiagem da liberdade torna-se, portanto, fator indispensável para a sustentação do regime.
Poderíamos entender ser esta capacidade assinalada acima a de atrair interesse ao regime mediante a ilusão da liberdade (que, aliás, não é es-tratégia exclusiva dos regimes totalitários, mas também estratégia política das democracias à busca de legitimidade) que ancoram o fazer político e, naquele, caso alemão, com sucesso até um certo momento histórico.
Mas e os homens que efetivamente cumpriram as ordens, o que dizer deles? Talvez, novamente acompanhando a Jünger, devemos reconhecê-los como aqueles a quem o autor se referiu como inclusos na categoria dos que não se comportaram de maneira exemplar. Talvez Jünger devesse dizer que o comportamento foi menos, muito menos do que exemplar, aliás, e bem mais precisamente, foi um contra-exemplo. Contudo, pergunta-se o próprio autor: “…por que é que nos calámos naquela altura e naquele lugar e passam-nos o recibo por isso. São estes os becos sem saída da época, aos quais ninguém escapa”.74
Todos os tempos são tempos em que nos temos de haver com suas vicissitudes. Não há períodos históricos em que as forças do imponderável se sobreponham a tudo quanto possamos de uma ou outra forma realizar no sentido de desconstituir forças que, aparentemente, são absolutamente arroladoras das nossas. Muito embora tanto Jünger como Schmitt e Heidegger tenham sido intelectuais bastante próximos e publicamente a serviço do III Reich. Em verdade, bem mais do que isto (notadamente o primeiro), talvez todos os três aqui considerados tenham refletido sobre a inflexão prática do dito por Jünger: “…nós sintonizamos sempre melhor a ameaça com a nossa acção do que com as nossas teorias”.75 Heidegger participou como dirigente acadêmico e teórico, Schmitt participou efetivamente do ponto de vista da concepção jurídico-política do sistema. Por seu turno, Jünger precisou tentar ocultar o melhor possível sua participação nas fileiras nacional-socialistas como, aliás, tantos outros indivíduos também tentaram.76 Acaso foi menos do que sintonizar melhor a ameaça com a ação? Além da dimensão política de sua teoria, a sua foi uma prática da filosofia como violência, uma vez que transgressora do fim último de qualquer de nossas atividades, e não menos dos desígnios do pensar, a saber, o ser humano.
Na oportunidade de receber o prêmio Lessing, concedeu a Arendt a oportunidade de homenageara o filósofo que emprestava nome à comenda e empreendeu estudo que nos interessa especialmente quando reflete que “Lessing provavelmente nunca acreditou que o agir pudesse ser substituído pelo pensar, ou que a liberdade de pensamento pudesse ser um substituto para a liberdade inerente à ação”.77 Esta leitura de Lessing o aproxima quanto ao ceticismo (não quanto ao conteúdo) do pensamento da tríade de autores trabalhados no parágrafo anterior. Lessing aparece em Arendt como pensador que coloca o agir em primeiro plano ante à mera concepção teórica. Neste sentido, a tríade de autores mencionada também prioriza a ação, muito embora pensem nisto para fins de ameaça, antes do que para instituir e preservar direitos.
É fato que as teorias de Heidegger, Jünger e Schmitt todos eles parecem ter servido ao obscurecimento, sob o calor abrasador da força de suas teorias (e práticas) nacional-socialistas daquela quadra histórica. Sob sua ação ou omissão, e isto pouco importa, tornou-se possível a tortura extrema nos campos de concentração, ali onde a lógica era ignorar o infortúnio do próximo, como disse o oficial nazista a Wiesel: Listen to me, Kid. Don´t forget that you are in a concentration camp. In this place, it is every man for himself, and you cannot think of others. Not even your father. In this place, there is no such thing as father, brother, friend. Each of us lives and dies alone. Let me give you good advice: stop giving your ration of bread and soup to your old father. You cannot help him anymore. …In fact, you should be getting his rations….78
A narrativa do oficial sobre o campo bem é elucidativa e bem nos demonstram que a institucionalização da violência transcendeu os limites do pensável e de qualquer imaginação dantesca do inferno na terra. Ali não havia parentesco nem amizade, não havia relações de proximidade, não havia solidariedade, não haveria, em suma espaço para qualquer sentimento que não fosse a aversão ao outro e ao desejo darwinista radical de sobreviver às custas dos desafortunados, neste grupo incluindo os menos resistentes como mulheres, crianças e os mais velhos. Estas considerações e o perfil dos indivíduos desenhados através da narrativa de Levy tanto quanto da poética de Wiesel parecem apropriadas e passíveis de serem conectá-las à questão que Levi utiliza como título de um de seus livros, qual seja, É isto um homem?79 E se não for, o que será? Ampliando, poderíamos afirmar que aquelas não eram condições concebidas para a vida humana (era para o extermínio), e que eles passaram a portar-se como se, efetivamente, não o fossem.
