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Inicio Latinoamérica. Revista de Estudios Latinoamericanos Perversão e trauma: impasses da política peruana contemporânea
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Vol. 62.
Páginas 195-226 (enero - junio 2016)
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Páginas 195-226 (enero - junio 2016)
FILOSOFÍA, HISTORIA Y POLÍTICA
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Perversão e trauma: impasses da política peruana contemporânea
Perversion and trauma: impasses of Peruvian contemporary politics
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Fabio Luis Barbosa dos Santos
Universidade Federal de São Paulo
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RESUMO

O objetivo deste texto é situar os impasses da política peruana atual em perspectiva histórica recente. Nos anos 1980, a conjunção entre a crise econômica sob o governo García (1985‐1990) e a violência perpetrada por Sendero Luminoso precipitou a divisão e o declínio da esquerda, fecundando terreno para o regime fujimorista (1990‐2000). A consequente degradação política resultou em uma situação na qual nenhum presidente elegeu seu sucessor, ao mesmo tempo em que o campo popular ainda não coagulou uma alternativa política nacional, em uma situação que explicita a rejeição ao neoliberalismo e também as dificuldades para confrontá‐lo.

Palavras‐chave:
Peru
Izquierda Unida
Sendero Luminoso
apra
Fujimori
ABSTRACT

The purpose of this text is to situate the impasses of contemporary Peruvian politics under the perspective of recent history. In the 1980's, the conjunction between economic crisis under García's government (1985‐1990) and the violence undertaken by Sendero Luminoso has contributed to the division and decline of the left, leaving the stage set for Fujimori¿s regime (1990‐2000). The following degradation of politics has resulted in a situation where no president has elected his sucessor, but at the same time, a national political alternative from a popular perspective has not emerged yet, which points to an impasse that makes explicit both the rejection to neoliberalism and the difficulties to overcome it.

Keywords:
Peru
Izquierda Unida
Sendero Luminoso
apra
Fujimori
Texto completo
INTRODUÇÃO

O objetivo deste texto é situar os impasses da política peruana atual em perspectiva histórica. Para este propósito, entendo necessário analisar as determinações que resultaram em uma inflexão política significativa no final dos anos 1980, momento em que, após um decênio de avanço da esquerda, a direita recobrou a iniciativa no país, situação que perdura na atualidade. Três elementos são fundamentais para esta análise: a trajetória da própria esquerda, cujos avanços e limites remetem ao regime velasquista e à cultura política prevalente; as ambiguidades do governo Alan García, que por sua vez, estão referidas à história do apra; a especifidade do fenômeno senderista, cuja complexidade evoca múltiplas dimensões contraditórias da formação peruana.

Embora eu não tenha condições de aprofundar esta ideia, acredito que os dois últimos fenômenos permitem uma analogia com a noção psicanalítica de perversão,1 na medida em que tomam como referência uma norma socialmente estabelecida para instrumentalizá‐la em sentido contrário, configurando um desvio que resulta em uma normatividade autoreferida, ou seja, instrumentalizada segundo interesses particulares distantes da sua finalidade original. Entendo que a relação do alanismo2 com o apra, e do Sendero Luminoso com a tradição guerrilheira socialista, é desta natureza. Também a relação de Fujimori com a democracia tem esta característica, em um país onde o regime militar não foi associado à repressão. Estas distorções propagaram interpretações políticas nebulosas nos três casos, uma vez que García poderia ser visto como um governo de esquerda, Sendero Luminoso poderia ser interpretado como uma guerrilha marxista, e o regime fujimorista, descrito por acadêmicos como um governo neopopulista.

Avançando um passo na analogia psicanalítica, entendo que a convergência entre desorganização econômica e violência senderista que marcou o final do governo García, gerou as condições objetivas e subjetivas para uma resposta política radical, em um momento em que a esquerda se desarticulava. Parafraseando Trotsky, o fujimorismo foi uma resposta traumática para uma situação traumática.3

Este regime assentou os fundamentos econômicos, sociais e jurídicos do Peru atual, constrangendo a trajetória subsequente da política nacional. Pois em contraste com outros países da região, em que o neoliberalismo desencadeou conjunturas críticas que impulsionaram o ascenso de governos identificados com a esquerda, como na Bolívia e no Equador, no Peru o choque neoliberal foi associado a um regime que pacificou e no limite, salvou o país, o que gera obstáculos suplementares para o seu enfrentamento. São as raízes históricas desta singularidade que pretendemos analisar como parte do esforço para entender o trauma, premissa para a sua superação.

NUEVA IZQUIERDA E IZQUIERDA UNIDA

As raízes da chamada nueva izquierda peruana remontam ao período entre 1959 e 1965, quando duas curtas experiências guerrilheiras se originaram a partir de desprendimentos dos partidos identificados com a esquerda, o apra e o Partido Comunista Peruano (pcp): o Movimiento Izquierda Revolucionário (mir), desdobramento do APRA Rebelde, e o Ejército de Liberación Nacional (eln), de inspiração guevarista. No ano seguinte a essas derrotas se conformou Vanguardia Revolucionaria (vr), organização paradigmática deste movimento, na qual convergiram ex‐militantes de Acción Popular (partido de Belaúnde Terry, o presidente deposto por Velasco Alvarado em 1968), trotskistas e marxistas independentes. Outras pequenas organizações se somariam a esta esquerda “nacional, mariateguista y chola”, na expressão de Carlos Malpica.

No final dos anos 1960 o apra já estava desalojado da liderança do movimento estudantil, e na década seguinte o apelo guerrilheiro daria lugar a uma atuação colada aos movimentos camponeses, embora a revolução permanecesse no horizonte político desta esquerda, que se propõe a fundar uma nova tradição socialista no seio da esquerda marxista, que não se identificava com o apra, nem com o pcp.

De fato, esta esquerda se construiu política e ideologicamente em oposição ao governo de Velasco Alvarado (1968‐1975), o que implica em um paradoxo, pois foram as transformações impulsionadas por este regime singular que criaram as condições objetivas para o avanço da nova esquerda: no campo, onde camponeses foram liberados de relações praticamente servis; em prol dos indígenas, que tiveram a língua quéchua reconhecida pelo Estado, em um país onde eram proibidos de circular nas calçadas em muitas cidades até então; entre os trabalhadores em geral, uma vez que se reconheceram mais sindicatos durante os sete anos sob o governo do Velasco do que em todo o período republicano até então; entre os servidores públicos, setor que se expandiu concomitantemente à presença estatal, que chegou a manejar 50% do pib do país; também nas periferias, onde modalidades de organização urbana como as Coperativas Urbanas Autogestinarias de Villa El Salvador foram estimuladas, ainda que sob um enfoque tutelar. Em resumo, a despeito do pouco tempo que as reformas velasquistas tiveram para assentar‐se e dos limites democráticos de um regime que teve intenção de monopolizar o poder, “se puede decir que en gran parte, la constitución, expansión e importancia de la Nueva Izquierda se explica por el velasquismo; éste crea procesos y fortalece actores que darían solidez a la izquierda peruana”.4

Na visão de seus protagonistas, a autonomia preservada frente a Velasco qualificou esta esquerda para resistir com relativo êxito à ofensiva contra os trabalhadores desencadeada pelo segundo momento do Gobierno Revolucionario de las Fuerzas Armadas, liderado por Morales Bermúdez. Foi o vigor da greve geral de julho de 1977, à qual o Estado reagiu despedindo cerca de 5 mil sindicalistas, que convenceu o regime de que havia dois caminhos para conter o ascenso das massas: uma ditadura repressiva inspirada nos vizinhos do Cone Sul, ou uma saída política negociada com os partidos convencionais. É neste momento que os militares e o apra se reconciliam em uma chave conservadora, convocando‐se uma assembleia constituinte para o ano seguinte, presidida por este partido.5

Inicialmente, a esquerda se dividiu quanto à conduta a adotar frente a perspectiva de transição, mas afinal disputou o pleito constituinte, em que somadas as distintas legendas, arrebata um terço dos votos. Apenas duas agremiações não se incorporam neste momento ao processo legal: pcpPatria Roja (pr), que ingressará nas eleições seguintes e o pcpSendero Luminoso (sl), que declarará guerra ao Estado pouco depois. No entanto, ambiguidades permeiam o processo e alguns constituintes como Hugo Blanco, provavelmente o trotskista que maior votação já recebeu na história, não assinaram o documento final. Mas no conjunto, prevaleceu a leitura de que era prioritário garantir que os militares demitiram do poder, o que estes só se comprometiam a fazer mediante uma transição negociada.

