No nosso meio, não existem estudos que investiguem a sexualidade da mulher infértil. Sendo assim, há necessidade de uma maior compreensão dos aspectos da sexualidade dessas mulheres, assim como de possíveis disfunções sexuais nelas presentes.
Material e métodosForam usados nesta pesquisa o Questionário do Quociente Sexual (versão feminina) e um questionário que investigava aspectos do relacionamento conjugal e sexual elaborado especialmente para esse estudo. Participaram da pesquisa 111 pacientes que buscavam por tratamentos de reprodução assistida no Projeto Beta, sem ainda terem iniciado qualquer tipo de tratamento, com idades entre 25 a 47 anos.
ResultadosOs dados mostraram que 16,6% das mulheres apresentaram falta de libido, 11,9%, dificuldades de excitação sexual, 12,6%, dispareunia e 21,3%, dificuldades para atingir o orgasmo. Houve pioria da vida sexual quanto maior o tempo de infertilidade. Mulheres inférteis que já tinham filhos apresentaram significantemente melhor satisfação sexual comparadas às que não tinham. No que diz respeito ao relacionamento conjugal antes e depois da experiência de infertilidade, 60% das pacientes não relataram alterações, 26% referiram melhoria do relacionamento e 14% pioria da relação conjugal após esse problema.
ConclusãoA infertilidade interfere de forma negativa na sexualidade das mulheres.
In Brazil, there are no studies that investigate infertile women's sexuality, so there is a need for greater understanding of aspects of their sexuality and possible dysfunctions that could be present.
Materials and methodsWere used in this study a questionnaire for sexual quotient (female version) and a questionnaire investigating aspects of marital and sexual relationship prepared especially for this study. 111 patients who participated in the survey were seeking for assisted reproduction treatments in our clinic, before having initiated any kind of treatment, with ages between 25 to 47 years.
ResultsCollected data showed that 16.6% of the patients complained of lack of libido, 11.9% presented sexual arousal difficulties, 12.6% presented dyspareunia and 21.3% difficulties to reach an orgasm. We observed worsening of sexual life in proportion with the duration of infertility. Infertile women who already had children had significantly better sexual satisfaction compared to those that had not. Regarding marital adjustment before and after experiencing infertility, 60% did not refer any impairment, 26% referred enhancement and 14% referred worsening of the relationship.
ConclusionInfertility interferes in a negative way with women sexuality.
A vivência da infertilidade é muito frustrante para a mulher, uma vez que a maternidade está associada à feminilidade, a sentir-se mulher ao exercer o papel de mãe, sendo esse um importante aspecto para a constituição de sua identidade feminina.1
O valor atribuído pela mulher à maternidade faz com que, diante da dificuldade de gerar uma criança, se angustie, na maioria das vezes, muito mais do que o homem.2
Diversos estudos revelam conflitos conjugais, baixa satisfação no casamento2–4 e na atividade sexual5–7 entre casais com diagnóstico de infertilidade. No entanto, há também estudos que mostram a possibilidade de o casal aproximar-se emocionalmente e manter-se unido para enfrentar essa dificuldade, já que durante esse processo ambos podem aumentar a habilidade de comunicação, o sentimento de compromisso e lealdade de um para com o outro e a intimidade emocional por compartilharem seus sentimentos.8–10
Nota-se que o passar dos meses, somado à dificuldade em se alcançar a gravidez, gera perda da esperança de que a atividade sexual entre o casal traga como resultado um filho.11 Dessa maneira, sentimentos de vergonha e menos valia podem surgir por não conseguirem ter filhos como as outras pessoas e por precisarem buscar tratamentos para isso.12
Também são bastante observados entre pacientes que desejam engravidar e não conseguem alto nível de estresse, ansiedade e culpa, uma vez que não é nada fácil lidar com o que não se pode controlar.2,13
A falta de libido, de satisfação no ato sexual e de orgasmo são queixas trazidas por muitas mulheres, as quais relatam também se sentir pouco atraentes e menos femininas, o que acaba influenciando na qualidade ou na frequência dos seus coitos, uma vez que não se sentem bem com o próprio corpo nem mesmo consigo próprias.12,14
Millheiser et al.15 fizeram uma pesquisa, na Califórnia, na qual compararam aspectos da sexualidade feminina de pacientes inférteis com a de mulheres que não passavam por esse tipo de experiência (grupo controle) e verificaram que as mulheres inférteis tinham significativamente menor satisfação na vida sexual, menos desejo, excitação e frequência sexual do que o grupo controle. Acrescido a isso, o risco de apresentarem algum tipo de disfunção sexual foi de 40% comparado a 25% do grupo controle.
