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Vol. 21. Núm. 1.
Páginas 53-59 (enero 2009)
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Páginas 53-59 (enero 2009)
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Do ensino disciplinar à formação interdisciplinar da cidadania no Ensino de Ciências
From disciplinary teaching to interdisciplinary training of citizenship in Science Education
De la enseñanza disciplinaria a la formación interdisciplinaria de la ciudadanía en la enseñanza de las ciencias
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Tathiane Milaré1, José de Pinho Alves Filho2
1 Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências, Universidade de São Paulo. Caixa Postal 66318, 05314-970. São Paulo, SP, Brasil
2 Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina. Departamento de Física, CFM/UFSC, 88010-970, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil
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Quadro 1. Conhecimentos Químicos e o Processo de ACT: possíveis relações.
Quadro 2. Conteúdos escolares de Ciências para o estudo do tema Mar.
Quadro 3. Relação entre conteúdos de Ciências para o tema mar e as disciplinas científicas.
Quadro 4. Aspectos ambientais, econômicos, políticos, sociais e tecnológicos para o tema Mar.
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Abstract

This article presents the characteristics of disciplinary Science Education developed in the last grade of elementary Brazilian school that oppose the proposed direction by the official documents and academic research. To show a possible alternative to this, it is presented a proposal for education based on the importance of interdisciplinarity and contextualization in basic education for the training of citizenship. Some points to be considered in the school program of science for the promotion of Scientific and Technologic Literacy of students are suggested, using as example the approach of the theme Sea.

Keywords:
science education
scientific and technologic literacy
elementary school
Resumen

Este artículo marca los problemas de las características disciplinarias de la enseñanza de la ciencia desarrollada en el último grado de la enseñanza primaria brasileña, que se oponen a la dirección propuesta en los documentos oficiales o por las investigaciones académicas. Para mostrar una alternativa posible a esta situación se presenta una propuesta de enseñanza basada en la importancia de la interdisciplinariedad y de la contextualización en la educación básica para la formación de la ciudadanía. Se sugieren algunos puntos a ser considerados para la promoción de la Alfabetización Científica y Tecnológica de los estudiantes, utilizando como ejemplo el abordaje del tema ‘Mar’.

Texto completo
Introdução

No contexto brasileiro, a Química e a Física, frequentemente, são divididas entre os semestres do ano letivo na oitava série3 e desenvolvidas como disciplinas separadas e desconexas, apesar de serem ministradas pelo mesmo professor — a maioria formada em Ciências Biológicas — e se tratar da disciplina anual de Ciências. Isso evidencia a antecipação da abordagem disciplinar das Ciências, que deveria ocorrer apenas em fases posteriores do ensino, além de contrariar o papel do Ensino de Ciências no Ensino Fundamental, no sentido de “desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável ao exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (Brasil, 1996, Art. 22).

Ensinar Química e Física no final do Ensino Fundamental é uma proposta herdada das finalidades do ensino de meados do século XX, quando até então houve, oficialmente, a predominância do modelo tradicional de ensino caracterizada pela transmissão-recepção de informações. Nesse modelo, as informações e os conceitos eram fragmentados, estanques e reunidos em “grandes pacotes temáticos correspondentes à Física, Química, Biociências, Geociências” (Amaral, 2000, p. 213).

No Brasil, a intervenção mais efetiva do Estado na organização da educação ocorreu no período do Estado Novo, de 1937 a 1945, que levou à criação das Leis Orgânicas do ensino para os níveis Secundário e Primário, correspondentes ao atual ensino básico4 (Zotti, 2006). Nesse período, definiu-se a obrigatoriedade da disciplina de Ciências para as terceira e quarta séries do curso ginasial (atuais sétima e oitava séries do Ensino Fundamental), assim como os conteúdos mínimos para cada série. Em linhas gerais, definiu-se, para a terceira série do curso ginasial, conteúdos sobre a Água, Ar e Solo, noções de Botânica e de Zoologia e o Corpo Humano e, para a quarta série, noções de Química e de Física (Domingues; Koff; Moraes, 2000). Quando o Ensino de Ciências passou a permear as demais séries do correspondente ao Ensino Fundamental atual, estes conteúdos foram distribuídos entre elas: Água, Ar e Solo para a quinta; Botânica e Zoologia para a sexta; Corpo Humano para a sétima e, finalmente, Química e Física para a oitava série.