A constituinte foi sucedida por uma eleição presidencial em 1980 que aguçou o dilema em relação à postura a adotar frente ao Estado, para uma esquerda de matriz revolucionária que identificava, em grande medida, “claudicación política y camino electoral”.6 Havia uma convicção arraigada de que as forças da ordem jamais permitiriam um governo de esquerda, o que incidiu nos cálculos políticos até o final da década. Em linhas gerais, à exceção de Sendero, a questão fundamental neste momento não era a participação eleitoral, mas sim o papel deste instrumento em um horizonte de transformação social.

Houve uma tentativa por aglutinar as frações mais radicais da esquerda em torno da Alianza Revolucionaria de Izquierda (ari), tendo em vista as eleições presidenciais de 1980. No entanto, esta aliança só durou três meses e foi rompida por diferenças mesquinhas entre as dirigências políticas, o que gerou uma frustração até hoje insuperada para alguns. Comparecendo desunida a este pleito, as sete candidaturas de esquerda somadas receberam cerca de 13,6% dos votos, menos da metade do que colheram dois anos antes. Em amarga ironia, resultou eleito Francisco Belaúnde Terry, o presidente que Velasco Alvarado depusera em 1968.

O fracasso da ari não significou a impossibilidade de uma aliança de esquerda, mas sim que esta nasceria de uma derrota, o que teve implicações decisivas. Ao conformar‐se Izquierda Unida (iu) poucos meses depois, a liderança política desta nova frente caberia ao setor mais moderado das esquerdas, que havia apoiado a Velasco. Esta tendência personificou‐se na figura de Alfonso Barrantes, cujo principal atributo político parece ter sido não identificar‐se com quaisquer dos grupos rivais, além do significativo carisma popular que lhe levou à prefeitura de Lima. Izquierda Unida adotou um perfil precipuamente eleitoral, e as possibilidades de estabelecer nexos orgânicos com o movimento popular foram pouco aproveitadas. Este distanciamento certamente colaborou para que rixas interpartidárias ou interpessoais prevalecessem sobre projetos comuns, perpetuando uma lógica herdada dos anos anteriores.

Assim, segundo o testemunho autocrítico de outro protagonista deste processo, enfrentava‐se “un nuevo escenario con viejas herramientas”.7 A despeito de limitações culturais e sociais que restringiram o alcance político desta frente, as forças populares resistiram com relativa eficácia à arremetida antipopular do governo Belaúnde Terry em um contexto de crise econômica, postergando a investida neoliberal para a década seguinte. No plano eleitoral, Izquierda Unida consolidou‐se como a segunda força política do país: em 1983 Alfredo Barrantes venceu as eleições em Lima, tornando‐se o primeiro prefeito socialista das Américas, como se dizia. As eleições nacionais de 1985 foram vencidas pelo candidato aprista Alan García, o mais jovem presidente da história do país, que se anunciava como uma espécie de reencarnação do falecido Haya de la Torre. O mesmo Barrantes ficou em segundo lugar e em uma decisão controvertida, renunciou a disputar o segundo turno.

Neste momento, a esquerda peruana era considerada como uma das mais poderosas do continente e o horizonte político nacional parecia promissor: o país era presidido por um partido filiado à Internacional Socialista que tinha como principal força de oposição uma frente partidária à sua esquerda, além de experienciar movimentos guerrilheiros em um contexto em que esta forma de luta estava extinta na América do Sul, à exceção da Colômbia.

De fato, Izquierda Unida e seu líder Alfonso Barrantes eram vistos e se viam como favoritos à sucessão de García em 1990. No entanto, a frente se esfacelará e a esquerda se apresentará a estas eleições dividida em duas candidaturas que somaram 13% dos votos, dos quais cerca de 5% são para Barrantes. Venceu um azarão até então desconhecido, mas que teve uma ascensão meteórica nas semanas finais da campanha e levou no segundo turno, Alberto Fujimori.

O que aconteceu? Esta pergunta tem sido enfrentada pela esquerda peruana, uma vez que a avaliação crítica e autocrítica desta experiência é entendida como premissa para reconstruir o campo da esquerda, que perdeu a iniciativa política desde então. Examinando em perspectiva mais ampla a situação política do país na atualidade, Quijano a atribui à convergência de três fenômenos, aos quais se refere como “fujimontesinismo”, que “completa la degradación del país, la putrefación de su aparato institucional”, em um processo acelerado pelo “alanismo”, descrito como “un hijo del apra que no tiene nada que ver con el para”, e o “senderismo”, interpretado como uma “ultra contrarevolucionaria”.8 No entanto, de um ponto de vista histórico, observamos que alanismo e senderismo colocaram a esquerda peruana diante de impasses que levaram a direita a retomar a iniciativa política, gerando o contexto em que se desenrolou a ditadura fujimorista (1990‐2001).

ALANISMO E IZQUIERDA UNIDA

No plano político, o desmoronamento da iu está associado às ambiguidades com que se relacionou com a primeira força política do país neste momento, o apra e o presidente Alan García. Especificamente, o grupo em torno de Alfredo Barrantes acreditou em um cenário de alternância presidencial informalmente acordado, que teria sido insinuado pelo próprio García, cujo governo começou prenhe de ambiguidades e terminou em meio ao caos.

García assumiu um país que vivia um “desborde popular”, segundo a conhecida formulação de Matos Mar. Do ponto de vista social, a intensa migração às cidades em um contexto de crise econômica e retração do Estado agravou o descompasso entre crescentes demandas sociais e econômicas populares, e as limitadas possibilidades de integração do Estado e do mercado. Em termos políticos, García pretendeu socavar a esquerda e neutralizar a direita, ao mesmo tempo em que lidava com o golpismo dos militares e a guerrilha no interior do país. No plano econômico, o líder aprista assumiu um país em depressão desde 1983, nos marcos da crise da dívida que assolava a região. Contrapondo‐se a seu antecessor, propôs uma política heterodoxa, mas que foi insuficiente para impedir enormes déficits em transações correntes, problema foi agravado pelo isolamento internacional do governo, que não conseguiu adesões à sua proposta de restringir o pagamento da dívida a 10% das receitas das exportações, ocasionando a ruptura do fmi e do bird com o país, ainda que na prática, esta meta não tenha sido cumprida. No conjunto, os problemas no balanço de pagamentos acentuados pela fuga de capitais agravaram a crise cambial e pressionaram a inflação, que logo derivou em uma hiperinflação. Chossudovsky critica a política econômica aprista nestas palavras: “O modelo econômico fora definido em termos técnicos rasteiros, sustentados por uma retórica populista: a Apra não tinha a base social nem a vontade política, sem falar no apoio popular organizado, para implementar reformas sociais e econômicas importantes e sustentáveis em áreas como reforma tributária, regionalização, reativação da agricultura e apoio às unidades de produção de pequena escala da economia informal. Por trás de seu discurso populista, o governo da Apra não estava inclinado a tomar atitudes que contrariassem diretamente os interesses das elites econômicas”.9