Assim, quando o oficial sugere a Wiesel que desconsidere salvar quem quer que seja, incluindo seu pai e que, ainda mais, aproprie-se e consuma sua ração de comida, podemos supor que em momentos como este alguns tenham dado ouvidos a vozes como esta com o pretexto de Jünger, a saber: “o sofrimento cresce até um ponto tal que o elemento heróico é necessariamente excluído”.80 Talvez um dos pontos de discordância relativamente ao que diz Jünger esteja nesta relação de necessidade do sofrimento e o desaparecimento do elemento heróico. Segundo e mais grave, é de saber se há alguma vida que valha a pena ser vivida à expensas destas lembranças de expropriação da oportunidade de sobrevivência de débeis à nossa volta.
Para apontarmos esta discordância recordamos ao próprio testemunho de Wiesel, o qual conta como, aquele jovem rapaz, em um primeiro momento, viu-se imerso no discurso do oficial e pronto a retirar-lhe a ração de seu pai. Contudo, momento seguinte, invadia-lhe a dor do remorso que lhe impedia a comissão da brutalidade sugerida.81 Então, sim, era ainda possível fazer algo pelo outro, ainda era possível, mesmo no sofrimento extremo, encarregar-se de ações de afeto e solidariedade. Amparar a queda daqueles que se inclinavam nas longas marchas ainda era possível, e à expensas de todos os esforços nazistas, sentir a perda do amigo caído em meio à corrida rumo a lugar nenhum.
IIIConsideracóes fináisO regime violento encolhe o homem, subtrai-o a si mesmo, lhe inclina sob um vale de onde observa a profundidade do despenhadeiro cuja trajetória percorrerá em queda livre. Assombra o medo da morte infinita. O regime lhe vai reduzindo ao nada com força insuperável. Perante uma crua realidade como esta, tanto Bobbio82 como Jünger reconheceram que estes tempos difíceis exigem condutas nem sempre perfeitamente compreensíveis em outros momentos. Em entrevista este último já dissera que “compruebo que contra un régimen cruel y feroz al final importa también la manera de enfrentarnos a él”.83 Contudo, sempre nos perguntaremos se, realmente, de alguma forma Jünger o fez, mesmo que “de alguma maneira”.
O terror, contudo, não terminou quando o final da guerra era algo mais do que palpável e com derrota para o III Reich. Após os campos de concentração e seus fornos crematórios encontramos as longas marchas,84quando já não eram mais possíveis ao final da guerra a operacionalização dos campos, que iam de algum lugar para nenhum lugar, apenas com o objetivo funesto da tortura e da produção da morte. Eram marchas que tinham o único sentido de fazer sofrer, de antecipar lentamente uma morte da forma mais dolorida possível, apresentando todas as cores do medo e do pavor antes do quase inevitável desfecho. Estas marchas continham a violência em estado bruto, mas não eram originais. Em Buchenwald, por exemplo, há relatos de prisioneiros obrigados a trabalhos absolutamente destituídos de sentido, tais como o de “carregar sacos de sal molhados de um lado para o outro e vice-versa.85 Era a impensável realização terrena da eterna e penosa mitologia grega de Sísifo.
Evidenciando esta concepção de trabalho, Goldhagen reforça seu argumento de que a concepção germânica de trabalho, quando seu destinatário fossem os judeus, tinha uma outra acepção, macabra. Ela significava apenas uma outra forma de realizar a matança planejada. Aí, talvez, a ex-plicação do irônico dístico à entrada de todos os campos de concentração, estrategicamente colocados sobre todos os portões de entrada, como se não pudessem deixar de saber o que lhes esperava: Arbeit macht Frei. Aos judeus restaria apenas a morte como a salvação do reino do terror? Quando esta é a única via que resta, poderia ser entendida mesmo a morte como liberdade ou, a rigor, realmente apenas como libertação do reino do terror?
