Estudar as regulamentações referentes à reprodução humana assistida no Brasil, Chile, Uruguai e na Argentina.
MétodoEstudo qualitativo transversal das regulamentações referentes à reprodução humana assistida no Brasil, Chile, Uruguai e na Argentina entre novembro de 2013 e abril de 2014.
ResultadosO Brasil é regido pela Resolução do Conselho Federal de Medicina n° 2.013/2013; a Argentina pela Lei n° 26.862/2013; no Chile, até o momento, não existe uma lei que regulamente o uso das técnicas; e no Uruguai o projeto de lei n° 19.167/2013 aguarda regulamentação.
ConclusãoBrasil, Argentina, Chile e Uruguai são países sul‐americanos que se encontram em distintas situações legais no que diz respeito à regulamentação das práticas de reprodução humana assistida.
This research aimed to study the regulations of Assisted Human Reproduction in Brazil, Argentina, Chile and Uruguay.
MethodA cross‐sectional qualitative study of the regulations relating to Assisted Human Reproduction in Brazil, Argentina, Chile and Uruguay was conducted between November of 2013 and April of 2014.
ResultsRegarding the Assisted Human Reproduction techniques, currently Brazil is regulated by Resolution of the Federal Council of Medicine No. 2013/2013; Argentina by Law No. 26,862/2013; in Chile, so far, there is no law regulating the use of these techniques; in Uruguay the draft bill No. 19,167/2013 awaits regulation.
ConclusionBrazil, Argentina, Chile and Uruguay are South American countries that are in different legal situations regarding to the regulation of the practice of Assisted Human Reproduction.
Desde 1978, com o nascimento de Louise Brown, primeiro bebê de proveta do mundo,1 as tecnologias de reprodução humana assistida (RHA) tiveram grande evolução. Por se tratar de técnicas relativamente novas e de questões de cunho técnico, ético e científico muito complexas, muitos países não apresentam ainda uma legislação ou mesmo uma regulamentação.
A primeira regulamentação oficial brasileira sobre o uso das técnicas de RHA foi a Resolução n° 1.358/1992 do Conselho Federal de Medicina (CFM), substituída pela Resolução n° 1.957/2010 em 2010 e pela Resolução n° 2.013/2013, que atualmente regula a prática de RHA no Brasil.2–4
Foram escolhidos para servir de comparação com a atual situação do Brasil os países Argentina, Chile e Uruguai, por serem nações latino‐americanas e terem situações legais diferentes no que diz respeito à regulamentação das práticas de RHA. Na Argentina tais práticas são regulamentadas pela Lei 26.862 desde 2013,5,6 o Uruguai tem um projeto de lei aprovado em 2013 que se encontra em processo de regulamentação pelo Ministério de Saúde Pública7 e o Chile até o momento não apresenta regulamentação, embora vários projetos de lei já tenham sido propostos.8
A falta de uma lei que regulamente a prática de RHA no Brasil torna‐se, muitas vezes, um problema para os profissionais de saúde e usuários das técnicas. Por isso, este estudo visa a descrever as regulamentações de RHA no Brasil, Chile, Uruguai e na Argentina.
MétodoFoi feito um estudo qualitativo transversal das regulamentações referentes à RHA no Brasil, Chile, Uruguai e na Argentina entre novembro de 2013 e abril de 2014. O levantamento de dados foi feito por meio de busca nas fontes oficiais disponíveis em cada país na internet e os dados foram confrontados com informações apresentadas por organismos internacionais, a fim de confirmar a sua validade, pertinência e vigência. Em seguida, foram localizadas e registradas as versões oficiais dos textos legais, segundo a publicação dos órgãos governamentais de registro de documentos. A etapa final do levantamento de dados consistiu na confirmação e validação das informações, por meio de contato com pesquisadores e autoridades dos países envolvidos.