Em meio às ambivalências do processo, a medida que selou a sorte do governo no plano econômico como no político, foi a súbita nacionalização do setor bancário em julho de 1987. Anunciada à revelia do grupo conhecido como os “12 apóstolos”, que congregava os mais poderosos empresários do país e servia como interlocutor do governo com este setor, a medida teve como principal efeito a “ressurreição instantânea da direita”, liderada pelo escritor Mario Vargas Llosa.10 Motivada por considerações políticas antes do que econômicas, a iniciativa foi obstaculizada por meios legais pelo setor financeiro, desencadeando uma disputa que levou o governo a abandonar o projeto. Como saldo, rompeu‐se definitivamente a confiança entre os negócios e García, acentuando de modo exponencial as dificuldades econômicas do governo: segundo o Banco Mundial, o pib decresceu 8.8% em 1988 e 14% em 1989; entre dezembro de 1987 e outubro de 1988, os salários reais no setor privado despencaram 52% em média, enquanto no setor público, a queda foi estimada em 62%; o poder de compra do salário mínimo caiu 49% entre julho de 1985 e julho de 1990; a inflação atingiu 1.700% em 1988, 2.800% em 1989 e 7.600% em 1990. Neste cenário, García perdeu o controle da agenda política nacional e em 1988 implementou a primeira tentativa de choque anti‐inflacionário, sem sucesso.11

Izquierda Unida foi um dos poucos segmentos sociais que defendeu publicamente a estatização dos bancos, convocando inclusive uma mobilização popular em Lima. Embora fosse uma proposta coerente com o programa histórico da esquerda, a defesa desta medida executada por um governo orientado por oportunismo político e não por uma pauta classista, e que se afundava em meio a contradições e corrupção, minou o prestígio político da iu. Em termos subjetivos, esta posição remete às ambivalências da esquerda na relação com o apra, partido que há muito não era progressista, mas que manejava motivos nacionalistas e sociais em um momento em que a conjuntura nacional se inclinava para a esquerda. No entanto, as expectativas de alternância presidencial rapidamente frustraram‐se, pois García desconsiderou o protocolo do ofício e interveio abertamente na campanha para a prefeitura de Lima em favor do candidato aprista, que derrotou Barrantes por estreita margem. Não obstante a derrota na capital, o número de votos obtidos pela iu em nível nacional cresceu em 1986, ratificando sua posição de força.

Entretanto, quando as eleições presidenciais se aproximaram em 1990 o país vivia um momento bastante diferente, marcado não somente pelos agudos problemas econômicos já descritos, mas também pelo incremento da ação militar urbana de Sendero Luminoso, uma vez que a partir de 1989 sua liderança acredita estar em condições de conquistar o “equilíbrio estratégico” de que falava Mao.12 É neste contexto que se desenrola o “I Congreso Nacional de Izquierda Unida”, que também será seu último pois curiosamente, em seu primeiro congresso a unidade se desfaz.

Segundo numerosos testemunhos, o motor fundamental da cisão foi a leitura feita por Barrantes e seu grupo, segundo a qual seria necessário se desenvencilhar dos setores mais combativos de IU para atrair o eleitor moderado e vencer as eleições.13 Também se ponderava que o exército dificilmente toleraria um governo mais radical, em um momento em que havia grande inquietação em relação à insurgência senderista. Conforme adiantamos, o resultado eleitoral da cisão foi que Barrantes teve ainda menos votos (5%) do que a candidatura de Henry Pease pela iu (8%), e ambos somaram 13%. Mas para a compreensão dos motivos e do alcance desta derrota para a esquerda peruana, mais além “de los micropartidos con lógicas corporativas que se camuflaban tras un discurso ideologicamente radical”,14 é necessário examinar o fenômeno do Sendero Luminoso.

SENDERO LUMINOSO

Ao contrário do que sugere o ideólogo mexicano Carlos Castañeda em “Utopia Desarmada”, Sendero Luminoso não tem afinidades com o que é descrito como uma “segunda onda” guerrilheira no continente, incluindo os movimentos centro‐americanos e o M‐19 colombiano.15 Entender a singularidade desta insurgência é uma tarefa complexa, a qual se dedicaram notáveis intelectuais, principalmente peruanos.16 Fazendo uma analogia com Benedict Anderson, quando sugere que a natureza do nacionalismo está mais próxima de estruturas de parentesco ou religiosas do que de fenômenos ideológicos como o liberalismo ou o socialismo,17 entendo que a compreensão da insurgência senderista remete a desajustes sociais em um país em trânsito entre a referência nacional‐desenvolvimentista e o neoliberalismo, que na América Latina também potenciou fenômenos como o neopentecostalismo e o narcotráfico.

Evidentemente, é preciso embeber este marco geral nas particularidades da formação peruana articulando, entre outras dimensões: a questão regional e o padrão de desenvolvimento desigual e combinado do país; o legado ambivalente do velasquismo; a subsistência de padrões culturais autoritários que informam as relações entre os misti (os não‐índios) e os indígenas e camponeses; preconceitos arraigados sobre a cultura andina e o racismo. Também é preciso um exame crítico de elementos políticos e ideológicos que caracterizaram certa tradição marxista, pervertida como uma modalidade de razão instrumental megalomaníaca, apoiada em práticas antidemocráticas e fanáticas, que resultaram em uma práxis notavelmente violenta e antipopular.

Diante da impossibilidade de dar conta deste “objeto de estudio opaco y elusivo”,18 delinearei alguns aspectos fundamentais para compreender a natureza e o impacto do fenômeno, porque é uma condição necessária para entender o Peru atual.

Sendero Luminoso nasceu a partir de uma cisão de orientação maoísta no seio do pcp nos anos 1960, que prosperou na região serrana de Ayacucho, uma das mais pobres do país e de marcante presença indígena. Seu principal polo foi a Universidade de San Cristóbal de Huamanga, cuja refundação em 1959 na cidade de Ayacucho teve, segundo Degregori, o efeito de um terremoto social, multiplicando por dez o número de universitários em poucos anos na região mais atrasada do país. O impulso inicial da organização universitária na cidade decorreu da intenção do governo Belaúnde (1963‐1968) de cortar as verbas da instituição, considerada como um apoio às guerrilhas que germinaram no país em 1965. No entanto, a trajetória dos senderistas liderados pelo professor de filosofia Abimael Guzmán ao longo dos anos 1970 revela seguidas derrotas políticas, seja no âmbito da política universitária como na camponesa, mas que tiveram como efeito solidificar a unidade de um grupo que fazia intenso proselitismo entre o alunado secundarista e universitário na região, além dos professores e funcionários.19

Na contramão do ascenso do movimento de massas do final dos anos 1970, Sendero não apoiou a greve geral de 1977 e não endossou a participação no processo constituinte. Na contramão da democratização política em 1980, enquanto a esquerda peruana debatia tática e estratégia conformando Izquierda Unida, Sendero decretou o início do que projetava como uma guerra popular prolongada, tornada pública de maneira ilustrativa com a queima do material eleitoral no “Pueblo” serrano de Chuschi.

Na sequência deste ato simbólico, Sendero começou a realizar ações armadas no campo que, a despeito da sua brutalidade, granjearam simpatia entre a população rural: assassinaram figuras odiadas, como fazendeiros e negociantes; distribuíram gado e terras; mobilizaram‐se contra cooperativas estatais, que eram repudiadas pelos camponeses; castigaram o roubo de gado além de infrações morais diversas, entre o alcoolismo e o adultério. Em regiões onde o Estado mal alcança e quando o faz, frequentemente tem um caráter repressor, a presença senderista poderia ser inicialmente associada a um guardião da ordem. Mas, como destaca Degregori, a intervenção senderista pouco se diferenciava do que caracterizaria um bom patrão, que remove o velho “misti” não para suprimi‐lo, mas para ocupar o seu lugar. Pois ao contrário de estimular a autonomia camponesa, sua prática replicava os aspectos “más autoritarios, cerrados, excluyentes y pre‐modernos de la cultura política peruana”.20 A cultura senderista pretendia ser mais justa, mas não mais democrática.