Não obstante, mesmo com a decadência evidente, com a Alemanha moribunda, realidade perceptível até mesmo pelos internos nos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau. Mesmo ali, onde as informações eram escassas, como nos narra Primo Levi, os alemães continuavam sem perceber o advento do.86 Isto sim, os que percebiam algo eram imediatamente submetidos por um regime todavia mais repressor e violento contra os derrotistas, absolutamente fanatizados por negar a perda da guerra e a consequente queda do regime.
Eram tempos difíceis, e Jünger nos falou de momentos em que eram dados passos na floresta (Der Waldgang), metaforicamente referindo a tempos de medo e incerteza, talvez de diálogo com o terror. Nada do que nos possa ser dito retira de nossa natureza o temor, mas muito do que possa ser dito pode aumentá-lo, até atormentar-nos pela dilaceração do mergul-ho de nossa subjetividade em mares tão revoltos. Muito concretamente estes passos podem ser dados por nós, aqui, hoje, quando deslocamos nosso pensar da tarefa prática (o que, absolutamente, não é caso, dado o objetivo deste evento), quando secundarizamos problemas humanos objetivos (a miséria, a pobreza, etcétera) e a falta de perspectivas (falta de acesso à educação, desigualdade de oportunidade, escasso acesso ao Poder Judiciário, etc.) e, last but not least, mas sim em primeiro plano, a preocupação com a institucionalização do respeito à dignidade humana enquanto aversão à miséria e à violência contra o ser humano.
Profesor adjunto de Filosofía del derecho en la Facultad de Derecho de la Universidad Federal de Uberlândia. Doctor en filosofía del derecho por la Universidad Federal de Paraná (UFPR). Maestro en filosofía del derecho y teoría del Estado por la Univem (Marília/SP). Especialista en derecho constitucional y ciencia política por el Centro de Estudios Constitucionales de Madrid. Maestrante en filosofía y en letras (UFU). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3962302367059090
Em tétrica referência, dizia um dos guardas do campo de concentração que a chaminé era a única porta de saída para quem dali quisera evadir-se. Véase Levi, Primo, É isto um homem?, São Paulo, Rocco, 1988, p. 175.
Tais discursos tem espocado aqui e acolá em diversos centros, tanto literários, como religiosos e no mundo das relações internacionais, muito embora, oficialmente, restrinja-se a poucos Estados.
Goering em grande parte sustentava não saber do sucedido. Basicamente, seus argumentos eram de ordem pessoal e institucional. Primeiro, que ele, pessoalmente não era favorável ao extermínio de mulheres e crianças. Contudo, não se tratava de pruridos ingênuos de um alto oficial do regime, pois, se fôra para vencer a guerra, deixava claro, todo o genocídio não houvera sido necessário não seria óbice para que ele o ordenara, enfim, e em suas palavras, “não me incomodaria muito”. Pessoalmente, reiterava, considerava “inapropriado” o extermínio de mulheres e crianças, atribuindo a culpa do evento a Goebbels ou a Himmler (talvez aos dois), como se o segundo homem do regime estivesse tratando de uma questão absolutamente secundária da qual pudesse descuidar. Em segundo lugar, a questão institucional. Dizia Goering que não tinha notícia oficial do que acontecia nos campos de concentração e, ademais, se o tema fôra levado a debate haveria resistências. Ouvira, isto sim, rumores. Contudo, ora dizia crer que eram rumores dos inimigos, e em outros momentos apenas dizia ser inútil investigar pois, ademais “estava ocupado com outras coisas”. A mesma ideia acerca dos rumores do extermínio ao qual não deu crédito aparece em outro trecho e de ter descoberto que algo ocorria “se sentiria mal” (Ib.) e nada poderia ter feito para impedir. Em outro trecho Goering menciona que “talvez [grifo nosso] eu fechasse os olhos para o sentido real do que vinha acontecendo na Alemanha…”. Não obstante, em outro trecho de sua entrevista diz o contrário, a saber, que acaso os subordinados de Himmler houvessem vindo até ele, o todo-poderoso segundo homem do III Reich, como se gabava em sublinhar, “eu teria conseguido tomar alguma providência”. Do ponto de vista jurídico, como outros tantos a partir de então, levantou a tese da obediência devida. Dizia ele: “…como um alemão leal e seguidor de Hitler, eu aceitava as ordens como ordens”. Apud Goldensohn, Leon, As entrevistas de Nuremberg, São Paulo, Cia. das Letras, 2005, pp. 155, 160, 171, 173, 174, 175.