Nelson et al.5 também pesquisaram a existência de disfunção sexual junto a mulheres inférteis americanas e embora tenham encontrado uma prevalência de 26% nessa população, essa não destoou da média da população geral de mulheres de seu país.
Monga et al.,4 assim como Galhardo et al.,16 foram outros pesquisadores que não encontraram em suas pesquisas diferenças na sexualidade de mulheres inférteis das que não apresentavam esse tipo de problema. Já Güleç et al.7 encontraram melhor satisfação sexual entre mulheres inférteis turcas quando comparadas às mulheres não inférteis.
Um estudo feito por Khademi et al.17 com mulheres inférteis iranianas apresentou que 22,8% delas tinham dificuldades para atingir o orgasmo, 33,3% dificuldades relacionadas ao desejo sexual e 48% dor durante o coito, sendo que esses mesmos resultados foram encontrados de forma semelhante entre a população geral de mulheres iranianas. No entanto, a prevalência de disfunção relacionada à excitação sexual foi bem maior entre as mulheres inférteis do que as da população geral.
Além disso, o tipo de diagnóstico de infertilidade parece influenciar na sexualidade e vida conjugal dessas pacientes. Lee et al.2 observaram que mulheres com diagnóstico de infertilidade exclusivamente feminino ou exclusivamente masculino apresentaram menor satisfação no casamento e na vida sexual do que seus maridos; já mulheres com diagnóstico de infertilidade sem causa aparente não apresentaram esse tipo de insatisfação.
A influência do diagnóstico de infertilidade também foi notada no estudo de Drosdzol e Skrzypulec10 no qual perceberam que o diagnóstico de infertilidade masculina interferiu na estabilidade da relação conjugal e sexual tanto dos homens quanto de suas mulheres.
A pressão social, como também pessoal, pela gravidez, o sexo programado para os dias férteis e a perda da privacidade com intervenções e tratamentos médicos acabam sendo os grandes vilões da perda da qualidade sexual entre mulheres inférteis.3
Acrescido a isso tudo, nota-se que o longo tempo, sem sucesso, de busca por um filho também pode influenciar negativamente no relacionamento conjugal e sexual.10
Tendo em vista o exposto até o momento, há necessidade de maior compreensão dos aspectos da sexualidade de mulheres inférteis, assim como possíveis disfunções sexuais nelas presentes, uma vez que há falta de estudos que investiguem esse tema, principalmente considerando-se nossa cultura e o impacto da infertilidade relacionado à sexualidade.
MétodoTrata-se de um estudo transversal, descritivo, feito de abril de 2011 a fevereiro de 2012. A amostra populacional foi composta por 111 mulheres inférteis que buscavam tratamentos de reprodução assistida sem ainda tê-lo iniciado, com idades entre 25 a 47 anos (média de 36,5).
Foram excluídas da amostra pacientes que tinham dificuldade de compreensão do instrumento usado na pesquisa.