Considerando que Sendero tinha como base social uma população rural descampenizada e desindianizada, é mais fácil compreender que afastava‐se da tradição mariateguista em termos políticos, porque nunca apostou no protagonismo camponês. Por isso, teve maior dificuldade em penetrar exatamente nas regiões em que havia organização camponesa. Também se distanciava no plano socioeconômico, porque objetivou extirpar do campo o que não fosse senderista ou camponês (o que se descrevia como “bater el campo”), sem qualquer intenção de estabelecer nexos com as formas políticas ou econômicas locais. Finalmente, se diferenciava no plano ideológico, porque as constatações anteriores dissociam questão agrária e questão indígena, obliterando uma especificidade nuclear da formação peruana salientada por este intérprete.

Assentada nestas premissas, a política senderista rapidamente destoou do ensejo camponês. A dissonância se evidenciou na safra 1982‐1983, quando o movimento proibiu o acesso dos produtores aos mercados, uma vez que se pretendia estabelecer circuitos produtivos autárquicos. Registraram‐se neste contexto, as primeiras resistências camponesas à presença senderista.

Porém neste mesmo período, o primeiro governo civil após doze anos de mando militar releva suas hesitações à intervenção das Forças Armadas, e o exército subiu a serra. Uma declaração do Ministro de Guerra Luis Cisneros Vizquerra sintetiza os motivos pelos quais também os militares resistiam em intervir, e ao mesmo tempo, anuncia o caráter desta atuação. Afirma que, para assumir o controle de Ayacucho, “tendrían que comenzar a matar senderistas y no senderistas, porque esa es la única forma como podrían asegurarse el éxito. Matan 60 personas y a lo mejor ahí hay 3 senderistas...”.21

A repressão indiscriminada desencadeada pelo exército atiçou uma escalada de violência que ensanguentou Ayacucho, e espraiou o conflito a outras regiões do país. Diversos analistas apontam que a conduta das forças armadas foi contraproducente, pois forçou a população a escolher entre o mal menor, e muitas vezes este pareceu ser Sendero.22 Composto majoritariamente de recrutas costenhos, poucos dos quais falavam quéchua, o exército surgia para muitos, como um invasor. Como decorrência desta política, no ano de 1984 registraram‐se mais de 4 000 assassinatos e desaparições forçadas.23

Do ponto de vista da insurgência, a resposta governamental se encaixava perfeitamente à leitura política sustentada por Guzmán. O “presidente” pregava que a ação senderista explicitaria a violência estatal, constrangendo o campesinato a se levantar contra o Estado e em última análise, tomar as cidades. Esta análise alcançou tons extremos nos anos seguintes e motivou ações de destrutividade insuspeitada. Assim, quando Alan García assumiu a presidência em 1985 e anunciou uma nova estratégia de combate à insurgência, cuja ênfase seria no desenvolvimento social, Guzmán respondeu que seria preciso “quitarle la careta progresista”. O levante simultâneo de senderistas encarcerados nos dias em que o apra recebia um congresso socialista em Lima, episódio que terminou na execução de trezentos presos, foi concebido com este objetivo. Segundo esta racionalidade o levante foi exitoso, pois houve uma escalada repressiva do Estado, atestada pelo número de assassinatos de motivação política, que se elevou 5.4 por dia em 1987 para 8.8 em 1988 e 9.4 em 1989.24 Enquanto isso, Guzmán proclamava que “la sangre no detiene la revolución, sino la riega”, e estimava que a revolução poderia custar um milhão de vidas.

O líder senderista encarava a militância de esquerda sob um prisma similar: como pelegos que arrefeciam o aguçamento das contradições sociais, retardando a via revolucionária. Consequentemente, o movimento perseguiu e assassinou centenas de dirigentes sociais e políticos de esquerda. Mais chocante, a racionalidade senderista determinava que muitas vezes não bastava matar, mas era preciso fazê‐lo de modo exemplar: assim, a líder popular afroperuana Maria Elena Moyano foi dinamitada na presença dos filhos.

Se retrospectivamente é evidente o caráter antipopular da insurgência senderista, que pode ser qualificada como terrorista pela esquerda contemporânea, nos anos 1980 esta leitura não foi imediata. Afinal, como analisa Degregori, Sendero surgiu como uma surpresa tripla: para o Estado e os serviços de inteligência; para os partidos políticos e as organizações sociais; para a comunidade acadêmica de ciências sociais. Entre os fatores que dificultaram uma percepção acurada sobre a natureza desta insurgência, salientam‐se três: a retórica marxista em um país de rica tradição socialista, em meio a uma conjuntura que se radicalizava; o isolamento de Ayacucho em relação à costa; os preconceitos andinistas,25 confundindo Sendero como um movimento milenarista ou indigenista. O cenário se tornou ainda mais complexo com o início das ações armadas do Movimiento Revolucionario Tupac Amaru (mrta) em 1982, uma organização guerrilheira urbana de corte convencional, cuja atividade cresceu no governo Alan García.

Embora a peculiaridade e a destrutividade senderista fossem evidentes para aqueles que tinham contato direto com o que ocorria em Ayacucho, muitos não tinham. Para esses, somente quando as ações em Lima se intensificaram tornou‐se claro que Sendero era um desafio de dimensão nacional. Isto ocorreu no final dos anos 1980, quando Guzmán avaliou que o confronto se aproximava do “equilíbrio estratégico” e intensificou os esforços para penetrar a periferia de Lima, com a intenção de estabelecer uma espécie de cinturão popular insurgente em torno da cidade. Ao contrário do que parece, esta decisão correspondeu a um momento em que as posições rurais da organização encontravam‐se ameaçadas em função da crescente resistência camponesa, principalmente na forma das rondas campesinas. Pois neste mesmo período o Estado mudou sua estratégia, e sem deixar de praticar a “guerra suja”, investiu em inteligência e construiu relações de apoio com estes organismos camponeses, que se converteram em Comités de Autodefesa Campesina (cad). Ao contrário de seus similares colombianos, estes comitês não derivaram em esquadrões paramilitares delinquentes e tiveram um papel decisivo para a derrota senderista.

Assim, a decisão de avançar sobre Lima deve ser entendida antes como uma “fuga para frente” do que como desdobramento de um crescimento orgânico. Mas em seu momento, havia um genuíno receio em relação ao poder insurgente, já que a repercussão das ações senderistas na capital era amplificada. E o poder de fogo da organização parecia crescer: o número de atentados entre 1988 e 1989 quase triplicou em relação a 1981 e 1982. Mais assustador do ponto de vista do Estado, 47% dos atentados e ataques perpetrados pela organização entre abril de 1989 e dezembro de 1992 realizaram‐se na capital, totalizando 907 ações. No começo dos anos 1990, Lima aparecia como uma cidade sitiada.26 Neste momento, 32% do território peruano e 49% da população se encontrava sob mando militar.

Foi neste contexto que Izquierda Unida se desfez e realizaram‐se as eleições vencidas por Fujimori. Embora os testemunhos indiquem que a condenação a Sendero era unânime na iu, também há um reconhecimento generalizado de que esta insurgência danou irreparavelmente o esforço político em curso, porque além de dificultar o entendimento interno, matou líderes e militantes. E no longo prazo, estigmatizou a esquerda a um ponto que ainda não se recobrou, como reconhece o ex‐senador Rolando Ames: “Sendero empujó a la opinión pública contra el discurso y la imagen de cualquier izquierda, de toda izquierda, o centro izquierda. Ellos hablaban también de Mariátegui, de marxismo, leninismo, maoísmo, etcetera ‐ y hacían terrorismo!”.27

FUJIMORI

As conexões que Naomi Klein estabelece entre “doutrina de choque” e neoliberalismo, utilizando como caso paradigmático o Chile sob Pinochet,28 encontram notável ressonância no Peru comandado por Alberto Fujimori (1990‐2000). No caso peruano, o clima de desordem gerado pela degeneração do governo aprista e acentuado pela destruição senderista, criou o ambiente propício à combinação entre ditadura e neoliberalismo que marcou o regime. Se a conjunção entre alanismo e senderismo colocou em xeque a ascensão da esquerda peruana, a ditadura fujimorista floresceu neste contexto, revertendo o descontrole econômico, a violência e a debilidade da esquerda a seu favor. O conservadorismo prevalente no Peru está relacionado à sensação ainda vigente de que, a despeito dos meios empregados, o “chino” colocou ordem na casa.