Neste sentido afirmava que, além de desconhecer, duvidava até mesmo da capacidade técnica de executar o extermínio nas dimensões em que foi realizado, Ibidem, pp. 155 e 170.
Como bem observa Flickinger, Schmitt “representou o papel do intelectual crítico” mas, isto sim podemos dizer, que ele transcendeu o papel do “intelectual crítico” para adentrar firme e decididamente no território pantanoso da crítica ideológica voltada aos interesses do nacional-socialismo. Portanto, se algum reparo couber ao dito por Flickinger, caberá, em primeiro lugar, retomar qual seja o papel do intelectual —mera exposição descompromissada de idéias?; compromissos com direitos e liberdades?— e, em seguida admitir que as próprias críticas levadas a termo por Schmitt, malgrado seu inconteste talento, por vezes foram rasteiras críticas cujo objetivo implícito era apenas a promoção da derrubada da ordem constitucional (e livre) então vigente mais do que “analisar, sem piedade, os momentos fracos de uma ordem constitucional”. Flickinger, Hans-Georg, Schmitt, Carl y Valls, Alvaro L. M., O conceito do político, Petrópolis, Vozes, 1992.
Müller, Fernanda, “Auschwitz e os desafios da representação”, Anuário de Literatura, vol. 13, núm. 1, 2008, p. 51.
A conhecida noite dos cristais recebeu o nome devido aos prejuízos causados às lojas de judeus através da quebra de vitrines de suas lojas bem como de vidros e cristais nas sinagogas. O episódio teve lugar em 9 de novembro de 1938, concomitantemente na Áustria e na Alemanha. O episódio não se restringiu ao quebra-quebra, mas estendeu-se à prisão e envio de aproximadamente trinta mil judeus para campos de concentração.
A este respeito ver a última seção deste artigo em que apresentamos a intervenção jurídico-política de Schmitt no sentido de provar a origem e a essência democrática do III Reich, uma vez que o Führer estaria atuando em consonância com os interesses populares e, ainda mais, sob determinação expressa dos poderes que lhe outorgara a Constituição.
Carl Schmitt é considerado por muitos, e com razão, como um dos expoentes do mundo jurídico do século XX, juntamente a prestigiosos nomes como Kelsen, Smend e Heller, dentre outros.
Mesmo na Kristallnacht há referências de que os alemães reagiram negativamente à queima e depredação dos bens dos judeus, muito embora não reagissem intensamente contras as agressões físicas de que foram vítimas, tal a propaganda do regime contra eles. Isto parece corroborar a tese de que a violência explícita imotivada não cala fundo e positivamente entre na população em geral.
O fato de que não possuam perspectivas de longevidade não ameniza, para nada, todas as dores de quem as padece, cotidianamente. Levi, por exemplo, dava ciência de que os três anos que lhe separavam de suas atividades como químico em Turim no ano de 1941 e que, após, passara internado Auschwitz-Birkenau lhe pesavam como se foram três mil anos, cfr. Levi, Primo, É isto…, cit., nota 2, p. 474; Jünger, Ernst, O passo…, cit., nota 1, p. 57.
Sobre alguns processos de pena de morte aos quais Hitler anistiou os condenados. Véase Gellately, Robert, Backing to Hitler. Consent and coercion in Nazi Germany, Oxford, UK Oxford University Press, 2002, pp. 39, 88 e 196.
Ao seu companheiro de farda Goebbels, Goering atribui os nada elogiosos adjetivos de criminoso, “fanático de dimensão anormal”, “ladrão demais”, “oportunista desonesto”, mas também “inescrupuloso, esperto e perigoso”. De Himmler dizia nunca ter confiado nele, “era um criminoso”. A Martin Bormann reservava outros vitupérios como “criminoso e primitivo”. Cfr. Goldensohn, Leon, As entrevistas…, cit., nota 4, pp. 155, 157, 173 e 174.