Desta época aos dias atuais, ocorreram reestruturações na educação brasileira que repercutiram também no Ensino de Ciências. O caráter mais prático do ensino, a participação e o cotidiano dos alunos passaram a serem mais valorizados. As questões ambientais e a interdisciplinaridade ganharam espaço nos programas escolares e a Ciência passou a ser apresentada como um processo. Hoje temos propostas curriculares nacionais (Brasil, 1996) e estaduais como as do estado de Santa Catarina (1998) e de São Paulo (2008), entre outras, que enfatizam a necessidade da abordagem interdisciplinar, em detrimento do estudo dos conteúdos de forma fragmentada.

De modo geral, os documentos oficiais brasileiros não orientam a abordagem disciplinar da Química e da Física na oitava série. Ao contrário, sugerem o entrelaçamento das diversas áreas da Ciência. Nesta perspectiva, os conhecimentos de Física e de Química contribuem com o entendimento de situações significativas, independentemente da disciplina e da série em que a situação é explorada.

Atrelada à interdisciplinaridade, a abordagem temática também se faz presente nas diretrizes. Através da problematização de temas, é sugerido contextualizar os conhecimentos científicos e aproximá-los da realidade dos alunos. Trata-se de uma forma de atribuir sentido aos conceitos que poderão ser utilizados na vida dos estudantes. É importante lembrar, porém, que os temas não devem abranger somente o cotidiano dos alunos, mas, também, considerar as situações importantes para a sociedade como um todo. Alguns temas como, por exemplo, a influência do homem no meio ambiente e os processos de obtenção de energia, são sugeridos em todo o país, por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1998). Isso porque são temas importantes para o futuro da humanidade, em qualquer parte do mundo.

Outro aspecto importante e comum nos documentos oficiais nacionais e nas Propostas Curriculares dos estados de São Paulo e de Santa Catarina é o papel que o conhecimento científico possui na promoção da cidadania. Aprender Ciências deixa de ser apenas uma obrigação escolar, que os alunos buscam para passar de ano, e transforma-se em uma ferramenta para desenvolver sua cidadania e fundamentar suas próprias decisões.

Existem trabalhos (Lima; Silva, 2007; Maldaner, et al., 2007) que têm mostrado importantes iniciativas na reestruturação do Ensino de Ciências no nível Fundamental. Pontos comuns podem ser extraídos destes trabalhos e dos documentos oficiais e, de modo geral, ilustram algumas tendências para o Ensino de Ciências. São eles: (a) Preocupação com as concepções dos estudantes sobre conceitos científicos; (b) Foco na formação da cidadania; (c) Oposição ao ensino tradicional que considera o aluno passivo em sua aprendizagem; (d) Abordagem interdisciplinar; (e) Uso racional, crítico e limitado do livro didático; (f) Introdução de discussões sobre aspectos sociais, políticos e econômicos; (g) Uso de temas relevantes na sociedade moderna; (h) Uso de textos extras ao livro didático, atividades experimentais e outras novas metodologias e (i) Participação efetiva dos alunos em sala de aula (Milaré, 2008).

Mesmo com o aparente consenso a respeito desses aspectos, algumas contradições ainda persistem. Ao avançar nas fases escolares, os estudantes deparam-se, cada vez mais, com um ensino fragmentado, apesar do discurso a favor de uma abordagem interdisciplinar e contextualizada. Os programas escolares de Ciências da oitava série de muitas escolas são exemplos disso, pois sua formatação baseada na Química e na Física separadamente ainda permanece.

Diante dessa problemática, uma proposta de ensino interdisciplinar foi desenvolvida com a finalidade de contribuir com a Alfabetização Científica e Tecnológica (act) dos concluintes do Ensino Fundamental. Desta forma, o objetivo do trabalho é discutir como a Química pode contribuir com o processo de ACT para a formação da cidadania dos estudantes, em detrimento de sua abordagem disciplinar e dogmática cujo único “pseudo-objetivo” é preparar para o Ensino Médio.