Para aquilatar a devastação causada por esta experiência é preciso lembrar, em primeiro lugar, que Fujimori elegeu‐se em oposição a candidatura de Vargas Llosa, que assumiu como plataforma o ajuste neoliberal. Neófito político que se projetou no mês final da campanha cultivando uma imagem de honradez, tecnologia e trabalho, três características associadas ao japonês, Fujimori teve como slogan “Vote no al shock!”. Servindo‐se do profundo desprestígio dos políticos convencionais e da desmoralização da esquerda para alimentar um discurso antipartidário, o candidato de “Cambio 90” teve o apoio do aparelho aprista para se eleger, uma vez que Vargas Llosa se tornara arquinimigo de García, além de se beneficiar do rechaço popular à arrogância criolla personificada em seu rival, que há muito sequer vivia no país.

Uma vez eleito, Fujimori costurou uma aliança com os militares por meio da sinistra figura de Vladimir Montesinos, que se tornaria o homem forte do regime: “Montesinos was Mr. Fix‐it, not only for Fujimori, but also for de U.S. government”.29 Há indícios convincentes de que a corporação tramava tomar o poder e implementar um projeto de reordenamento nacional prevendo décadas de duração, que teria sido ajustado em função da disposição do novo presidente em se tornar seu cúmplice.30 A consumação desta aproximação exigiu um processo de depuração dos altos mandos militares, em que o governo destituiu inimigos e promoveu oficiais próximos a Montesinos. Em linhas gerais, a divisão do trabalho estabelecida facultou poderes ditatoriais ao presidente, enquanto as Forças Armadas tiveram carta branca para enfrentar a insurgência, e ambos chafurdaram em corrupção.

Uma vez no comando, Fujimori decretou estado de emergência em todo o país, e poucos dias depois, promulgou o conjunto de medidas conhecido como “fujichoque”, quando em fragrante contradição com seu discurso eleitoral, implementou um radical programa de corte neoliberal. Ao eliminar o controle de preços do setor privado e aumentar os preços da energia e de outros serviços públicos, o choque causou um aumento imediato dos preços estimado entre 300% e 1000%, incrementando em 70% o número de pobres em um dia. O objetivo fundamental era, em última análise, reconquistar a confiança do mercado financeiro e das instituições multilaterais, “reinserindo” o Peru nos circuitos financeiros internacionais.

Este objetivo foi alcançado na sequência de três passos: o programa de estabilização adotado em agosto de 1990, visando controlar a inflação e regularizar o pagamento dos serviços da dívida. Na sequência, a partir de fevereiro do ano seguinte, foram implementadas reformas institucionais pró‐mercado, que incluíram a desregulamentação dos mercados financeiro e laboral, além de privatizações. Nos marcos do firme compromisso demonstrado em disciplinar a política nacional segundo as diretrizes neoliberais, consumou‐se a reinserção do Peru aos circuitos financeiros internacionais. É relevante observar que a ascensão de Fujimori coincidiu com o colapso da União Soviética e o final da Guerra Fria, acontecimentos que acentuaram as pressões por políticas de orientação neoliberal em todo o mundo.

As condições desta “reinserção” seriam consolidadas a partir do chamado “autogolpe”, quando Fujimori fechou o congresso e interveio no poder judicial em abril de 1992, decretando à moda argentina um “Gobierno de emergencia y reconstrucción nacional”. Em uma perversão da democracia, o presidente escudou‐se no descrédito da política institucional, aguçada pelo fracasso dos governos de Acción Popular (Belaúnde) e do apra (García), além do esfacelamento de iu, para reivindicar apoio popular à medida. Ao mesmo tempo este regime, em que o poder executivo chegou a centralizar 75% do orçamento nacional, implementou uma extensiva rede clientelista lubrificada por um programa de alívio à pobreza apoiado pelo fmi e o Banco Mundial, foncodes. Esta combinação entre práticas ditatoriais, apoio popular e políticas neoliberais levou analistas à delirante proposição de que tratava‐se de um regime “neopopulista”, categoria adequadamente desconstruída por Vilas.31

Apesar de algum esforço em manter as aparências, o esteio político fundamental do regime não foram as eleições, que fraudou compulsivamente, mas o exército. No dia do “autogolpe” tanques circularam pelas cidades, órgãos da imprensa foram ocupados e líderes da oposição foram presos. A imprensa foi submetida a uma combinação de cooptação e coerção, que garantiu seu alinhamento ao regime (livre). Mas o que deu lastro social ao fujimorismo foi a estabilização da economia, apesar do seu alto custo social, e principalmente, o fim do conflito armado.

Uma análise ponderada dos fatos mostra que a derrota de Sendero Luminoso deve ser atribuída a processos desencadeados em larga medida à revelia deste governo. A decisão de passar de uma política reativa a uma política planejada, investindo no trabalho de inteligência e em políticas de colaboração com o campesinato em lugar do extermínio indiscriminado, são decisões que antecederam as eleições, assim como os reveses senderistas no campo, que precipitaram a investida em Lima. Na cidade, a escalada de atentados aguçou a repulsa a esta organização, inclusive entre a esquerda. A estratégia senderista neste momento era aprofundar o caos, na expectativa de provocar uma intervenção estadunidense que criasse um cenário análogo à China do entreguerras, em que nacionalismo e comunismo convergiriam na resistência ao invasor. Guzmán declarou que o assassinato de Maria Elena Moyano em fevereiro de 1991 se inscrevia nesta perspectiva, que naquele momento, não era alucinada: no começo de 1992 o subsecretário de Estado para Assuntos Interamericanos, Bernard W. Aronson, preveniu os líderes do congresso deste país de que era preciso se preparar para evitar que SL chegasse ao poder, desencadeando o “terceiro genocídio” do século xx. 32

Mas poucos meses depois, Abimael Guzmán foi preso em seu esconderijo em Lima e a organização senderista rapidamente degringolou, sintoma do alto grau de centralização política que a caracterizava. Este processo foi acelerado pela capitulação do próprio líder, que em contradição com a retórica anterior, buscou um acordo de paz com Fujimori anunciando o ingresso em uma nova etapa do processo político. o mrta, organização de impacto social comparativamente reduzido, foi literalmente liquidado em uma ação armada assessorada pela cia em 1996 quebrando um sequestro na casa do embaixador japonês, quando os guerrilheiros foram executados apesar de rendidos.

O criterioso trabalho feito pela Comissão da Verdade e Reconciliação, constituída logo após a queda de Fujimori, concluiu que 69 280 pessoas morreram ou desapareceram como consequência do conflito, das quais 53.68% foram vítimas de Sendero. Esta é uma proporção extraordinária, quando lembramos que em nenhum conflito no continente a insurgência provocou mais do que 5% das mortes. Calcula‐se que 3/4 das vítimas eram camponeses das regiões mais pobres do país que falavam quéchua, 40% delas residentes em Ayacucho. Entre as vítimas, pereceram 1503 autoridades políticas (entre prefeitos, governadores, juízes, lideranças locais), 2 267 dirigentes camponeses e 1 674 “miembros de las fuerzas del ordem”.33

Estes números dão um indício do clima de insegurança, e muitas vezes de terror, que pairou sobre o país no período. Este ambiente foi explorado em diversos sentidos pelo regime fujimorista. De um lado, atribuiu para si o mérito de ter desarticulado a insurgência e pacificado o país, o que lhe rendeu alta aprovação, levando muitos a minimizar as infrações à democracia como uma espécie de dano colateral. Por outro lado, o regime manipulou o medo disseminado na sociedade com o objetivo de se autolegitimar, justificando a perpetuação de mecanismos jurídicos, políticos e militares característicos de um estado de exceção, mesmo com o declínio do conflito. Além da perseguição jurídica facilitada por uma draconiana legislação antiterrorista, a presidência autorizou o assassinato e a desaparição de professores, estudantes, camponeses e líderes operários, a pretexto de uma luta contra a subversão. Frequentemente, as mortes foram atribuídas a Sendero, como no assassinato do sindicalista Pedro Huilca, crítico contumaz das políticas do regime. No campo, a manutenção do estado de emergência significou que as Forças Armadas continuaram como a autoridade máxima em muitas partes do território.