Kabuki é uma dança estilizada dramática típica do teatro japonês, a qual se dá com a colaboração de uma esmerada maquiagem sobre os atores. Parece ser este o caso dos alemães sobreviventes da Segunda Grande Guerra Mundial que foram alvo de uma estilização ideológica sob a qual representaram uma grande tragédia na qualidade de seus atores principais. Terminada a guerra, era de esperar que todo o teatro encontrasse seu ocaso mas, contudo, alguns permaneceram com suas máscaras, como não soubessem qual o lugar onde deveriam depositá-las após o espetáculo de horrores.
Em 1950, em sua primeira visita à Alemanha após a guerra. Arendt relata que a “realidade dos crimes nazistas, da guerra assim como da derrota, continua a dominar claramente o conjunto da vida alemã, e os alemães inventaram diversos meios para se esquivar à violência do choque”. Arendt, Hannah, “Após o nazismo: as conseqüências da dominação”, primeira parte, O Nó Górdio, ano I, núm. I, dezembro de 2001, p. 17.
Parece bastante relevante a retomada e devida contextualização histórica deste conceito de carrascos voluntários presente na obra de Goldhagen (ver 2005) para diversas análises sobre a violência nas sociedades contemporâneas. Goldhagen, Daniel, Os carrascos de Hitler, São Paulo, Cia. das Letras, 1997, p. 667.
O questionamento é válido para todos quantos lançam mão de cargos de poder para exercer diversos tipos de violência cujo retorno coletivo ou pessoal é inexistente. Nisto, desde logo, não está implícita qualquer sugestão de que o cálculo utilitarista fosse aplicável, ou seja, de que em havendo tal retorno estaria então justificada a aplicação da violência. Apenas visamos assinalar que a gratuidade da violência é um fenômeno que merece a devida atenção.
A ideia de que todos os cidadãos que se omitiram foram também culpados pelo Holocausto merece certa contextualização histórica mas, ainda assim, perante o genocídio, não termina de consistir em força argumentativa suficiente para eximir-lhes de responsabilidade.
Em uma tradução livre poderíamos dizer tratar-se de “cão imundo”. Jünger, procurando a narrativa poético-ficcional para fugir à crueza do tema, nos diz que não obstante as diferentes raças e nacionalidades —”tu és um Vermelho, um Branco, um Negro, um Russo, um Judeu, um Alemão, um Coreano, um Jesuíta, um Pedreiro-livre…” —, Jünger, Ernst, O passo…, cit., nota 2, p. 44, que, não obstante, todos eles eram “muito pior do que um cão”. Cfr. Wiesel, Elie, Night, cit., nota 11, p. 85.
A este respeito Goldhagen reforça a ideia de que havia um disseminado anti-semitismo entre os alemães, talvez até mesmo proveniente de Richard Wagner e sua concepção dos judeus como verdadeiros demônios terrestres, que propiciaram a extensão da barbárie para além dos limites pensados. À época, circulava entre os alemães até mesmo em esferas religiosas, o quão malévolos eram os judeus. Goldhagen nos conta de uma pesquisa realizada entre os anos de 1918 e 1933 em 68 números do semanário religioso Sonntagsblätter que os judeus e o judaísmo eram sempre temas ali presentes e com um sentido que era invariavelmente hostil. Goldhagen, Daniel, Os carrascos…, cit., nota 28, p. 120 e 424; Levi, Primo, É isto um…, cit., nota 2, p. 472.
Salgueiro, Wilberth, Poesia versus barbárie, Leminsky recorda Auschwitz (a lua em luto), p. 7, disponível em http://www.abralic.org.br/enc2007/anais/50/268.pdf (acessado em 5 de abril de 2009).
Quisera propor por um momento se entre nós igualmente não possuímos campos de concentração aos quais damos um outro nome, penitenciárias. Não nos encontramos os democratas igualmente empenhados minimamente, quando tanto, em atentar à esta realidade como, em seu tempo, o povo alemão? Ceteris paribus, providenciadas as diferenças históricas, não estamos incorrendo na mesma desídia e prática de crueldade contra seres humanos?
A este respeito encontramos vasta literatura. Levi, por exemplo, compõe bela obra, Se não agora, quando? (1999), na qual reconstrói parte daquela história do Holocausto e da guerra a partir de personagens fictícios, exceto Polina, a aviadora. Vale-se de documentos históricos, mas a obras é, fundamentalmente, ficcional. Isto, contudo, não impede que retrate com maestria um período em que várias daquelas narrativas que compõem o livro podem ter acontecido de forma bastante similar à qual nos narra.
