As angiodisplasias são as malformações vasculares adquiridas mais comuns do tubo digestivo e constituem a principal causa de hemorragia do intestino delgado em indivíduos com mais de 50 anos1,2. Numa proporção importante de casos são múltiplas (40‐60%) e/ou têm localização múltipla no tubo digestivo (20%), o que realça a importância de uma avaliação completa nestes doentes1,5. A hemorragia apresenta‐se na maioria das vezes de forma intermitente, com anemia ferropénica e/ou sangue oculto positivo nas fezes, e menos frequentemente sob a forma de hemorragia manifesta. No intestino delgado as angiodisplasias são a causa mais comum de hemorragia digestiva obscura – manifesta grave. O risco de recidiva hemorrágica em indivíduos não tratados é de cerca de 50%5.
A presença de estenose aórtica, insuficiência renal crónica ou doença de Von Willebrand são fatores de risco para hemorragia por angiodisplasias1,2.
O mecanismo de formação das angiodisplasias do tubo digestivo não é completamente conhecido. O fator implicado parece ser a obstrução crónica, intermitente e de baixa intensidade das veias da submucosa, resultante de um aumento de contractilidade da muscular própria, conduzindo a congestão capilar e hipoxia local, induzindo a formação de fatores de crescimento vasculares endoteliais locais (VEGF), com neovascularização e aparecimento de malformações vasculares1,5. Os doentes com estenose aórtica parecem possuir uma forma adquirida de deficit de fator de Von Willebrand tornando‐os mais predispostos à ocorrência de hemorragia. Estes mecanismos patogénicos constituem potenciais alvos terapêuticos1,3.
As angiodisplasias do trato digestivo superior estão na origem de hemorragia digestiva em cerca de 4‐7% dos doentes que se apresentam com quadro de hemorragia digestiva alta não varicosa1. No intestino delgado as angiodisplasias são a causa mais comum de hemorragia digestiva média, cerca de 50% dos casos, sobretudo em indivíduos mais idosos1. O cólon é a localização mais frequente das angiodisplasias. Nos indivíduos ocidentais, o cólon ascendente e o cego são as localizações mais comuns, enquanto nos indivíduos asiáticos é o colon descendente. As angiodisplasias do cólon podem ser a causa da hemorragia digestiva baixa em cerca de 3‐40% dos casos. O diagnóstico de angiodisplasias do cólon em indivíduos assintomáticos, sem anemia e sem história de hemorragia, durante a realização de colonoscopia, tem uma prevalência estimada de 0,83% e não implica necessariamente qualquer atitude terapêutica, uma vez que no decurso da sua história natural o risco hemorrágico parece ser baixo1.
O tratamento eficaz das angiodisplasias ainda constitui muitas vezes um desafio clínico. Estão disponíveis várias modalidades terapêuticas no tratamento das angiodisplasias, dependendo a sua escolha da forma de apresentação da hemorragia, do número e localização das lesões, condição clínica, patologias associadas e medicação do doente, e da resposta a tratamentos prévios. A endoscopia com uso de coagulação com argon‐plasma é atualmente a modalidade de escolha e com melhor relação custo/eficácia1,3, a angiografia com embolização superseletiva e a cirurgia estão habitualmente reservadas para a falência do tratamento endoscópico e/ou para o tratamento das hemorragias graves e potencialmente fatais. O tratamento farmacológico é utilizado nos doentes com lesões múltiplas e numerosas, inacessíveis a tratamento endoscópico, na falha de outras modalidades terapêuticas, ou quando outras terapêuticas mais invasivas estão contraindicadas pelos riscos ou efeitos colaterais associados, ou pelas comorbilidades do doente. O tratamento farmacológico pode ainda ser utilizado como adjuvante de outras modalidades terapêuticas. Os tratamentos farmacológicos utilizados têm sido a terapêutica hormonal, a talidomida e os análogos da somatostatina. Existem 5 estudos publicados que avaliam o tratamento hormonal combinado (estrogénio e progesterona), muitos deles com limitações na sua metodologia e desenho. O efeito benéfico encontrado nos estudos mais pequenos, retrospetivos ou não controlados não foi reproduzido nos 2 estudos com maior número de doentes e metodologias mais adequadas1,3. Se bem que existam alguns dados da literatura que apontem para um potencial benefício da hormonoterapia nalguns subgrupos de doentes, nomeadamente nos doentes com insuficiência renal crónica e na doença de Rendu‐Osler‐Weber1,3, a evidência atual é de que não existe lugar para este tipo de terapêutica, como primeira linha, na grande maioria dos doentes com angiodisplasias não hereditárias. O modo de atuação da talidomida é explicado pela sua ação antiangiogénica, através da supressão do VEGF1,3,5. A sua eficácia foi inicialmente reportada em vários casos clínicos e pequenas séries. Posteriormente, um estudo mais recente, prospetivo, randomizado e controlado, utilizando 100mg diários de talidomida per os durante 4 meses, demonstrou eficácia, com paragem da hemorragia em 46%, e diminuição de mais de metade dos episódios de hemorragia em 71% dos doentes, comparados com 0% no grupo controlo1. Esta terapêutica parece ainda possuir eficácia na prevenção da recidiva hemorrágica a médio prazo mesmo após a sua suspensão1,3. A evidência atual suporta o uso de talidomida em doentes sem indicação para outras terapêuticas ou na sua falência. A dose recomendada parece ser a de 100mg/dia, uma vez que doses mais elevadas podem associar‐se a maior número e gravidade de efeitos adversos, nomeadamente neuropatia periférica, hepatotoxicidade e falência hepática aguda, estando contraindicado nas mulheres em idade fértil1,3. A lenalidomida é um novo fármaco inibidor da angiogénese, potencialmente menos tóxico, cujo papel neste tipo de patologia carece de melhor avaliação1.