No plano econômico, são conhecidos os efeitos da combinação entre estabilização e reforma estrutural nos marcos do neoliberalismo. A inflação foi controlada por meio de mecanismos que levaram a uma apreciação cambial combinada ao aumento das importações, que teve efeitos destrutivos sobre a indústria nacional agravando os déficits em transações correntes, cobertos por privatizações e empréstimos do fmi. Logo, a dívida externa dobrou durante o governo Fujimori, atingindo 53% do pib (cifra bem mais alta do que Chile, México ou Brasil), enquanto os pagamentos anuais quadruplicaram.34 O crescimento de 59% das exportações entre 1989 e 1998 não acompanhou a explosão das importações, que subiram 264%, tornando a balança comercial deficitária em toda a década.35 Reforma do mercado de capitais, reforma tributária, reforma do mercado de trabalho e privatizações generalizadas complementaram a abertura comercial.

Em suma, foi desmantelado o que restava das estruturas velasquistas na cidade como no campo, onde foi implementada uma “reforma da reforma agrária”. A informalização do trabalho e a economia delinquente cresceram aceleradamente: ao longo dos anos 1990 dobrou o número de trabalhadores com contrato de trabalho temporário enquanto o subemprego atingia 3/4da população economicamente ativa no final do decênio. A ideologia que transforma a precarização das relações de trabalho, de problema social em oportunidade empreendedora, prosperou neste meio.36

Embora os limites desta política econômica já se evidenciassem no final dos anos 1990, a queda do regime foi precipitada fundamentalmente por motivos políticos. Solução traumática para uma sociedade traumatizada, o “fujimontesinismo” de que fala Quijano ruiu por dentro, mas também foi empurrado por fora. Os escândalos detonados pela circulação dos “vladivídeos”, gravados por Montesinos para disciplinar seus sequazes e que documentavam a corrupção endêmica do regime, afloraram em um momento de ascendente contestação nas ruas, intensificadas após eleições presidenciais fraudulentas em 2000. Na realidade, a própria participação de Fujimori no pleito era farsesca, já que a constituição por ele mesmo promulgada proibia um terceiro mandato. Também os Estados Unidos acenaram com o fim do apoio ao regime, acelerado quando veio à tona uma operação que envolvia Montesinos com o narcotráfico e as Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (farc). Confrontado com a corrosão do aparato de poder que ergueu, o protesto nas ruas e o constrangimento estadunidense, Fujimori enviou sua renúncia por fax do Japão em 2001. O fato de que o ditador caiu do poder em lugar de descer foi significativo, pois propiciou o clima para a investigação do conflito interno peruano sob a coordenação da cvr, que apesar de seus limites e dificuldades, iluminou a história recente peruana, além de subsidiar o julgamento de numerosos criminosos por crimes mais graves do que a corrupção, entre eles o próprio Fujimori.

LEGADO FUJIMORISTA

No pleito que seguiu à renúncia de Fujimori elegeu‐se presidente Alejandro Toledo, figura que liderou os protestos às fraudes e abusos eleitorais cometidos pelo regime em seus últimos momentos. Na eleição subsequente, Alan García triunfou com estreita margem sobre Ollanta Humalla, um militar que, naquele momento, foi associado à esquerda e a Hugo Chávez.

No seu segundo mandato, García abandonou as veleidades esquerdistas realizando um governo abertamente neoliberal. Embora em campanha criticasse o modelo de exploração mineira em que se assentava o crescimento peruano, praticamente eximindo as empresas de obrigações tributárias ou ambientais, seu governo manteve o arcabouço normativo herdado de Fujimori. Como compensação, negociou a criação de um programa social de iniciativa das próprias empresas mineiras, o Programa Mineiro de Solidariedade com o Povo (pmsp), que previa a transferência de recursos tributários para as regiões objeto de exploração mineira, o que agravou as distorções socioeconômicas do país: em 2007, mais de dois terços destes recursos foram direcionados para seis regiões (Ancash, Cajamarca, Cusco, Moquegua, Pasto e Tacna), que concentram menos de um sexto da população. No plano comercial, o Tratado de Livre‐Comércio com os Estados Unidos assinado durante a gestão Toledo entrou em vigor em 1o de fevereiro de 2009, sem qualquer oposição do governo García.

Ollanta Humalla, que na campanha de 2006 assumiu uma postura abertamente contrária ao tlc com os Estados Unidos, fato que contribuiu para sua associação com Hugo Chávez, empenhou‐se no pleito seguinte para se diferenciar do venezuelano e identificar‐se com o petismo brasileiro, que apoiou e assessorou sua campanha vitoriosa.

Mais além das nuances entre os mandatários, chamam a atenção na política peruana no período alguns paradoxos. Em primeiro lugar, desde o fim do regime militar nos anos 1970, nenhum governante elegeu seu sucessor. Ou seja, sempre venceu um candidato de oposição. No entanto, o novo mandatário frequentemente contradiz abertamente sua plataforma, configurando uma sucessão de estelionatos eleitorais, expressão extrema da hipocrisia e ineficácia que caracterizam a democracia contemporânea.37 Evidentemente, este fenômeno acentua a corrosão da legitimidade partidária, alimentando uma despolitização que favorece o conservadorismo. Fujimori, que foi a expressão mais radical da mentira eleitoral, manejou conscientemente esta despolitização. As mentiras do atual presidente Ollanta Humala também são notórias, dentre as quais a promessa de privilegiar a água em detrimento da exploração de ouro (“¡agua sí, oro no!”), que ruiu frente aos conflitos em torno ao projeto mineiro Conga.

Mais além da política como mentira e do descrédito institucional que esta prática reforça, a constatação de que recorrem vitórias de uma oposição que logo renega seu discurso eleitoral, sugere constrangimentos para modificar as estruturas socioeconômicas legadas pelo fujimorismo. A despeito do descrédito de sua figura máxima, atualmente preso, e do declínio do prestígio da instituição militar, sócia direta da violência e da corrupção que assolaram o regime, os fundamentos do padrão de reprodução capitalista que estabeleceu permanecem inquestionados.

Em linhas gerais afirmou‐se uma economia aberta, que ancora sua inserção internacional na exportação de minerais potenciada por investimentos internacionais atraídos por baixas exigências fiscais, trabalhistas e ambientais. O marco jurídico deste modelo foi constituído a partir da Ley Marco para el Crecimiento de la Inversión Privada de novembro de 1991, e consolidado na constituição promulgada em 1993, que assegurou termos privilegiados além de estabilidade jurídica e tributária aos investimentos internacionais. O novo texto, que segue vigente, também eliminou o caráter inalienável das terras das comunidades camponesas e nativas, além de instituir que os recursos naturais deixariam de ser patrimônio exclusivo da nação.38

Desde então, o crescimento econômico peruano é tributário da extraordinária expansão da mineração multinacional no país. Os picos de crescimento foram alcançados na década de 1990, aumentando respectivamente em 10.9% (1993), 15.2% (1994), 10.8% (1997), 16% (1999).39 No conjunto, o investimento incrementou‐se nos anos pós Fujimori, no contexto da alta internacional dos preços das commodities: o Investimento Externo Direto (ied) passou de 4.5% do pib entre 1990 e 2000 para 25% em 2007. Em 2009 o Peru era o país que mais recebia investimentos em mineração no continente, e o terceiro no mundo depois de Canadá e Austrália. Para efeitos comparativos, em 2011 o gasto brasileiro em investigação geológica totalizou 60% do investimento peruano, embora seu território seja sete vezes mais extenso.

