Células‐tronco adultas estão presentes em diversos tecidos, inclusive no endométrio humano, e podem ser obtidas a partir do sangue do fluxo menstrual (MenSCs) de uma forma não invasiva. Devido à sua alta taxa de proliferação, baixa imunogenicidade e baixa tumorigenicidade, essas células podem ser usadas na engenharia de tecidos. Sob determinadas condições de cultura, elas podem ser induzidas a se diferenciar em várias linhagens de células. As MenSCs podem contribuir para a reparação dos tecidos por intermédio de vários mecanismos, destaca‐se sua grande promessa em aplicações clínicas. Além disso, as células‐tronco mesenquimais do endométrio podem ser usadas para o melhor entendimento da patogênese da endometriose e do carcinoma endometrial.
Adult stem cells are present in several human tissues, including the endometrium. Menstrual blood derived stem cells (MenSCs) are mesenchymal stem cells that can be obtained in a non‐invasive manner. Due to its rapid proliferation rate, low immunogenicity and low tumorigenicity, MenSCs are used extensively in tissue engineering. They can be induced into multiple cell lineages under certain conditions. MenSCs contribute to tissue repair via several different mechanisms, highlighting their great promise in clinical applications. Endometrial stem cells may also be used to shed light on the pathogenesis of endometriosis and endometrial carcinoma. This review will cover recent progress in this field.
As células‐tronco (CT) são definidas como células indiferenciadas capazes de se dividir de forma assimétrica, o que caracteriza a autorrenovação. Essas células apresentam capacidade de se diferenciar em diversos tipos celulares e, por esse motivo, têm sido estudadas para eventual potencial terapêutico. Sob algumas condições específicas, podem ser induzidas a se diferenciar em várias linhagens de células funcionais, tais como adipócitos, condrócitos, osteoblastos, células de músculo liso, cardiomiócitos, neurônios e hepatócitos.1,2
A depender do tecido das quais são extraídas, as células‐tronco podem ser classificadas como células‐tronco embrionárias (CTE) ou células‐tronco adultas (CTA) (também denominadas de células‐tronco somáticas). Desde o estabelecimento das primeiras linhagens de células‐tronco embrionárias em ratos,3 pesquisas sobre células‐tronco embrionárias e tronco adultas têm mostrado grandes promessas para terapias celulares, tais como cicatrização de feridas,4,5 restauração dos níveis de dopamina do cérebro de murinos em modelo de Parkinson,6 aceleração dos níveis de glicose no sangue,7 tratamentos de lesão da medula espinal8 e uma série de outras doenças, inclusive as neurodegenerativas.9
No entanto, estudos com células‐tronco embrionárias enfrentam os obstáculos desde a formação de teratomas (câncer de origem embrionária), assim como controvérsias éticas sobre o uso e a destruição de embriões humanos.10 Como são células totipotentes, as células‐tronco embrionárias podem diferenciar‐se em todos os diferentes tipos celulares. Devido ao seu alto grau de proliferação, quando injetadas no organismo, podem provocar teratomas.11 Uma opção para contornar esse problema seria a aplicação de células‐tronco adultas, que, ao contrário das embrionárias, não se diferenciam espontaneamente, mas podem ser induzidas por meio da administração de fatores de crescimento apropriados ou outros sinais externos.12
Um dos métodos para a obtenção de células‐tronco adultas multipotentes é a obtenção de células oriundas da medula óssea (MO), o que é um processo invasivo e doloroso. No entanto, células‐tronco altamente proliferativas foram identificadas no sangue menstrual. Trata‐se de células‐tronco multipotentes presentes no endométrio que mantêm o potencial para se diferenciar, apresentam um grande número de vantagens, pois não apresentam qualquer controvérsia ética, podem ser obtidas por um método não invasivo e são de fácil isolamento.13,14 Mais importante ainda, as células adultas oriundas do sangue menstrual humano (Menstrual‐blood derived stem cells – MenSCs) têm grande atividade proliferativa, de migração e capacidade pró‐angiogênica in vitro (especialmente sob condições de hipóxia) e em modelos animais, em comparação com populações de células‐tronco mesenquimais (MSC), obtidas a partir de tecidos de medula óssea.15
Material e métodosFoi feita uma revisão da literatura com pesquisa em banco de dados do PubMed e Cochrane sobre células‐tronco oriundas do fluxo menstrual e suas possíveis aplicações. Para essa revisão foram incluídos artigos em inglês. Para isso usamos palavras‐chave (MeSH terms) nas seguintes sintaxes: stem cells AND menstrual blood, stem cells AND endometrium, mesenchymal stem cells AND menstrual blood, menstrual blood‐derived stem cells AND clinical applications, menstrual blood‐derived stem cells AND molecular mechanisms.