Vários mecanismos de ação como a inibição da angiogénese, aumento da resistência vascular, diminuição do fluxo sanguíneo no território esplâncnico e estimulação da agregação plaquetária podem explicar o papel do octreótido no tratamento da hemorragia por angiodisplasias1,3–5. O seu elevado custo e a necessidade de administração subcutânea diária durante períodos prolongados de tempo são potenciais desvantagens desta terapêutica. O long‐acting release octreótido (LAR), uma formulação de libertação prolongada de administração intramuscular mensal, tem sido mais recentemente utilizada. A sua eficácia não foi ainda avaliada em ensaios prospetivos randomizados e controlados. A maior evidência para a utilização do octreótido é suportada por uma meta‐análise de Brown et al. de 2010, onde foram estudados 62 doentes, de coortes prospetivas, com uma taxa de resposta global de 0,76 para o octreótido vs. taxas de recidiva de 44‐54%, reportadas em estudos que avaliaram a história natural de doentes sem tratamento1,4. A prevalência de cirrose hepática, insuficiência renal crónica, doença cardíaca valvular, nomeadamente estenose aórtica, e anticoagulação oral variou nos vários estudos, assim como o tipo de análogo, octreótido ou LAR, as dosagens utilizadas e o tempo de administração da terapêutica4. Está de facto por esclarecer qual a dosagem mais eficaz de LAR octreótido, se 10 ou 20mg, o tempo de utilização recomendado e se existe algum efeito do fármaco no desaparecimento das angiodisplasias.
Neste número do GE, Salgueiro et al. apresentam os resultados de um estudo retrospetivo em que se procura determinar a eficácia e segurança do LAR octreótido na prevenção da recidiva hemorrágica, em doentes com angiodisplasias, comparando os níveis médios de hemoglobina, necessidades transfusionais e número de hospitalizações, antes e durante o tratamento com este fármaco. Foram estudados 16 doentes, com uma idade média de 68,5 anos, a maioria com lesões no intestino delgado, e a quem foram administradas 2 doses de 10 e 20mg, i.m. mensais do fármaco, em 9 e 7 doentes, respetivamente, durante um período médio de 12 meses. Dois doentes em quem foram utilizadas doses mais elevadas experimentaram efeitos adversos5.
Apesar de retrospetiva, do número limitado de indivíduos e da ausência de um grupo controlo, trata‐se da série publicada com maior número de doentes e em que apenas 2 deles não responderam à terapêutica com LAR octreótido, um alegadamente por não adesão. Neste estudo não ficou demonstrado maior benefício com utilização de doses mais altas do fármaco, mas a presença de estenose aórtica (6 de 16 doentes) influenciou positivamente a resposta ao tratamento. De acordo com os autores, o aumento da agregação plaquetária condicionado pelo LAR octreótido poderá compensar em parte o deficit adquirido de fator de Von Willebrand descrito nestes doentes. Não é claro se algum destes doentes modificou ou suspendeu a terapêutica anticoagulante ou antiagregante durante o período do estudo, qual a percentagem de doentes submetidos a cirurgia com colocação de prótese valvular aórtica, o timing da cirurgia e se algum desses fatores influenciou a resposta ao tratamento. De facto, é controverso o papel da cirurgia valvular aórtica no curso clínico das angiodisplasias do tubo digestivo. Alguns estudos apontam para a reversão das alterações dos multímetros do fator de Von Willebrand, da função plaquetária e até mesmo cessação dos episódios de hemorragia, após cirurgia valvular aórtica1. Por outro lado, a obrigatoriedade de anticoagulação oral após cirurgia pode ser um fator que contribui para a manutenção ou agravamento da hemorragia, se bem que tal não tenha ocorrido pelo menos num estudo1.
O LAR octreótido parece ter um papel promissor no manejo destes doentes, mas serão necessários estudos prospetivos, randomizados e controlados que utilizem várias doses do fármaco, num número suficiente de doentes, de modo a poder‐se esclarecer a sua eficácia em diferentes subgrupos clínicos.