Expressão territorial desta expansão, no início dos anos 1990 as concessões mineiras ocupavam 2.3 milhões de hectares, enquanto na atualidade, beiram 25 milhões. A atividade deixou de se concentrar nas alturas andinas expandindo‐se para os vales, a costa e inclusive a Amazônia. Há departamentos onde as concessões mineiras se aproximam ou superam a metade do território, como Arequipa, Ancash, Lima, La Libertad, Moquegua, Huancavelica e Tacna.40 Atualmente, o Peru é o maior produtor latino‐americano e está entre os cinco produtores mundiais de prata (1°), ouro (6°), zinco (2°), estanho (3°), chumbo (4°) e cobre (2°). Também concentrava 40% das reservas auríferas do mundo em 2008.

Após vinte anos de expansão, a dependência do país em relação a este setor da economia se acentuou. Calcula‐se que 22% da arrecadação interna entre 2007 e 2010 derivou da mineração, e que cerca de 6% do pib e 60% das exportações derivam destas atividades na atualidade. No entanto, em função das características do marco regulatório do setor, frustrou‐se todo aumento substantivo na captação de tributos internos, pois estão eximidas por exemplo, as chamadas “sobreganancias”. Há quem remeta o paradoxo de governantes impopulares em contexto de crescimento econômico no Peru às limitadas possibilidades do Estado de converter esta riqueza em programas sociais, em contraste com outros países da região.41

Esta limitação aguça‐se uma vez que, do ponto de vista das relações de trabalho, a mineração contemporânea configura‐se como uma atividade que exige altos investimentos de capital, mas que emprega relativamente pouca força de trabalho. Assim, o outro lado da política de desregulamentação mercantil e atração do investimento estrangeiro que favoreceu a mineração em detrimento de setores associados à produção nacional, foi o crescimento do desemprego e da economia informal potenciando a chamada “economia delitiva”, gravitando em torno da pirataria, do contrabando e do narcotráfico. O Peru é hoje um dos principais exportadores de cocaína do continente. Ao mesmo tempo, constata‐se um aumento dos problemas de segurança relacionados à delinquência comum, nos marcos de uma degradação do tecido social do país. No plano sociológico, Durand observa que a mescla entre informalidade e delinquência se enraizou de tal modo na sociabilidade peruana contemporânea, que termina “formando parte integral de la matriz institucional del país”.42

Outra face ainda do crescimento minerador é um aumento significativo dos conflitos socioambientais no país. Em contraste com a impotência da política institucional, há numerosos casos em que a resistência popular interrompeu projetos vinculados ao que se descreve nos países da região como “economía extractivista”, como os projetos mineradores em Tambogrande e Conga, ou a hidroelétrica de Inambari. Dentre os conflitos socioambientais registrados, 64% estão relacionados à mineração e alguns envolvem um alto grau de violência: entre 2006 e 2011 contabilizaram‐se 195 mortos em conflitos sociais, além de 2 312 feridos entre civis e policiais, configurando o número mais alto do continente no período. O episódio mais letal foi o chamado massacre de Bagua em 2009, quando contabilizaram‐se 34 mortos dentre os quais 24 policiais e 10 indígenas na resistência a um dos maiores projetos auríferos da atualidade.43

Apesar da arrojada resistência popular a projetos de impacto socioambiental diverso, que gravitam entre o desalojamento e a exaustão hídrica, passando por diversos níveis de contaminação ambiental, não houve qualquer mudança palpável nos meios e fins da política estatal desde Fujimori. No mesmo ano do massacre de Bagua, o ministro da economia anunciava que estariam sujeitos a multas e processos os funcionários públicos que retardassem o prazo de cem dias para a confecção de Estudos de Impacto Ambientais, exigência prévia à aprovação de projetos mineiros.44 Neste cenário, a percepção desenvolvida por quem resiste ao processo é de que a expansão mineira envolve um esforço contínuo mas de intensidade intermitente, o que significa que projetos parados voltarão no futuro, com estratégias refinadas de convencimento ou imposição de seus interesses.45

Nesta perspectiva, enquanto o governo Humalla anunciou uma lista de novos projetos mineiros de valor superior a U$ 41 bilhões, dados da Defensoría del Pueblo registraram 210 conflitos sociais em janeiro de 2015 no país, dos quais 140 de natureza socioambiental. Até meados de 2015, contabilizaram‐se 65 vítimas fatais em conflitos sociais neste governo, iniciado em 2011. No meio deste mesmo ano Arequipa, uma das principais cidades do país, estava ocupada pelo exército em função dos conflitos decorrentes do projeto mineiro Tía María, para nomear um episódio de maior repercussão.

Face complementar desta espécie de “acumulação por espoliação” é a política estatal de apresentar o Peru como grife ‐ a chamada “marca Perú”, que explora alguns nichos de consumo sofisticado, notavelmente a gastronomia, enquanto exportam‐se gêneros como aspargos, páprica, alcachofra, palta e quinua. Esta promoção do país para consumo externo, mobilizando motivos entre o cult e o exótico, revela‐se simétrica ao projeto de inserção internacional peruano, em que o mercado define não somente a sua inserção na divisão internacional do trabalho, mas também a própria identidade nacional. Na descrição de uma docente universitária, as peças publicitárias televisivas de “marca Perú” pretendem ensinar aos próprios peruanos quem eles são, preparando‐os entre outras finalidades, para receber aos turistas.46 É o marketing suprindo as insuficiências da história, ao resolver por meio de um simulacro o que a aristocracia criolla, Mariátegui e Velasco, entre outros, foram impotentes para afirmar.

De modo lapidar, as contradições entre extrativismo e “marca Perú” se evidenciam na ameaça aos recursos hidrobiológicos do país. O incremento do consumo de proteína animal mundial desde o final dos anos 1980, puxado pela China, elevou os preços da anchoveta, que tem no Perú um de seus maiores produtores globais. Em um processo análogo à expansão da soja no continente, a anchoveta serve como matéria‐prima para a farinha e óleo de peixe, que por sua vez, alimenta peixes criados em cativeiro em outros países. Porém, o crescimento da pesca industrial da anchoveta na costa peruana ameaça a subsistência de outros peixes, notadamente aqueles apreciados como “ceviche”, prato principal da gastronomia peruana promovida mundo afora.47

CONCLUSÃO

A mobilização fermentada no bojo do velasquismo foi insuficiente para transcendê‐lo, mas calçou a resistência popular à investida neoliberal nos anos 1980, quando a esquerda peruana esteve na vanguarda do continente. Entretanto, dois processos perversos colocaram sua expressão política organizada, Izquierda Unida, diante de impasses que precipitaram o seu súbito declínio. Por um lado, as ambiguidades do governo aprista, que afinal chegou ao governo comandado por Alan García. A retórica e o simbolismo progressista do seu mandato disfarçaram o oportunismo e a venalidade que o impulsionava, resultando em ambivalências que conduziram o país a uma situação de caos socioeconômico, arando terreno para as políticas de choque que viriam. O canto da sereia aprista ludibriou parte da esquerda, encantada com a possibilidade de uma alternância eleitoral que só aguçou suas contradições internas, enquanto o apoio a uma estatização inconsequente dos bancos explicitou as dificuldades em afirmar uma liderança social autônoma, no momento em que a direita recuperava a iniciativa política.