Cfr. Arendt, Hannah, “Reflexões sobre a violência”, in Silvers, Robert et al., Rea S. 30 anos do The New York Review of Books. A Primeira Antologia, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, p. 131.
Neste sentido, é especialmente elucidativo o relato do autor extraído de Bauer, de uma companhia de manutenção alemã (Werkstattkömpanie) da SS que encontrou à estrada dois pequenos grupos de judeus desarmados que não representavam qualquer ameaça. Após serem torturados, foram fuzilados, cfr. Goldhagen, Daniel, Os carrascos…, cit., nota 29, p. 613. Um dos argumentos que os genocidas de mais baixa patente procuraram utilizar era o de que seria verdadeiro suicídio não cumprir as ordens de matar os judeus. Contudo, não consta qualquer registro de que alguém tenha sido executado por descumprir ordens. Depois de tudo, o que finalmente marca o assunto, é de que mortes a mancheia se deram sem que qualquer ordem ou mesmo necessidade de defesa estivesse em questão. Como sugerem situações como as descritas ao início deste parágrafo, o perfil era de execuções sumárias sem qualquer outra razão que não pelo puro prazer de matar. Goldhagen, Daniel, Os carrascos…, cit., nota 28, p. 395 e 404.
Cfr. Baudrillard, Jean, Tela-total: Mito-ironias do virtual e da imagem, Porto Alegre, Sulina, 2005, p. 156.
A respeito de obras literárias deste gênero Brodsky tem um trecho bastante elucidativo do ponto de vista: “O drama pessoal, para não falar do nacional, reduz, e na verdade chega mesmo a negar, a capacidade que o escritor tem de chegar ao distanciamento estético obrigatório para a produção de uma obra de arte duradoura. A gravidade da questão simplesmente cancela o desejo de criação estilística. Ao narrar uma história de extermínio em massa, ninguém tende a deixar correr o fluxo da consciência; e isto está correto”. Brodsky, Joseph, Menos que um…, cit., nota 36, p. 107.
Levi cometeu suicídio em 1989, aos 70 anos, quando ainda gozava de boa saúde. Assim, e talvez nunca saibamos ao certo, Levi talvez tenha sido uma vítima diferida no tempo dos horrores do nazismo, incapazes de desaparecer com mínimo vestígio com o transcurso do tempo, senão o contrário, como o próprio autor deixou escrito ao dizer que com o passar dos tempos as recordações vinham à memória, que pequenos detalhes do cotidiano, notícias de jornal e outras tantas coisas, eram capazes de suscitar as recordações daqueles tempos sombrios (cf. Levi, Primo, A trégua, Companhia de Bolso, 1997). Talvez a morte a qual se deu Levi se deva à incompreensão de porque foi ele o escolhido para sobreviver ou, ao contrário, de revoltar-se contra as suas ações para sobreviver, e conseguir, ou seja, de haver transigido com seus opressores, de haver trabalhado para eles e obedecido para alcançar viver após conhecer a miséria dos campos de concentração. Enfim, como procura sintetizar Levi: “quem se salvou não foram os melhores, mas os piores. Os que se aliaram à SS, os que traíram seus companheiros de infortúnio e os que se adaptaram a obedecer, a comer menos, a sentir frio, a passar sede, a negociar o pouco que tinham”. Apud Müller, Fernanda, “Auschwitz e…”, cit., nota 9, p. 9.
Arendt nos conta que a realidade da destruição na Alemanha entorpeceu as possibilidades de análise mais acurada dos fatos. A reação das pessoas nos anos sucessivos ao pós-guerra era praticamente inexistente, pareciam insensíveis à realidade. Neste período o relato de Arendt dava conta do estupor e negação geral do Holocausto e da busca patética por álibis. Para excelente artigo sobre o tema escrito no calor da época, precisamente no ano de 1950, véase Arendt, Hannah, “Após o…”, cit., nota 28.