Foram escolhidos para estudo Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, nações sul‐americanas que se encontram em distintas situações legais no que diz respeito à regulamentação das práticas de RHA. Esses países são democráticos e laicos e detêm mais da metade da população sul‐americana (2012).9
Resultados e discussãoCom o avanço das tecnologias reprodutivas criou‐se a necessidade de instituir normas para o uso das técnicas de RHA. Com isso, a partir dos anos 1990 diversas nações instituíram diretrizes e legislações que regulamentavam as práticas de reprodução assistida pelo mundo.10 Os principais parâmetros relativos às regulamentações das técnicas de RHA aplicadas nos países estudados encontram‐se detalhados na tabela 1.
Principais parâmetros das regulamentações de RA no Brasil, Chile, Uruguai e na Argentina
PARÂMETROS DAS REGULAMENTAÇÕES DE RHA | ||||
---|---|---|---|---|
BRASIL | ARGENTINA | CHILE | URUGUAI | |
Fecundação homóloga | Sim | Sim | Sim | Sim |
Fecundação heteróloga | Sim | Sim | Sim | Sim |
Anonimato (fecundação heteróloga) | Sim | Sim | A critério dos centros de RA | Sim |
Útero de substituição | A doadora do útero deve pertencer à família de um dos parceiros. Exige parentesco consanguíneo de até quarto grau | Não é fixado por lei | Não é fixado por lei | A doadora do útero deve pertencer à família de um dos parceiros. Exige parentesco consanguíneo de segundo grau |
Idade máxima permitida | 50 anos | Não há limites de idade | Não há limites de idade | 60 anos |
Quantidade máxima de embriões a serem transferidos | Por idade:Até 35 – 236 a 39 – 340 a 50 – 4 | Não é fixado por lei | Não é fixado por lei | Por ciclo:No máximo 2 |
Fertilização post mortem | Permitida com autorização prévia | Não é fixado por lei | Não é fixado por lei | Sim |
Casais heterossexuais | Sim | Sim | Sim | Sim |
Casais homossexuais | Sim | Sim | A critério dos centros de RA | Sim |
Solteiros | Sim | Sim | A critério dos centros de RA | Sim |
No Brasil, ainda não existe uma legislação específica que regulamente o uso das tecnologias de RHA.2–4 Há anos tramitam pelo Congresso Nacional projetos de lei que regulamentam essas práticas, porém muitos já foram arquivados.4 A ausência de uma normatização oficial sobre os procedimentos relacionados à RHA fez com que no Brasil fosse criada em 1992 a primeira regulamentação oficial sobre o assunto, a Resolução 1.358/1992, do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Com as crescentes mudanças tecnológicas, sociais e culturais ao longo dos anos tornou‐se necessária a sua reformulação, o que culminou em uma nova regulamentação, a Resolução 1.957/2010, a qual sofreu novas alterações em 2013 e deu origem à Resolução 2.013/2013, que atualmente regula os procedimentos de RHA no Brasil.11
A nova resolução do CFM procurou atender às demandas do atual cenário social do país e estabeleceu que qualquer pessoa pode ser submetida às técnicas, independentemente da orientação sexual e do estado civil, enquanto na Resolução 1.358/1992, apenas mulheres poderiam ser as usuárias.2,4 É especificado, também, que a doação de gametas pode ocorrer desde que os doadores sejam mantidos em anonimato. A idade máxima deve ser de 35 anos para mulher e de 50 anos para o homem.4 O útero de substituição é permitido pela nova resolução, desde que haja parentesco de até quarto grau com um dos parceiros e que seja respeitada a idade limite de 50 anos.4
De acordo com a atual resolução, o número máximo de embriões a serem transferidos não pode ser superior a quatro e deve ser de acordo com a idade da receptora. Assim, a resolução sugere para mulheres até 35 anos o máximo de dois embriões; para mulheres entre 36 e 39 anos, até três embriões e para mulheres entre 40 e 50 anos, até quatro embriões. Fica também estabelecido pela resolução que a idade máxima para uma mulher ser submetida a uma técnica de RA é de 50 anos.4
Por fim, a Resolução 2.013/2013 determina que a fertilização post mortem é permitida, desde que haja uma autorização prévia do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado.4