Este cenário se tornou ainda mais nebuloso com a expansão de um fenômeno político original, que pervertia a retórica e a cultura política de esquerda, fazendo com que uma organização de característica terrorista aparecesse como uma guerrilha marxista. Após semear a guerra civil em rincões empobrecidos do país, Sendero Luminoso intensificou suas ações urbanas no final da década, anunciando uma investida para cercar a capital realizada em meio ao assassinato de numerosas lideranças civis de esquerda e atentados que amedrontaram o país. Face aos desafios colocados por esta conjuntura notavelmente complexa, IU não logrou diferenciar‐se inequivocamente em relação ao alanismo e ao senderismo, mas ao contrário, sucumbiu à diferenças internas, explicitando aspectos caudilhescos e dogmáticos que permeavam a cultura política da esquerda.

Fujimori fei eleito presidente neste contexto crítico com uma plataforma que parecia capturar, ao mesmo tempo, o rechaço popular à política criolla personificada em Vargas Llosa, e uma desconfiança em relação às ambiguidades da esquerda, que oscilava entre um passado radical como Sendero ou um futuro governista como o apra. Fazendo das Forças Armadas o seu partido, Fujimori apoiou‐se no descrédito generalizado da política e no ensejo de pacificação do país para solidificar um regime ditatorial, cujos êxitos relativos afirmaram os marcos fundamentais em que se move a sociedade peruana na atualidade: neoliberalismo, extrativismo mineral, livre‐comércio, informalidade laboral, economia delitiva, narcotráfico. A alternância partidária desde a queda de Fujimori em 2001 mal disfarça o conservadorismo da política peruana, cujo descrédito institucional é agravado pela naturalidade com que candidatos eleitos pela oposição, renegam suas promessas de campanha.

Este agudo estreitamento do horizonte político é explicitado pelas candidaturas que se desenhavam em meados de 2015 para suceder a Humalla, em eleições previstas para o ano seguinte. Em um contexto em que o atual presidente mostra baixos índices de aprovação, perfilam‐se três candidaturas competitivas: Alan García, ícone da política convencional e da corrupção; Keiko Fujimori, filha do ex‐ditador encarcerado e que promete anistiá‐lo; Pedro Pablo Kuczynski, ex‐ministro da economia no governo Toledo (2001‐2006), destacado quadro neoliberal, principal lobista dos Estados Unidos no país, um homem que morava no Sheraton enquanto a família vivia nos Estados Unidos e que encoraja os peruanos a aprenderem inglês para eventualmente deixarem o país.

No campo da esquerda, vislumbram‐se dois polos que tem revelado dificuldades em se unificar. O congressista Sergio Tejada apresenta‐se como candidato do Bloque Nacional Popular, reivindicando uma posição de centro‐esquerda tributária da tradição institucional de IU a qual filia‐se a ex‐prefeita de Lima, Susana Villarán (2011‐2014), vinculada à coligação conhecida como Únete. Por outro lado, há esforços para concretizar a resistência ao extrativismo territorialmente dispersa em uma alternativa política nacional. Este movimento tem como figura principal o ex‐padre e fundador do Movimiento Tierra y Libertad, Marco Arana, uma das organizações que compõem Frente Amplio. Recentemente, Arana foi vencido em prévias internas pela jovem deputada por Cusco, Verónika Mendoza, que será a candidata presidencial da coligação. No plano político, a principal clivagem entre os dois polos é a postura em relação à mineração, onde Frente Amplio ensaia uma problematização do padrão extrativista, enquanto Únete favorece a negociação de melhores termos para o Estado, à moda de seus vizinhos andinos. Mas não se trata de uma clivagem linear: o governador regional e liderança contra os projetos mineiros em Cajamarca, Gregorio Santos, flerta com a segunda organização, embora sua mobilidade política esteja literalmente bloqueada desde que foi encarcerado sob acusação de corrupção em 2014 o que não o impediu de ser reeleito no final deste mesmo ano, embora não pudesse ser empossado.

As condições para difundir um discurso alternativo ao “extrativismo” tem avançado recentemente no país. Por exemplo, na Marcha Nacional por el Agua e no protesto que a sucedeu, reunindo cerca de 20 mil pessoas em Lima contra o projeto mineiro Conga em 2012, a consigna foi a defesa da água e não a reivindicação de maiores rendas mineiras, que caracterizara protestos similares. Porém, há diversos condicionantes históricos e políticos que diferenciam o contexto peruano de Bolívia e Equador, onde o protagonismo indígena nas lutas recentes pautou a temática do “Sumak Kawsay” (Buen Vivir) na agenda nacional, plasmada nos textos constitucionais recentemente adotados nestes países, a despeito de todas as contradições posteriores.48 Estas singularidades envolvem aspectos objetivos, como o caráter da reforma agrária velasquista, que priorizou um cooperativismo de inspiração iugoslava em detrimento de formas indígenas de produção, mas também subjetivos, como a subsunção da identidade indígena à camponesa.

Em outro plano, as violentas turbulências que sucederam o grfa, ele próprio protagonista de um período de mudança acelerada, parecem ter difundido a acomodação aos parâmetros de uma ordem que parece estável, apesar de tudo. O drama da política peruana contemporânea é que a recuperação da paz e da estabilidade está associada a uma combinação entre repressão estatal e fundamentalismo neoliberal. É esta percepção que explica o prestígio de Keiko Fujimori, apesar da desmoralização internacional de seu pai. A resistência à mudança é agravada pela prosperidade superficial lastreada nas exportações minerais, na economia delitiva, e mais recentemente, na auto‐emulação evocada pela “marca Perú”.

Os paradoxos da política peruana contemporânea, onde governos eleitos em oposição praticam a continuidade; nenhum presidente elegeu seu sucessor, apesar do crescimento econômico; a pesca extrativista ameaça o carro‐chefe da “marca Perú”; e o protesto popular tem brecado projetos extrativistas, mas sem coalhar uma alternativa política nacional; expressam, em um contexto particularmente adverso, os impasses da política na América Latina na atualidade. Observa‐se que o neoliberalismo não tem legitimidade para se reproduzir, mas se perpetua apoiado em uma engrenagem política impermeável aos anseios populares, que naturaliza a mentira, a corrupção e a exploração, o que só é viável em decorrência da corrosão do tecido social, das formas de resistência organizada e do horizonte utópico que sua própria implementação envolveu, processo que se deu de modo particularmente traumático na circunstância peruana.

Em linhas gerais, a psicanálise identifica três vias de saída do complexo de Édipo, conformando três padrões de inserção do sujeito na cultura: o neurótico é aquele que se subordina às regras colocadas pela cultura em que está inserido, aceitando‐as conflituosamente. É a condição da “normalidade”. O psicótico afasta‐se da interdição, forjando um mundo referido a regras próprias. Já o perverso instrumentaliza as regras prevalentes segundo seu próprio interesse.

Embora o termo “alanismo” não seja comum para designar o primeiro governo aprista, referindo‐se correntemente ao segmento do partido liderado por Alan García, candidato presidencial em 2016, utilizaremos o termo no sentido sugerido por Aníbal Quijano, referindo‐se ao processo de degeneração política do apra sintetizado pela trajetória do seu principal líder depois de Haya de la Torre.

“O traumatismo é um evento que, por sua violência e característica súbita, provoca um afluxo de excitação suficiente para colocar em xeque os mecanismos de defesa habitualmente eficazes, produzindo frequentemente um estado de sideração e conduzindo, em termo mais ou menos longo, a uma desorganização da economia psíquica”. Alain de Mijolla, Dictionnaire international de la psychanalyse, París, Hachette, 2005, p. 1858.

Osmar Gonzalez, “La izquierda peruana: una estructura ausente”, en Alberto Adrianzén [ed.], Apogeo y crisis de la izquierda peruana. Hablan sus protagonistas, Lima, idea/uarm, 2011, p. 27.

Javier Diez Canseco, “Exorcizando Izquierda Unida”, en ibid., p. 120.

Alberto Adrianzén, “La izquierda derrotada”, en Adrianzén, op. cit., p. 57.

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Ver os testemunhos de Henry Pease, Rolando Ames e Antonio Zapata, entre outros, en Adrianzén, op. cit.

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Gudynas, op. cit.

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