Células‐tronco e endométrioEm 2006, um grupo de pesquisadores identificou a presença de células‐tronco no endométrio humano. A presença dessas células neste tecido é justificada pela contínua renovação do endométrio após a menstruação, gestação e possíveis traumas. Diferentemente do que se pensava no início, essas células não estão presentes somente na camada basal do endométrio, de forma que podem ser encontradas no sangue que é eliminado na menstruação.16
O endométrio humano é estrutural e funcionalmente dividido em duas regiões: superficial (funcional) e profunda (basal). A superficial está representada pelos dois terços superiores, onde estão presentes o epitélio superficial e a poção mais superior das glândulas endometriais, que são invaginações do epitélio superficial em direção a junção do endométrio/miometrial. Está constituído por um tecido conjuntivo frouxo, ricamente vascularizado. Essa porção do endométrio sofre descamação durante o processo menstrual, que ocorre praticamente a cada 28 dias. A região mais profunda do endométrio é denominada de basal, contém a região basal das glândulas endometriais e um estroma denso que contém grandes vasos sanguíneos, não sofre descamação e serve como um compartimento proliferativo para regenerar o endométrio funcional a cada mês.17 O endométrio humano é um tecido de remodelação dinâmica, sofre mais do que 400 ciclos de regeneração, diferenciação e de descamação durante os anos reprodutivos da mulher.18 Todos os meses 4‐10mm de tecido da mucosa crescem em torno de 4‐10 dias, na fase proliferativa do ciclo menstrual, sob a influência do aumento dos níveis circulantes dos estrogênios.
A regeneração do endométrio também ocorre após o parto, ou em mulheres na pós‐menopausa que usam terapia de reposição hormonal.16,18 Mesmo nesse último caso, é possível observar a mesma constituição na camada funcional do endométrio sem perda de clogenicidade das células‐tronco.19 Nas espécies não menstruais, como, por exemplo, em roedores, o endométrio é submetido a ciclos de crescimento e apoptose durante o ciclo estral, em vez sofrer uma descamação física.18 Esse neocrescimento tecidual é semelhante à renovação celular que ocorre no tecido hematopoiético da medula óssea, do epitélio intestinal e da epiderme, que é altamente regenerativo. As células‐tronco adultas são responsáveis pela produção de células nos tecidos de regeneração contínua. Na porção mais profunda da camada basal, adjacente ao miométrio, é onde se encontra o nicho de células‐tronco, responsáveis por parte da regeneração do tecido. Esse nicho apresenta um microambiente ideal de oxigenação e pH e está limitado a uma pequena porção da camada basal. Estudos de Schawab et al.20,21 mostraram que sob a influência do fator de crescimento epidermal (EGF), fator alfa de transformação do crescimento (TGF‐alfa) e fator de crescimento derivado das plaquetas BB (PDGFBB), esse nicho libera células que se diferenciam em células endometriais estromais e epiteliais independentemente da fase do ciclo menstrual. Assim, as células‐tronco ou progenitoras adultas são responsáveis pela regeneração cíclica do endométrio funcional a cada mês, estão também presentes no endométrio atrófico de mulheres na pós‐menopausa.18
Células tronco oriundas do sangue menstrualCélulas‐tronco mesenquimais podem ser obtidas do útero em várias situações, tais como na histerectomia, na curetagem para diagnóstico, no sangue menstrual e na decídua no primeiro trimestre. Pesquisadores referem que o fluxo menstrual pode ser uma grande fonte de células‐tronco, visto que o endométrio humano apresenta grande habilidade de regeneração.22
Durante as modificações que acontecem no endométrio devido à ação hormonal durante o ciclo menstrual, temos a fase proliferativa que ocorre logo após a menstruação. Nesse período, o estrogênio produzido pelos ovários estimula a proliferação de células da camada funcional.23