Regulamentação de reprodução humana assistida na ArgentinaAté 2013 a Argentina não tinha uma lei em nível federal. No entanto, a província de Buenos Aires era regulada pela Lei n° 14.208, aprovada no fim de 2010. Tal lei, a primeira em nível provincial a legislar sobre esse tema na Argentina, era muito restritiva, limitava o acesso aos tratamentos apenas a casais e permitia somente técnicas de fertilização homólogas.12
Em 23 de julho de 2013 entrou em vigor a Lei n° 26.862, atualmente vigente em todo o território argentino. Essa lei tem como objetivo garantir o acesso integral aos procedimentos e às técnicas médicas de RA.6,13,14 Os pontos principais são:
- •
Acesso gratuito aos procedimentos médicos para todos os cidadãos, sejam eles casais heterossexuais ou homossexuais, ou ainda pessoas solteiras, que tenham ou não algum problema de saúde.15 O sistema de saúde pública cobrirá todo argentino e todo habitante que tenha residência definitiva. Não há menção de limites de idade.13
- •
Em situação de reprodução medicamente assistida que requeira gametas ou embriões doados, esses deverão ser oriundos dos bancos de gametas ou embriões devidamente inscritos no Registro Federal de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde. A doação nunca poderá ter caráter lucrativo ou comercial.5,6
- •
Estão incluídos na cobertura prevista nesse artigo os serviços de preservação de gametas ou tecidos reprodutivos destinados àquelas pessoas, incluindo menores de 18 anos, que em caso de não poder concluir uma gestação por problemas de saúde ou tratamentos médicos, ou ainda intervenções cirúrgicas, possam evitar o comprometimento da capacidade de procriar.14
Comparada com a antiga lei da província de Buenos Aires, a nova lei de RHA da Argentina é um projeto avançado, porque não requer dos receptores comprovação de infertilidade ou estar em um relacionamento, não discrimina por sexo ou idade, inclui técnicas de alta complexidade e novos procedimentos e técnicas desenvolvidos mediante avanços técnico‐científicos quando forem autorizados pelo Ministério da Saúde.5,6
Regulamentação de reprodução humana assistida no ChileA situação legal do uso das técnicas de RHA no Chile se assemelha à de muitos países latino‐americanos. Ainda não há uma lei específica, contudo existem projetos de lei em discussão.9 No Chile existem dois documentos sobre o assunto, um normativo e outro legislativo. O normativo é um antigo regulamento administrativo sobre as técnicas de fertilização in vitro (FIV), a Resolução n° 1.072/1985: “Normas aplicables a la fertilización in vitro y la transferencia embrionaria”, mas tais normas são aplicáveis apenas aos centros públicos de medicina reprodutiva.8
O documento de caráter legislativo, relativo às técnicas de RHA, surgiu em 1998 pela Lei n° 19.585. Essa lei modificou o sistema de filiação ao incluir um novo artigo (182) no Código Civil chileno que trata de filiação e envolve técnicas de RHA com ou sem doador. Essa lei garante a paternidade ao homem e à mulher, sejam eles casados ou não, que tenham um filho por meio de técnicas de RHA, com ou sem uso de gametas de doadores.8
Embora não haja uma legislação sobre o uso das técnicas de RHA, o Chile conta com um grande número de centros de medicina reprodutiva. Alguns desses centros seguem as normas éticas ditadas pela Rede Latino‐Americana de Reprodução Assistida (Rede LARA), enquanto outros usam as normas da Espanha ou dos Estados Unidos. Assim, nem todas as clínicas seguem a mesma ética quanto ao uso dessas técnicas.16
Como não há requisito legal para se submeter à RA, todas as mulheres, independentemente de estado civil ou opção sexual, deveriam ter acesso à inseminação com sêmen de doador. Porém, apenas alguns centros aceitam fazer inseminação em mulheres solteiras ou homossexuais.16
Quanto à doação de esperma, como não há documento legislativo a esse respeito, não há bancos de sêmen no Chile. Assim, os espermas de doadores, usados pelas clínicas para inseminações, vêm de países estrangeiros, como Estados Unidos e Espanha. Não há especificação sobre o anonimato de doações, o que fica a critério das clínicas de RHA.16