Alfabetização Científica e Tecnológica: atribuindo um novo motivo para ensinar Química na 8ª série

Buscamos contribuir com uma proposta de ensino alternativa que amenize os problemas apresentados e atribua um sentido diferente a esta fase do ensino, que não seja unicamente a preparação para fases posteriores. Para isso, buscou-se apoio na ACT (Fourez, 1997).

A expressão Alfabetização Científica e Tecnológica trata de uma metáfora que reporta à importância do que foi a alfabetização no século XIX e indica saberes, capacidades ou competências que no mundo técnico-científico atual corresponde ao saber ler e escrever do passado (Fourez, 1997). Possui três principais finalidades ou objetivos pedagógicos (Fourez, 1997): a) no âmbito pessoal ou humanista, busca o posicionamento do indivíduo e o desenvolvimento de sua autonomia crítica diante do mundo técnico-científico atual; b) nos âmbitos cultural, social, ético e teórico, busca a comunicação entre os indivíduos, diminuindo as desigualdades originadas pela “falta de compreensão das tecno-ciências” (Fourez, 2002), e c) no âmbito econômico, busca o domínio e um melhor direcionamento dos conhecimentos.

Pretende-se que um indivíduo alfabetizado científico e tecnologicamente seja capaz de argumentar, negociar e dialogar com outros indivíduos, de enfrentar situações diversas e concretas de maneira racional, além de saber conduzir a relação entre saber-fazer e poder-fazer.

O alcance dessas finalidades da ACT auxilia os estudantes na conquista de um espaço na sociedade atual e na consolidação da democracia (Iglesia, 1997), uma vez que a participação e a tomada de decisões requerem do indivíduo iniciativa e posicionamento (autonomia), a capacidade de fundamentar suas opiniões (domínio) e de entender e ser entendido (comunicação). Assim, o processo de democratização será favorecido se as pessoas tiverem condições de participar, se desejarem, de debates e decisões. Além disso, para que um país seja científica e tecnologicamente desenvolvido, é necessário que sua população compreenda e tenha conhecimentos básicos em Ciência e Tecnologia além de ter pessoas bem qualificadas nas áreas científicas.

Para que um indivíduo esteja científica e tecnologicamente alfabetizado, segundo Fourez (1997), é necessário desenvolver capacidades ou objetivos operacionais.

A primeira delas está relacionada com o bom uso de especialistas, ou seja, de profissionais qualificados que prestam serviços em uma determinada área como, por exemplo, o médico, o mecânico, o eletricista, entre outros. O intuito é não deixar se enganar pelos especialistas, nem recorrer a eles de forma excessiva. Estas atitudes geram determinada autonomia e diminuem a dependência em um momento de decisão.

A segunda é a capacidade de fazer bom uso de caixas-pretas. O indivíduo deve saber quando e como é necessário se aprofundar em determinado conhecimento (abrir caixas-pretas) para resolver situações ou por interesse cultural. Ter a idéia de qual conhecimento é pré-requisito de outro também é necessário e auxilia na escolha de quais caixas-pretas devem ser abertas ou permanecer fechadas.

O indivíduo deve saber utilizar modelos simples, isto é, ter a capacidade de construir modelos simples, pertinentes a determinado contexto e evitar sistemas complexos desnecessários à situação vivida. Isto porque ele deve compreender que o valor de um modelo depende de sua finalidade e do contexto em questão. Saber utilizar modelos simples é essencial na formação do pensamento científico, considerando que “fazer Ciência é formar uma representação simplificada e reducionista da complexidade do mundo” (Fourez, 1997, p. 68).

Ser capaz de utilizar e criar modelos interdisciplinares é outra habilidade necessária na act apresentada por Fourez (1997). Trata-se de desenvolver a capacidade de enfrentar situações, considerando elementos como observações, conhecimentos das mais diversas áreas, incluindo os da vida cotidiana, aspectos econômicos, éticos e políticos, além da consulta a especialistas.