Utilizou-se na pesquisa o Questionário do Quociente Sexual (QSF) (versão feminina). Tal instrumento foi especialmente elaborado para a população brasileira e abrange a avaliação de vários domínios da atividade sexual feminina (desejo, excitação, orgasmo entre outros), além de ser um instrumento de fácil entendimento para a paciente.18 Cada uma das perguntas oferece opções de pontuação que variam de 0 a 5, sendo que o escore individual ≤ 2 indica comprometimento no domínio.19
Também foi usado no estudo um questionário com perguntas de múltipla escolha a fim de investigar aspectos do relacionamento conjugal e sexual atuais e anteriores à vivência da infertilidade. Foi realizado estudo piloto junto à população estudada.
As pacientes incluídas na pesquisa foram adequadamente informadas e concordaram em participar por meio de assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido, após o que foram entregues os instrumentos da pesquisa para a aplicação no próprio local. Algumas pacientes preferiram levar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e os instrumentos da pesquisa para serem respondidos em casa e os entregaram em momento subsequente ao Serviço.
Usou-se o teste de Wilcoxon-Mann-Whitney para avaliar a associação do QSF com estado civil e presença de filhos e o teste de Kruskal-Wallis para avaliar a associação do QSF com a religião e diagnóstico de infertilidade. As demais correlações foram feitas por meio da Correlação de Pearson.
ResultadosA tabela 1 demonstra o padrão de desempenho sexual.
Foi verificado no presente estudo que 16,6% das mulheres apresentaram falta de libido, 11,9% dificuldades de excitação sexual, 12,6% dispareunia e 21,3% dificuldades para atingir o orgasmo.
É interessante destacar que 20% das mulheres pesquisadas consideravam ter algum tipo de disfunção sexual anteriormente ao quadro de infertilidade.
Com relação à própria percepção da vida sexual antes e depois da infertilidade (tabela 2), notou-se que houve pioria após a infertilidade, já que 40% das pacientes consideravam sua vida sexual como “muito boa” antes da infertilidade, sendo que, após essa dificuldade, apenas 21% ainda a percebiam dessa maneira. Notou-se também que houve aumento da população que considerou sua vida sexual como “razoável” após a infertilidade (de 6,3% antes desse problema para 33% depois) e ruim (de 1,7% antes da infertilidade para 6% depois).
Já quando comparamos a percepção do relacionamento conjugal antes e depois da infertilidade, notou-se que 26% das mulheres perceberam como melhor o relacionamento conjugal após a infertilidade, 60% da mesma maneira e 14% pior na época do que antes dela.
Não houve relação significativa entre a idade da mulher, escolaridade e estado civil com o desempenho e satisfação sexual (QSF). Também não houve relação do tipo de diagnóstico de infertilidade com o QSF.
Já relacionado ao tempo de infertilidade, houve relação estatisticamente significante (p=0,018), o que indica pioria da vida sexual quanto maior o tempo de infertilidade.
A religião apresentou interferência no nível de desempenho e satisfação sexual das pacientes, uma vez que as católicas obtiveram pontuação significantemente maior no QSF do que as evangélicas (p=0,02). Não houve significância estatística com as demais comparações religiosas.
Outro dado interessante deste trabalho é que mulheres inférteis que já tinham filhos apresentaram resultados no QSF significantemente maiores do que as que não os tinham (p=0,002) (fig. 1).
DiscussãoA infertilidade parece influenciar de forma negativa na vida sexual feminina, uma vez que, quando comparamos a autopercepção da vida sexual das mulheres inférteis antes e depois da infertilidade, notou-se que houve pioria após o aparecimento dessa dificuldade, já que 40% das pacientes consideravam sua vida sexual como “muito boa” antes da infertilidade, sendo que após essa dificuldade apenas 21% ainda a percebiam dessa maneira. Houve também aumento da população que considerava sua vida sexual como “razoável” (de 6,3% antes desse problema para 33% depois) e ruim (de 1,7% antes da infertilidade para 6% depois).
A influência da infertilidade na sexualidade da mulher foi notada também no nível de satisfação e desempenho sexual, já que a maioria das mulheres (56%) apresentou desempenho sexual de “regular a bom” no QSF.