Regulamentação de reprodução humana assistida no UruguaiNo Uruguai, o Projeto de Lei n° 19.167 foi apresentado à Câmara de Deputados em 12 de novembro de 2013 e encontra‐se em processo de regulamentação pelo Ministério de Saúde Pública. Esse projeto promove as disposições gerais sobre as técnicas de RHA e determina que elas sejam liberadas para qualquer pessoa, independentemente de seu estado civil, desde que se tenha um diagnóstico de infertilidade.7
Como requisito, a aplicação pode ser feita para todas as pessoas maiores de idade e menores de 60 anos, a menos que sejam consideradas impróprias para exercer a paternidade. O número máximo de embriões que podem ser transferidos por ciclo é dois, para um total de três ciclos, salvo com indicação médica, quando esse número poderá ser aumentado para no máximo três.7
A doação de gametas deve ser feita de forma anônima e altruísta e não promoverá vínculo entre o bebê e o doador. Entretanto, considera que os receptores da doação têm o direito de obter informações sobre as características fenotípicas do doador. De acordo com o projeto de lei, é permitida a criação dos bancos de gametas e a criopreservação. Os gametas podem ser usados para a pesquisa, desde que não sejam fertilizados.7
Em relação à “barriga de aluguel”, é proibida a comercialização do útero de outra mulher e somente será permitida essa prática se a receptora da técnica não tiver condições de saúde para desenvolver uma gestação. Nesse caso, deverá recorrer a um parente de segundo grau para gestar.7 É definido que a fertilização post mortem pode ser feita dentro de 365 dias após o falecimento da pessoa, desde que haja um consentimento do falecido por escrito.7
A Lei 19.167 deveria entrar em vigor após 90 dias de sua promulgação. Contudo, até o momento as técnicas de RHA no Uruguai ainda se encontram aguardando regulamentação.7
Podemos observar que existe uma grande dificuldade na criação de uma legislação oficial que regulamente as técnicas de RHA no Brasil, uma vez que há anos tramitam no Congresso Nacional projetos de lei sem aprovação. Constata‐se que com o passar dos anos as resoluções brasileiras relativas à RHA se adequaram às exigências de um cenário social e científico que se encontra em constante evolução e propiciaram alterações como a permissão do uso de tais procedimentos por pessoas solteiras e casais do mesmo sexo, além do estabelecimento de um limite para o número de embriões a ser transferido para o útero materno.
A Lei 26.862da Argentina é inclusiva, amplia direitos e busca favorecer a acessibilidade integral a serviços de reprodução assistida. Tem um espírito moderno e progressista e pode gerar mudanças importantes na conformação da sociedade e em seus valores.
No Chile o panorama é semelhante ao do Brasil e de outros países latino‐americanos. Com a falta de uma lei que regulamente as práticas da RHA, o país sente a necessidade de um documento legislativo que determine o uso de tais técnicas para que haja uma padronização na conduta dos centros de RHA chilenos.
O projeto de lei uruguaio representa um grande avanço, uma vez que permite a universalização do acesso às técnicas de RHA. Esse acontecimento passa a integrar o sistema de saúde e a ser um direito de todos os que desejam ter um filho.
ConclusãoBrasil, Argentina, Chile e Uruguai são países sul‐americanos que se encontram em distintas situações legais no que diz respeito à regulamentação das práticas de RHA. Este estudo permitiu observar que é de fundamental importância a existência de leis que atendam às necessidades das partes envolvidas no uso da RHA, para que deixem de ser um tratamento exclusivo para casais inférteis e se tornem um direito daqueles que querem ter um filho.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
Trabalho desenvolvido na Faculdade de Ciências Humanas, Sociais e da Saúde, Fundação Mineira de Educação e Cultura, Belo Horizonte, MG, Brasil.