Em alguns momentos surgem argumentos que procuram atenuar a culpa de certos teóricos que deram suporte ao nazismo e, por conseguinte, ao Holocausto. Schmitt foi um dos que, reconhecido seu brilho teórico, o emprestou abertamente ao nacional-socialismo. Em um trecho de seus livros, já na conclusão, afirma que a Constituição que derivara suas instituições de Weimar (e aqui, mesmo que indevidamente, emprestava legitimidade democrática daquela) afirmava que o êxito do enlace da vontade do Presidente do III Reich ao conectar com a vontade popular de forma direta, o permitiria tornar-se protetor e guardião da Constituição. Assim, concluía ele, “sobre el éxito de este intento se ha de fundamentar la existencia y la permanencia prolongada del actual Estado alemán”, Schmitt, Carl, op. cit., nota 56, p. 251.
Segundo nos comenta Brodsky, a seu ver aqueles que tem propensões à tirania logo encontram uma forma de projetar-se, e não raro o fazem em seu círculo familiar. Contudo, os verdadeiros tiranos “são reconhecidamente retraídos e não são muito interessantes em família”. Brodsky, Joseph, Menos que um…, cit., nota 37, p. 67. Esta é uma narrativa comum a várias das altas patentes nazistas em suas vidas privadas. Acerca do perfil pessoal de muitos dos altos escalões nazistas envolvidos no Holocausto há ricas referências em Goldensohn, Leon, As entrevistas…, cit., nota 5.
Jünger refere-se a ele em entrevista como “meu querido Goebbels”, em sinal de manifesta amizade e intimidade cfr. Jünger, Ernst, O passo…, cit., nota 1, p. 71, por oportunidade de lamentar-se pelos inúmeros ataques por ele sofridos.
Até onde entendemos, Marx nos fala que o Estado é um instrumento de dominação, que nele reside certa opressão enquanto serve aos desígnios de uma elite dominante de cujos interesses residem na exploração do trabalhador. Contudo, em nenhum momento, e aqui creio residir o divórcio entre ele e a apropriação parcial que dele parece pretender fazer Jünger, não há referência à legitimação do Estado opressor através da prática de brutalidades diversas e, por fim, do próprio extermínio. Neste aspecto, por exemplo, Arendt nos diz que a pregação da violência não encontra concordância com os ensinamentos de Marx. Cfr. Arendt, Hannah, “Reflexões sobre a …”, cit., nota 46, p. 107; Jünger, Ernst, O passo…, cit., nota 1, p. 47.
Triste é a referência a um dos melhores escritores e mais lúcidos pensadores alemães contemporâneos, o já célebre escritor Günther Grass, cuja tímida participação no regime recentemente tornou-se pública após anos e anos de ocultação por parte do autor.
Arendt, Hannah, “Reflexões sobre a violência”, en Silvers, Robert et al., 30 anos do The New York Review of Books. A Primeira Antologia, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, p. 18.
A polêmica em Bobbio reside em carta que escreveu ao Duce Benito Mussolini em que abertamente declarava pertencer, por origem e convicção, ao partido fascista. Curiosamente, o argumento de Bobbio não é muito diferente daquele apresentado no corpo do texto por Jünger, a saber, a vileza do tempo a envilecer os homens que nele quis o destino que tiveram de enfrentar suas vicissitudes.
Como nos diz Wiesel em seu tocante depoimento, em algumas destas marchas, as pernas iam mecanicamente à frente de um corpo e mente que já não as controlavam. Talvez como se elas próprias pensassem que, de mostrar o quão extenuadas se encontravam, o corpo todo pereceria ali mesmo, na estrada em meio a lugar nenhum. Como diz Wiesel “we were exhausted, we had lost all strenght, all ilusion” (Ib.). Como diz em outro trecho, “…from time to time, a shot exploded in the darkness. They had orders to shoot anyone who could not sustain the pace. Their fingers on the triggers, they did not deprive themselves of the pleasure. If one of us stopped for a second, a quick shot eliminated the filthy dog”. Wiesel, Elie, Night, cit., nota 12, pp. 85 e 87. Sobre estas extenuantes e torturantes marchas bem como o seu absoluto sem-sentido, dado o eminente final da guerra, nos narra Goldhagen. A rigor, diz este autor, as marchas representaram apenas “a continuação do trabalho dos campos de concentração e extermínio, da obra de Hitler e da obra de todos os alemães que contribuíram para a destruição de pessoas inocentes”. Goldhagen, Daniel, Os carrascos…, cit., nota 29, p. 395.