Dessa maneira, nota-se, por meio dos dados deste trabalho, que houve pioria na qualidade da relação sexual de mulheres inférteis, dados que também foram observados por Valsangkar,3 que identificou que a vivência da infertilidade, com sua pressão social pela gravidez, o sexo programado para os dias férteis e a perda da privacidade com intervenções médicas acabam prejudicando a qualidade sexual dessas mulheres.
No Brasil, uma pesquisa feita em uma clínica de planejamento familiar com 100 mulheres20 revelou que 11% delas apresentavam falta de desejo sexual, 8% disfunção de excitação, 13% dispareunia e 18% disfunção para atingir o orgasmo. Neste estudo percebemos que 16,6% das mulheres apresentaram falta de libido, 11,9% dificuldade de excitação sexual, 12,6% dispareunia e 21,3% dificuldade para atingir o orgasmo. Dessa maneira, quando comparamos mulheres que desejam engravidar e não conseguem com aquelas que não têm desejo reprodutivo, notamos que, na grande maioria dos domínios sexuais, houve piores resultados por parte das mulheres inférteis, denotando que a infertilidade parece prejudicar, sim, a função sexual dessas pacientes.
O tipo de diagnóstico de infertilidade também pode interferir na sexualidade das mulheres,2,10 porém este trabalho não mostrou interferências com relação a esse aspecto.
Drosdzol e Skrzypulec10 perceberam em sua pesquisa que o longo tempo de infertilidade pode influenciar negativamente no relacionamento sexual tanto de homens quanto de mulheres. Nesta pesquisa chegamos a essa mesma conclusão, pois quanto maior o tempo de infertilidade, pior foi a satisfação sexual das mulheres.
No que diz respeito à interferência da infertilidade na relação conjugal, notou-se que 26% das mulheres perceberam como melhor o relacionamento conjugal após a infertilidade, 60% da mesma maneira e 14% pior na época do que antes desse problema. Assim, para a maioria das mulheres, a infertilidade não interferiu no relacionamento com seu parceiro. No entanto, para boa parte dessa população (26%) ocorreu melhoria no relacionamento a partir desse problema, provavelmente, por causa do fato de o casal conseguir manter-se unido para enfrentar essa dificuldade e aumentar o sentimento de compromisso de um para com o outro e a intimidade emocional por compartilharem seus sentimentos.8–10
O tipo de crença religiosa demonstrou influenciar no desempenho e na satisfação das mulheres inférteis, já que pacientes católicas obtiveram pontuação significantemente maior no QSF (p=0,02) do que as evangélicas, o que indica, portanto, que as católicas apresentam uma vida sexual mais satisfatória do que as evangélicas.
Considerando que a sexualidade vai muito além do corpo, a cultura e os costumes nos quais a pessoa está inserida também irão influenciar no exercício de sua vida sexual.21 Sendo assim, a cultura que envolve a religião evangélica parece interferir de forma mais negativa na sexualidade das pessoas que compartilham dessa crença quando comparadas às pessoas que são da crença católica. Não houve significância estatística na comparação com as demais religiões.
Outro dado relevante observado nesta pesquisa foi que mulheres inférteis que já tinham filhos apresentaram desempenho e satisfação sexual significantemente melhores do que as que não os tinham. Esse dado nos leva a refletir que a ausência de filhos tem um impacto muito maior na sexualidade da mulher do que somente a sua busca, provavelmente porque a maternidade está amplamente relacionada à feminilidade.1 Muitas mulheres inférteis relatam se sentirem pouco atraentes e menos femininas, o que acaba influenciando na qualidade de sua vida sexual, uma vez que não se sentem bem com o próprio corpo nem mesmo consigo próprias.12,14
ConclusõesA infertilidade interfere de forma negativa na sexualidade das mulheres; no entanto, parece influenciar pouco na estabilidade do relacionamento conjugal.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
Trabalho feito no Projeto Beta–Medicina Reprodutiva, São Paulo, SP, Brasil.