Não são poucas às vezes em que se utilizam, no Ensino de Ciências, seja durante as explicações do professor ou nos livros didáticos, metáforas, analogias e comparações. No dia-adia, elas comumente estão presentes nos meios de comunicação. Cabe também ao processo de act de um indivíduo, ajudá-lo a compreender e usar corretamente estas formas de expressão.

Outra capacidade relacionada à linguagem e expressão é o bom uso das traduções (Fourez, 1997, p. 73), ou seja, é desejável que o indivíduo saiba deslocar um problema de um contexto a outro, interpretar o significado de algo em diferentes momentos.

Na perspectiva da ACT, não basta ter os conhecimentos. É preciso desenvolver a capacidade de argumentar, negociar, utilizar os saberes na defesa de seu próprio posicionamento, seja diante de uma situação, durante uma conversa ou numa tomada de decisão. Trata-se dos critérios descritos como o bom uso da negociação e da articulação entre saberes e decisões.

Finalmente, é necessário que o indivíduo saiba diferenciar e fazer bom uso de aspectos técnicos, éticos e políticos conforme a necessidade imposta pelas situações em que vive. Não é adequado, por exemplo, utilizar argumentos e dados puramente técnicos em situações nas quais os aspectos éticos são mais apropriados.

Parte-se da idéia de que estas competências podem ser desenvolvidas em sala de aula desde que os temas a serem abordados e a metodologia a ser utilizada sejam compatíveis com os pressupostos da ACT. Neste contexto, o processo de escolha do programa escolar é importante. Segundo Fourez (1997, p. 29), “uma Alfabetização Científica e Tecnológica que se limita ao ensino de capacidades seria demasiadamente restrita. É necessário também eleger os conteúdos que serão ensinados”. A relação das capacidades, ou seja, dos objetivos operacionais, atrelada aos três princípios ou objetivos pedagógicos da ACT (autonomia, domínio e comunicação), podem servir para delinear o que se deve trabalhar nas aulas de Ciências da educação básica.

Considerando o tema Mar (a ser descrito mais profundamente a seguir), o conhecimento sobre as propriedades de alguns materiais, presença de metais pesados e efeito da água do mar na corrosão de alguns objetos metálicos, por exemplo, auxilia na conscientização acerca do descarte de dejetos e, consequentemente, da poluição das praias e oceanos. Trata-se do desenvolvimento do bom uso da negociação e da articulação entre saberes e decisões.

Conhecimentos químicos também são necessários na compreensão de termos empregados em boletins informativos e pronunciamento de especialistas sobre a qualidade da água do mar. Esses e outros exemplos de como as capacidades da ACT descritas podem ser relacionadas com os conhecimentos químicos são apresentados no Quadro 1.

Quadro 1.

Conhecimentos Químicos e o Processo de ACT: possíveis relações.

Objetivos e capacidades da ACT  Descrição da ação  Contribuição dos conhecimentos Químicos 
Bom uso da negociação e da articulação entre saberes e decisõesTomada de decisões e conscientização em relação à poluição.  Tipos e propriedades de substâncias e efeito de sua presença na natureza; Transformações Químicas (noção de biodegradabilidade). 
Tomada de decisões relacionada à escolha de proteção solar.  Ação e composição dos protetores solares; propriedades das substâncias. 
Bom uso de especialistas  Compreender relatórios, notícias e pronunciamentos de especialistas sobre a qualidade da água do mar.  Compreensão do significado dos termos e parâmetros utilizados, como por exemplo, soluto, solvente, pH, propriedades físico-químicas, etc. 
Bom uso das traduções  Utilizar em outros contextos os conhecimentos aprendidos durante a abordagem do tema Mar.  Aplicações, uso e outras formas de ocorrência de substâncias presentes no mar como, por exemplo, o sal. 

Deste modo, a contribuição da ACT neste trabalho relaciona-se com orientações de como deve ser a estrutura da proposta de ensino elaborada, atribuindo novos objetivos ao Ensino de Ciências da oitava série.