Estudo recente mostrou que os fibroblastos oriundos do endométrio não têm capacidade regenerativa.24 Uma possível explicação da origem dessas células‐tronco seria a medula óssea, pois foi observado que células oriundas da MO permanecem em média 2 a 3 dias no sangue humano e subsequentemente migram para os tecidos circundantes, o que poderia explicar a presença de tais células.25 No entanto, a análise fenotípica das células‐tronco oriundas do fluxo menstrual mostrou marcação diferente das células oriundas da medula óssea, pois expressam tanto marcadores de células‐tronco hematopoiéticas (CD34, CD35, CD38, CD45, ou HLA‐DR) como marcadores de células‐tronco mesenquimais (CD29, CD44, CD73, CD90 e CD105). Assim, essas células foram denominadas células‐tronco oriundas do fluxo menstrual (MenSCs). A baixa imunogenicidade das MenSCs pode torná‐las atraentes para a terapêutica de transplante celular. As células oriundas do endométrio no fluxo menstrual apresentam marcação para Oct‐4, SSEA‐4, Nanog e c‐kit (CD117). A presença desses marcadores de superfície pode explicar a sua alta capacidade proliferativa e sua habilidade de se diferenciar em vários tipos de células.26
Mecanismos moleculares de terapias baseadas em MenSCAs MenSCs podem contribuir para a reparação e a reconstrução dos tecidos por intermédio de uma variedade de mecanismos. Com estímulos adequados as MenSCs podem se diferenciar em vários tipos de células em condrócitos, adipócitos, osteócitos, hepatócitos e cardiomiócitos.22,23,26 As MenSCs induzidas em células de hepatócitos‐like funcionais expressam os marcadores de superfície dos hepatócitos ALB, AFP, CK18/19, e CYP1A1/3A4. Testes funcionais revelaram que essas células podem sintetizar ureia e armazenar glicogênio. Assim, elas poderiam atuar na reparação de um fígado danificado de forma eficaz, o que sugere o seu potencial terapêutico em pacientes que sofrem de doenças crônicas do fígado. A falência ovariana prematura (POF) é uma doença que provoca infertilidade em algumas mulheres. Assim, camundongos com insuficiência ovariana quando transplantados com células MenSCs que receberam estímulos apropriados podem se diferenciar em células da granulosa e produzir aumento significativo no peso dos ovários e da secreção de hormônios.27 Também foi observado que a injeção de MenScs, induzidas a se diferenciar em células produtoras de insulina, por via intravenosa, melhora significativamente a hiperglicemia em ratos com diabetes do tipo I.28 Foi observado que depois de terem sido injetadas nos ratos, a maioria das MenSCs tinha migrado para o pâncreas alterado e se localizado nas ilhotas perto do ducto pancreático. Fato curioso é que o número de células alfa aumentou após a injeção das MenSCs. No entanto essas células não eram oriundas da diferenciação das MenSCs. Assim, parece que as MenSCs podem estimular a diferenciação endógena, ou seja, de células progenitoras do próprio pâncreas de uma forma parácrina por meio da regulação positiva da neurogenina (Ngn3).28Da mesma maneira as MenSCs injetadas foram capazes de segregar fatores neuroprotetores, tais como o fator de crescimento endotelial vascular (VEGF) e fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF), em um modelo de rato de acidente vascular cerebral. Esses fatores promoveram a sobrevivência dos neurônios e causaram mudanças comportamentais e histológicas. No entanto, se os efeitos das MenSCs envolveram sua diferenciação direta em células neuronais, não está elucidado.29
As MenSCs também apresentam um efeito imunomodulador.2 A administração de MenSCs em camundongos com colite ulcerosa, um tipo de doença inflamatória do intestino, mostrou ter grande efeito imunomodulador. Assim, após a injeção de MenScs foi observada uma diminuição no número de células do sistema imunológico, tais como macrófagos e células NK. Além disso, as MenSCs diminuíram a expressão de inúmeras citoquinas pró‐inflamatórias (IL‐2 e TNF‐a) e aumentaram significativamente os fatores anti‐inflamatórios (IL‐4 e IL‐10).30
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
Trabalho feito no Departamento de Morfologia e Genética, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil.