Tramita no Senado Federal o anteprojeto de reforma do Código Penal. O novo texto, proposto por comissão de juristas, mantém o aborto como crime, mas modifica substancialmente o artigo 128, que trata das situações onde a interrupção da gestação não é criminosa. Além da previsão atual, que seria nos casos onde há risco de morte para a gestante, as condições clínicas que comprometessem sua saúde também permitiriam o aborto. O mesmo caberia para todas as violações da dignidade sexual que resultassem em gravidez. A excludente de crime também incluiria o emprego não consentido de técnicas de reprodução assistida. A permissão para a interrupção da gestação como anencefalia, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, seria ampliada para outras anomalias fetais graves e incompatíveis com a vida extrauterina. O inciso mais polêmico propõe a interrupção da gestação até a 12ª semana por vontade da gestante, quando o médico ou o psicólogo constatassem que a mesma não teria condições psicológicas de arcar com a maternidade.
Em março de 2013, o Conselho Federal de Medicina (CFM), após deliberação com 27 Conselhos Regionais de Medicina, enviou seu posicionamento sobre o aborto para o Senado, concordando com as propostas da reforma; mas divergiu em um ponto: não caberia parecer médico que limitasse a autonomia de decisão das mulheres. O presidente do CFM, Roberto Luiz d’Ávila, esclareceu: “É importante frisar que não se decidiu serem os Conselhos de Medicina favoráveis ao aborto, mas, sim, à autonomia da mulher e do médico”. Dessa forma, nenhuma mulher seria obrigada a realizar o aborto, tampouco manteria a gestação contra vontade. Médicos estariam livres para decidir interromper ou não a gestação, conforme sua consciência. Tanto o posicionamento do CFM como o texto da reforma do Código Penal não divergem da perspectiva do médico brasileiro.
O Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (CEMICAMP) abordou o tema com mais de quatro mil membros da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO). Os resultados mostram que 65% dos ginecologistas e obstetras entendem que a legislação deveria ampliar as condições em que a interrupção da gestação fosse permitida. Outros 15% acreditam que o aborto, voluntário e consentido, deveria ser acessível para a mulher. Apenas 0,2% dos médicos entrevistados afirmam que o aborto deveria ser proibido em qualquer situação, inclusive em casos de estupro e para evitar a morte da gestante. Mesmo a frente de possíveis conflitos entre valores pessoais e profissionais, 80% dos ginecologistas e obstetras esperam avanços na legislação do aborto. Certamente não faltam motivos quando se analisa o tema como questão de saúde pública.
A Organização Mundial da Saúde estima que a cada ano cerca de 20 milhões de abortos induzidos são praticados no mundo em condições absolutamente precárias. Mais de 90% desses abortos inseguros são realizados em países em desenvolvimento, os mesmos que mantém leis restritivas que proíbem ou restringem sua prática. Até 25% da razão de mortalidade materna decorre de complicações do aborto, levando à óbito aproximadamente 70 mil mulheres. A experiência internacional é contundente sobre a ineficácia da proibição do aborto como forma de evitá-lo. Em contraste, a mesma proibição gera sequelas e a morte de milhares de mulheres, sem conseguir evitar a perda fetal. Não faltaram enfáticas manifestações favoráveis ou contrárias ao documento do CFM.
O aborto segue como tema árduo e sem consenso. Mas cabe refletir se o drama do aborto pode continuar a ser enfrentado, sem sucesso, apenas criminalizando a mulher e punindo-a com a prisão. O CFM entendeu que não; e conduziu, responsavelmente, o debate para o campo da saúde pública.