Contribuições da ACT ao Ensino de Ciências

Considerar os pressupostos da ACT para determinar os objetivos do estudo da Química no Ensino Fundamental pode ser uma proposta interessante e trazer bons resultados, uma vez que é uma forma de evitar o despejo massivo de conceitos e fórmulas de Química aos alunos. Pode estimular o pensamento científico não exigido na manipulação simples de conceitos e fórmulas para resolver exercícios de modo mêcanico — muitas vezes a única aplicação do conhecimento estudado.

Uma proposta sob esta perspectiva de ensino não deve desconsiderar o desenvolvimento de conceitos-chave ou noções básicas essenciais no estudo das Ciências. Os próprios PCNs abordam a importância dos conceitos-chave, citando os conceitos de vida, sistema, energia, matéria, espaço, transformação, tempo e equilíbrio (Brasil, 1998). É interessante promover nos alunos estas noções já estruturadas cientificamente e tão importantes para o aprendizado de conceitos e compreensões de fenômenos.

Os conteúdos estudados na 8ª série também fazem parte do programa escolar da disciplina de Química do Ensino Médio, mostrando a ocorrência de uma antecipação de componentes curriculares e do caráter disciplinar da Ciência nas fases posteriores de ensino. Porém, para Fourez (1995, p. 105), cada disciplina possui como base “um certo número de regras, princípios, estruturas mentais, instrumentos, normas culturais e/ou práticas, que organizam o mundo antes de seu estudo mais aprofundado”. A definição destes parâmetros, característicos de cada disciplina, é essencial na construção dos pensamentos subseqüentes, no desenvolvimento de seus conhecimentos, embora pareçam evidentes. E, “essa ‘evidência’ é um efeito que sobrevém somente após o estabelecimento de uma disciplina científica” (Fourez, 1995, p. 106, grifo do autor). Este estabelecimento não poderia ocorrer no Ensino Fundamental, onde o foco dado aos objetos de estudo deveria contemplar a Ciência como um todo. Para ser considerado alfabetizado científica e tecnologicamente, é preciso compreender os conhecimentos científicos em relação a noções provenientes de diversas disciplinas necessárias ao enfoque de contextos concretos.

A aprendizagem de conhecimentos químicos deve ocorrer concomitantemente aos conhecimentos de outras áreas da Ciência no Ensino Fundamental. A divisão das Ciências em disciplinas específicas ocorre no Ensino Médio e sua antecipação prejudica o processo de ensino e aprendizagem, uma vez que no Ensino Fundamental, não há tempo suficiente, nem professores com formação adequada para esta abordagem.

O conhecimento científico deve, então, implicar em um saber-fazer e em um poder-fazer, para melhor orientar as ações do indivíduo, proporcionando “um certo domínio e responsabilidade frente às situações concretas” (Fourez, 1997, p. 62). Na elaboração do programa escolar, os conteúdos escolhidos devem possibilitar uma ação mais apropriada e trazer certo domínio frente às situações da realidade. O conhecimento deve proporcionar ao indivíduo certa autonomia, uma “possibilidade de negociar suas decisões frente às pressões naturais ou sociais” (Fourez, 1997, p. 62).

Neste sentido, a problematização de situações cotidianas pode estimular o interesse e atribuir funcionalidade aos conhecimentos apresentados aos alunos. Como já discutido, os exemplos relacionados ao cotidiano apresentados nos livros didáticos não são suficientes. O uso de artigos de revistas e jornais, como muitos dos professores consultados fazem, pode contribuir na aproximação entre situações concretas e os conhecimentos estudados em sala de aula, promovendo um ensino contextualizado.

Outro aspecto que não pode ser deixado de lado ao se pretender promover a ACT é a concepção construtivista da Ciência. Nesta perspectiva, a Ciência é encarada como uma construção humana dependente dos contextos histórico e social (Fourez, 1998). Em sala de aula, estas idéias sobre a Ciência podem ser desenvolvidas a partir da abordagem de aspectos históricos da Ciência e da Tecnologia.

Assim, os seguintes elementos podem estruturar uma proposta de ensino sob a perspectiva da ACT: (a) Desenvolvimento dos objetivos da ACT; (b) Redução dos conceitos e conteúdos relativos à Química trabalhados na oitava série; (c) Desenvolvimento de conceitos-chave ou noções essenciais para a compreensão da Ciência; (d) Abordagem de aspectos históricos da Ciência e da Tecnologia; (e) Tratamento interdisciplinar das Ciências, evitando a fragmentação e a diferenciação das áreas científicas; (f) Abordagem temática; (g) Contextualização dos conteúdos trabalhados; (h) Aproximação entre o cotidiano, as idéias dos alunos e os conhecimentos científicos e (i) Possibilidade do uso dos conhecimentos na tomada de decisões.

Exemplo de interdisciplinaridade e formação da cidadania utilizando o tema Mar

O mar é um tema importante e desperta interesse dos estudantes, principalmente em regiões litorâneas como Florianópolis, em Santa Catarina, cidade brasileira rodeada por inúmeras praias. Diante da abrangência e pertinência dessa temática na formação básica dos cidadãos, em Portugal, o Ministério da Educação orienta oficialmente a inclusão do tema mar na área de projetos dos ensinos básico e secundário (Portugal, 2008).

Dentre outras possibilidades, a discussão sobre o tema pode ser baseada na contradição de que, apesar da imensidão de água do mar, é possível que moradores destas regiões sofram por escassez de água, principalmente no verão, com a chegada dos turistas ou estiagem, por exemplo. Busca-se, desta forma, compreender o que existe na água do mar que dificulta seu tratamento para o consumo humano.

O desenvolvimento desta proposta teve como base alguns questionamentos sobre a necessidade de se conhecer o tema. O que um aluno de oitava série, morador de uma cidade litorânea precisa conhecer sobre o mar? Como ele pode exercer melhor sua cidadania com base nestes conhecimentos? Qual a importância do mar para o desenvolvimento econômico de uma região? Quais os mitos ou crenças populares referentes ao mar podem ser discutidos em sala de aula? Que fatores interferem na formação de ondas e na qualidade da água do mar?

Para responder estas questões é necessário saber o que é o mar, qual sua composição, como se deu sua formação, além de quais seres vivos o habitam. Este é o primeiro passo do caminho para se evitar a poluição e preservar os ecossistemas marítimos, o que implica em uma prática cidadã em relação ao meio ambiente e à saúde humana. As atividades econômicas relativas ao mar, como pesca, turismo e navegação, podem ser estudadas considerando a importância para a sobrevivência das pessoas da região e o impacto ambiental gerado.

Desta forma, foram selecionados alguns conteúdos de Ciências para desenvolver o tema mar, como mostrado no Quadro 2.

Quadro 2.

Conteúdos escolares de Ciências para o estudo do tema Mar.

Assunto temático  Conteúdos escolares de Ciência 
Características da água do mar
Composição
Propriedades 
Substâncias
Misturas
Propriedades da matéria
Densidade (massa e volume) 
Água do mar versus água potável
Comparação da composição e propriedades
Processos de tratamento de água
Poluição 
Elementos químicos
Microrganismos
Concentração
Transformações 
Importância do mar no desenvolvimento econômico
Pesca
Cultivo de mariscos
Navegação
Aspectos históricos
Turismo 
Vida
Classificação dos seres vivos
Características dos seres marinhos
Característica dos vegetais (flora da região)
Ecossistemas
Marés Tecnologias da navegação, pesca e cultivo 
A praia e a saúde
Propagação de doenças
Exposição ao sol
Prática de esportes 
Estrutura e função da pele
Micro-organismos e as Doenças
Energia; Luz; Calor
Ondas; Movimento 

Os conteúdos apresentados provêm de diversas disciplinas. Nas características da água do mar e na sua comparação com a água potável, desenvolvem-se conteúdos da disciplina de Química (Substâncias, Misturas, Propriedades da matéria, Elementos químicos), de Física (Massa, Volume e Densidade), de Matemática (Frações, Cálculos de proporção, Conversão de Unidades) e de Biologia (Microrganismos) e, ainda, trabalha-se um dos conceitos-chave para compreender melhor a Ciência - a Transformação. O Quadro 3 mostra os conteúdos e conceitos-chave escolhidos para o tema mar e as respectivas disciplinas de origem, evidenciando o caráter interdisciplinar da proposta.

Quadro 3.

Relação entre conteúdos de Ciências para o tema mar e as disciplinas científicas.

Disciplinas  Conteúdos escolares de Ciências  Disciplinas  Conteúdos escolares de Ciências 
QuímicaSubstâncias  BiologiaCaracterística e classificação dos seres vivos 
Misturas  Ecossistemas 
Propriedades da matéria  Estrutura e função da pele 
Elementos químicos  Microrganismos 
FísicaDensidade (massa e volume)  Doenças causadas por microrganismos 
Marés  Conceitos-ChaveTransformação 
Luz  Vida 
Calor  Matéria 
Ondas  Energia 
Movimento   

Os conceitos-chave de Transformação, de Matéria, de Energia e Vida terão mais ênfase devido à compatibilidade ao tema proposto. A noção de matéria pode ser tratada na abordagem do que é a água do mar, quais suas composições e propriedades. O tratamento da água envolve diversas transformações. A noção de Energia pode ser trabalhada considerando a energia solar, as ondas do mar, a fotossíntese e a cadeia alimentar. Por fim, o conceito de vida pode ser tratado em conjunto com os ecossistemas marítimos.

A Figura 1 representa como os conhecimentos e subtemas sobre o mar podem ser conectados e trabalhados. Os aspectos da vida cidadã (Quadro 4) podem ser explorados, principalmente, no que diz respeito às atividades relacionadas ao mar, que incluem a pesca, as fazendas marítimas, o turismo, a prática de esportes e a navegação. Os alunos residentes em regiões próximas ao mar provavelmente possuem experiências de vida em alguma destas atividades, podendo contribuir com a discussão em sala de aula e no levantamento dos conhecimentos prévios.

Figura 1.

Relações entre tema, subtemas, conteúdos e aspectos para o tema Mar.

(0.26MB).
Quadro 4.

Aspectos ambientais, econômicos, políticos, sociais e tecnológicos para o tema Mar.

Aspectos  Possibilidades de abordagem relacionadas ao Mar 
Ambiental  Pesca predatória; Poluição das praias; Maré vermelha; 
Econômico  Importância econômica das atividades relacionadas ao mar; 
Político  Ações governamentais relacionadas à pesca e ao turismo. 
Social  Cultura; Esportes; 
Tecnológico  Tecnologias da navegação e pesca; 

Considerando os conteúdos apresentados, alguns aspectos históricos podem ser introduzidos. Entre eles estão as evoluções do conceito de elemento químico e da linguagem química e o desenvolvimento do princípio de Arquimedes e da teoria das marés.

A tomada de decisão pode ser estimulada no que diz respeito à poluição das praias, às doenças e aos efeitos da radiação solar, fatores diretamente relacionados com a saúde das pessoas e preservação do meio ambiente. Os alunos poderão tomar decisões sobre a preservação da praia e da água do mar, evitando o descarte de lixo ou fazendo campanhas. Em relação à saúde, poderão escolher métodos apropriados de proteção solar.

A avaliação da aprendizagem e do nível de ACT desenvolvido pelos estudantes pode ser feita pelo professor durante todo o processo de aplicação da proposta apresentada, através da observação das atitudes dos estudantes e da argumentação utilizada pelos alunos para explicar hipóteses e fenômenos durante a aula ou em atividades escritas.5 Portanto, a participação ativa dos estudantes em todas as atividades é de extrema importância.

Considerações finais

É necessária uma reflexão sobre os conteúdos de Química e sua forma de abordagem na oitava série do Ensino Fundamental, particularmente no Brasil. A antecipação de assuntos de maneira descontextualizada, sem outras aplicações visíveis além da resolução mecânica de exercícios, não acrescenta muito na formação dos estudantes desta fase do ensino. Ao contrário do desejado, ela pode reforçar a aprendizagem de conceitos equivocados e despertar o desgosto pela Química, em particular, e em ciências em geral no Ensino Médio.

Na proposta, foram selecionados alguns conhecimentos de Química, assim como de outras áreas da Ciência, sem intenção de esgotar, de maneira a auxiliar na compreensão de aspectos diversos do tema Mar. A contribuição desta proposta, comparando com o que tem sido feito nas aulas de Ciências da 8ª série (Milaré, 2008), refere-se ao tratamento de conceitos e conteúdos de Química atrelados aos de outras áreas, sem a necessidade de delimitá-los. Conteúdos como isótopos, isóbaros, ligações químicas, leis e velocidade de reações, por exemplo, que muitas vezes são ensinados nesta série com os objetivos encerrados em si mesmos, são deixados para serem mais bem trabalhados no Ensino Médio.

Apesar da proposta apresentada ainda não ter sido aplicada em sala de aula, ela foi avaliada por professores de Ciências que apontaram suas limitações e contribuições. Os aspectos positivos da proposta apontados pelos professores foram: a contextualização; uso de temas cotidianos e pertinentes; interdisciplinaridade e os exemplos práticos. Estes aspectos coincidem com as principais características da proposta, pois se buscou uma forma de desenvolver o Ensino de Ciências de forma contextualizada e interdisciplinar que favorecesse a Alfabetização Científica e Tecnológica.

Como aspectos negativos, foram destacadas duas posições divergentes por dois professores. Enquanto dois professores expuseram em suas respostas que os temas são insuficientes, um terceiro professor apontou que o tempo é insuficiente. Para este último, “os conteúdos são satisfatórios na proposta apresentada. Só precisaria de mais tempo para passar aos alunos. É pouco tempo. Às vezes falta tempo para todos esses conteúdos”.

É importante ressaltar que na proposta não foi designado o tempo necessário para desenvolvê-la, pois este depende das características dos alunos, da profundidade dos conteúdos e das estratégias de ensino adotadas pelo professor. O apontamento dos professores evidencia isso. Conforme o ritmo do professor e de sua turma, a abordagem de um tema pode ser insuficiente ou excessiva.

Segundo as opiniões dos professores, pode-se concluir que o ponto crítico da proposta desenvolvida encontra-se na quantidade de assuntos e o tempo necessário para desenvolvê-los. Uma resolução neste sentido requer um planejamento prévio e adequação dos temas nos objetivos do ensino e características do contexto escolar, o que compete aos profissionais que estarão em sala de aula.

A proposta apresentada está aberta, sujeita à agregação de novos fatores, à adaptação a outros cenários e a outras modificações que se fizerem necessárias em sala de aula. O exercício de desenvolvê-la mostrou que é possível fugir da mesmice do programa pregado pelos livros didáticos, contribuir com a Alfabetização Científica e Tecnológica e dar um sentido mais comprometido aos conteúdos de Ciências.

Neste trabalho, apresentamos uma maneira de evitar o excesso de conteúdos de Química trabalhados em Ciências da oitava série, sugerindo a abordagem apenas dos tópicos mais adequados e de serventia futura, o que aproxima o programa escolar dos direcionamentos presentes na legislação brasileira para a Educação Básica. Numa próxima etapa, ainda em fase de acordo com as escolas, a adaptação e a aplicação em sala de aula desta e de outras propostas da mesma natureza serão desenvolvidas junto com professores de Ciências.

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Considerada neste artigo como a última série do Ensino Fundamental. Nesta série, os alunos têm, em média, de 13 a 14 anos de idade.

O Ensino Básico Brasileiro compreende o Ensino infantil (crianças até seis anos de idade), o Ensino Fundamental com duração de nove anos (estudantes de 6 a 14 anos) e o Ensino Médio, de três anos (estudantes de 15 a 17 anos, em média).

Alguns exemplos de avaliação dos níveis de Alfabetização Científica podem ser encontrados nos trabalhos de Bettanin (2003), que utilizou fichas de observação para avaliar aspectos diversos da ACT, de Sasseron e Carvalho (2008), que descrevem indicadores do processo de Alfabetização Científica ou, ainda, em Fourez et al. (2002).

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