Orlando Ribeiro (Lisboa, 1911-Lisboa, 1997) foi provavelmente o geógrafo português com maior projecção internacional, autor de várias obras marcantes como A Ilha do Fogo e as suas Erupções (1954), Geografia e Civilização. Temas Portugueses (1961), Mediterrâneo, Ambiente e Tradição (1968) ou do livro que aqui se trata: Portugal, o Medi-terrâneo e o Atlântico (1ª. ed.,1945, com várias reedições). Organizador do primeiro Congresso da União Geográfica Internacional do pós-Guerra (Lisboa, 1949) e seu Vice-Presidente a partir de 1952, Ribeiro é também reconhecido por ter criado e organizado os Centros de Estudos Geográficos de Coimbra (1942-1943) e Lisboa (1943) e por ter sido co-fundador, em 1966 –em conjunto com Suzanne Daveau e Ilídio do Amaral–, da Finisterra: Revista Portuguesa de Geografia.1
Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico: Estudo Geográfico –muito provavelmente o mais conhecido livro de Orlando Ribeiro– acaba de ser reeditado pela editora de Lisboa Letra Livre, conforme a sua edição original de 1945, num contexto de come-morações do centenário do nascimento do autor. Apresenta a visão inicial do geógrafo sobre o país, a sua paisagem, as suas divisões fundamentais e os seus factores de unidade. Assim, esta edição não contém os conteúdos que foram sendo adicionados a partir da quarta edição, de 1986, com o intuito de actualizar a primeira edição, os quais incidiram sobre temas como a emigração, o turismo, a industrialização ou o crescimento urbano, em particular nos subúrbios das grandes cidades. A escolha desta versão para uma reedição prende-se com a sua coesão inicial e equilíbrio formais muito próprios que, de certo modo, tinham sido alterados com os sucessivos acrescentos entretanto feitos. Deste modo, podese apreciar distintamente o primeiro Portugal que Orlando Ribeiro analisou e descreveu. Resumindo a perspectiva que esta obra oferece, Portugal é visto como um espaço moldado por duas infuências, que tanto se fazem sentir no seu aspecto físico como cultural: o Mediterrâneo e o Atlântico. Assim se criam três regiões, duas claramente influenciadas por cada um desses grandes espaços, e uma terceira que correspondente a uma faixa interior onde as infuências oceânicas e a contextura mediterrânea se combinam com os efeitos decorrentes da proximidade relativa das regiões do centro da Península Ibérica. Orlando Ribeiro identifica cada uma destas regiões com uma paisagem própria, apresentada como uma imagem construída ao longo de vários séculos. A unir essas particularidades está uma herança histórica de tradição e civilização, cujas raízes mais profundas persistem desde a romanização. O livro é completado com cinco mapas de Portugal (sendo os temas a distribuição do relevo, da precipitação, do arvoredo, dos cereais e olivais e as divisões geográficas) em conjunto com textos explicativos e uma bibliografia das principais obras do geógrafo. Uma apresentação inicial escrita para esta edição por Suzanne Daveau, viúva e colega do autor, precede o texto principal e sintetiza a génese e a história das sucessivas edições desta obra.
O pensamento de Orlando Ribeiro nesta obra está claramente fliado na Escola Francesa da Geografia. Depois do seu doutoramento em Geografia pela Universidade de Lisboa, em 1936, com a tese A Arrábida, esboço geográfico, o autor frequentou a Sorbonne entre 1937 e 1940, onde obteve o lugar de leitor de português e contactou com nomes relevantes da Geografia e da Geologia francesas como Jacques Bourcart, André Siegfried, Henri Baulig e –sobretudo– os mestres Emmanuel de Martonne e Albert Demangeon. Aqui, Orlando Ribeiro teve a oportunidade de estudar os conceitos e métodos da tradição possibilista vidaliana, desde logo é visível na importância que dará na sua obra à articulação entre o espaço natural e os modos de vida. Também importante foi o contacto que o geógrafo português teve neste período com historiadores da École des Annales, nomeadamente Marc Bloch.2 Seguiu-se o período de escrita de Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, que começou em 1941. Durante o processo de redação da obra, Orlando Ribeiro manteve contactos regulares com geógrafos da Europa Central: por exemplo, em 1943 recebe o geógrafo alemão Hermann Lautensach, que escrevera duas obras geográficas sobre Portugal, e em 1944 recebe Emmanuel de Martonne, o seu mestre de Paris, e viaja com ele por Portugal.
É importante salientar o momento de construção desta obra. Ela é escrita num momento em que a geografia portuguesa se dedica à elaboração de uma Geografia de Portugal. Nos anos 30, Hermann Lautensach havia publicado dois volumes sobre Portugal: um sobre o país e outro sobre as suas regiões: Portugal, auf Grund eigener Reisen und der Literatur (1932-1937). Esta obra, apesar do seu valor científico, teve uma fraca divulgação nos meios científicos portugueses devido à barreira linguística. Aristides de Amorim Girão, professor de Geografia na Universidade de Coimbra, publica em 1941 um Atlas de Portugal e uma Geografia de Portugal. No entanto, estas obras não alcançam o reconhecimento de meios científicos exteriores, apesar de serem muito utilizadas em Portugal para o ensino escolar. Orlando Ribeiro, na obra que aqui se trata, empreende a criação de uma obra com qualidade científica de acordo com os cânones da Academia francesa ou da alemã, não criando apenas uma Geografia de Portugal, mas uma síntese crítica de Portugal e das suas principais regiões.
Na esteira da Geografia Regional francesa, empreende-se nesta obra uma busca dos factores que se congregam para a defnição da fsionomia particular de um território: a região, objecto de estudo do geógrafo, corresponde a um mosaico de aspectos reunidos numa determinada extensão de es-paço físico, formando uma identidade específica. De assinalar o entrosamento entre a Geografia Física e a Geografia Humana, apesar de Orlando Ribeiro trabalhar principalmente a segunda. A própria estrutura que os capítulos têm neste livro revelam-no: em cada um deles parte-se da análise aos aspectos físicos da região, passando para os modos de vida e a sua economia, terminando numa análise ao povoamento. Há uma dialéctica entre o espaço físico e a ocupação humana –a primeira influenciando a segunda e esta a moldar a primeira, tornando patente uma perspectiva ideográfica da Geografia. O resultado final é uma síntese entre as características naturais e a sua ocupação humana, demonstrando o modo de vida particular que se pratica, sem sistematizações gerais. Modo de vida é aqui tomado na sua acepção vidaliana, referindo-se à cultura local e às actividades quotidianas de um determinado grupo. Inclui os hábitos, as tradições, os saberes, a língua, os hábitos alimentares –enfim, tudo aquilo que está presente no quotidiano de um povo. Aquele que é descrito neste livro é o que Orlando Ribeiro considera o modo de vida dominante nas regiões mediterrâneas– a agricultura. O autor descreve as actividades de produção, enumera os produtos e analisa a sazonalidades deste modo de vida em Portugal.
No entanto, a análise que Orlando Ribeiro faz tem características específicas. Em primeiro lugar, é de assinalar a abertura para outros campos do saber e o enquadramento dos mesmos. Os conhecimentos e métodos da Etnologia, da Botânica ou da Geologia são integrados na caracterização da região. Largos parágrafos versam sobre a História, encontrando aí as causas para a disposição contem-porânea da paisagem humana. Na sua perspectiva, o território (e os modos de vida que dele fazem parte) é essencialmente visto como um objecto estático, verificado sem atender às mudanças em curso. Esta perspectiva está de certo modo em conformidade com a estabilidade relativa que o território apresenta durante o período estudado, anterior às grandes transformações nas paisagens sobrevindas na segunda metade do século xx. Ao mesmo tempo, esta interpretação reflecte a pre-sença de elementos teóricos da École des Annales, nomeadamente a temporalidade do espaço. A identifcação do território com os processos históricos que lentamente o moldaram é convergente com a noção de longue durée, que os defensores da «história total», como Marc Bloch, privilegiavam na sua análise em detrimento da «história factual» e que Fernand Braudel viria a teorizar mais tarde. De resto –e tal como o próprio Orlando Ribeiro também viria a reconhecer– a par das lições de Jules Sion que escuta no Sul de França em finais da década de 1930, as leituras de Braudel constituirão uma influência determinante para as suas reflexões sobre a originalidade do Mediterrâneo. Estas reflexões culminariam com a edição, em 1968, do referido Mediterrâneo, Ambiente e Tradição, livro que foi preparado ao longo da década de 1960 (Figura 1), num processo até certo ponto paralelo àquele que conduziu à edição muito ampliada de La Méditeranée et le Monde Méditerranéen à l’Époque de Philipe II, de Braudel, em 1966.
Em Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico é importante salientar o enquadramento do espaço analisado –o território português– num quadro maior de análise, que neste caso é o Mediterrâneo. Essa dupla escala de análise permite distinguir traços naturais ou culturais que são comuns a uma área maior ou traços que já são específicos da re-gião em foco. Aliás, Orlando Ribeiro apercebeu-se posteriormente daquilo que considerou uma falha grave na concepção deste seu livro. O país e as regiões que descrevia neste volume não findavam na fronteira política com Espanha, antes tinham continuidade geográfica nos territórios situados para além da linha de fronteira. Para ampliar o seu conhecimento das regiões de Espanha que faziam fronteira com Portugal –e, desse modo, corrigir as falhas que notava neste seu primeiro trabalho de síntese sobre o país–, Ribeiro chega estagiar em centros de investigação geográfica em Espanha. Em 1955, começa a dar forma a esse projecto de uma Geografia de Portugal revista, correspondente aos capítulos integrados no tomo V da Geografía de España y Portugal dirigida por Manuel de Terán. Cerca de três décadas mais tarde, Suzanne Daveau tentou dar forma à Geografia de Portugal sonhada por Orlando Ribeiro, reunindo nos 4 volumes de uma obra homónima (1987-1991) um vasto conjunto de escritos de diferentes épocas assinados por Orlando Ribeiro, Hermann Lautensach e por ela própria, acrescidos de comentários e actualizações da sua responsabilidade.
Passando para uma pequena síntese dos conteúdos desta edição Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, o capítulo I começa por definir a região mediterrânea, génese do padrão em que Portugal se insere. Fisicamente é uma região montanhosa, com um clima temperado e seco a maior parte do ano. Destaca-se a presença do mar como espaço de contacto e comércio, onde diferentes povos ao longo dos séculos comunicaram entre si. Em termos humanos, no entanto, as civilizações mediterrâneas tiveram sempre a sua base na terra e é a agricultura que tem maior peso nos modos de vida. O segundo capítulo descreve o Portugal mediterrâ-neo, em especial com a caracterização da agricultura portuguesa. É também defendido como Portugal, em termos físicos, para além dessa influência, está exposto a outras duas de relevância: a Atlântica e a continental interior. Orlando Ribeiro descreve as diferentes culturas e modelos de habitação que correspondem a essas influências. O terceiro capítulo, por sua vez, vem caracterizar o Portugal Atlântico. Reforça-se a ideia de regiões distintas em Portugal: o Norte, a Terra Fria, chuvosa e montanhosa, e o Sul, a Terra Quente, seca e plana. A infuência Atlântica verifica-se principalmente na primeira. De salientar também os grandes impactos que o contacto com o Atlântico trouxe a Portugal: a revolução na agricultura decorrente da introdução do milho nas colheitas e a grande infuência do comércio marítimo na economia portuguesa. Por último, no capítulo 4, Orlando Ribeiro resume as divisões fundamentais que compõem Portugal, identificando as dicotomias Norte-Sul, interior-litoral e terra alta-terra baixa. Sintetiza também as três principais regiões que identificou em Portugal continental: o Norte Atlântico, o Norte interior e o Sul. Apesar destas distinções, salienta-se a unidade do território. Apontam-se dois factores para essa mesma unidade. O primeiro corresponde às migrações interiores, bastante activas na sua sazonalidade. O segundo factor corresponde aos movimentos de civilização: a romanização, que se verificou de Sul para Norte, e a Reconquista, que se processou no sentido contrário.
Este livro pode interessar a vários públicos. Desde já, como clássico da Geografia portuguesa, irá interessar a geógrafos ou amantes da geografia que pretendam aprofundar o conhecimento acerca do que se fez na disciplina em Portugal. Paralelamente, oferece uma imagem muito valiosa do país essencialmente agrícola que Portugal foi até meados do século XX, ao mesmo tempo que concede pistas de leitura ainda hoje muito válidas sobre o processo que conduziu à formação de uma nação e à definição da sua identidade específica no contexto da Península Ibérica e da Europa. Trata-se de um importantíssimo ensaio, detalhado e minucioso, apresentado sob a forma de uma síntese exemplar.
A Finisterra: Revista Portuguesa de Geografia tem sido editada ininterruptamente até aos dias de hoje com uma periodicidade semestral, mantendo-se como uma revista de referência na sua área. Nos primeiros anos, os conteúdos publicados estavam ainda muito marcados pela infuência da Geografia Regional Francesa, conforme o atesta um volume de 1973 dedicado a Emmanuel de Martonne. Outro volume monográfico relevante foi editado logo em 1968, dedicado ao Primeiro Seminário Internacional de Geografia, organizado pelo Centro de Estudos Geográficos de Lisboa e onde participaram Etienne Juilliard, Pierre Dansereau, Jean Demangeot e Orlando Valverde, entre outros. Até meados dos anos 70, a par de numerosos estudos sobre Portugal sobressaem os artigos dedicados aos espaços tropicais, com destaque para o Brasil e –sobretudo– os territórios portugueses ultramarinos em África. A partir de finais da década de 1970 tanto se detecta o aparecimento de novas perspectivas teóricas e uma maior diversificação dos interesses temáticos resultantes, designadamente, da infuência da análise espacial de matriz anglo-saxónica, como aparece mais vincada a separação entre a Geografia Física e Humana. Na última década, destaca-se a importância que os Sistemas de Informação Geográfica ganharam nos estudos publicados.
Neste período, um debate acerca da pertinente inclusão de conhecimentos da geografia na história começa a desenvolverse na historiografia francesa, nomeadamente ao nível da influência dos aspectos espaciais na vida social e política. Os escritos que Fernand Braudel redigiu durante o seu encarceramento entre 1941 e 1944 acerca do conceito de geohistória haveriam de se tornar basilares. No seio desse debate epistemológico, estava implícita uma crítica ao modo como a geografia explicava a sociedade pelas questões espaciais sem ter em conta os processos da história social e política (para uma análise mais profunda a este assunto ver Ribeiro, 2012). Orlando Ribeiro não terá permanecido alheio a estas questões e as características desta obra que abaixo se explanarão espelham esse aspecto, particularmente no que respeita à multidisciplinaridade da análise.