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Vol. 28. Núm. 2.
Páginas 47-50 (mayo - agosto 2013)
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Fundamentalismo religioso e violência sexual
Religious fundamentalism and sexual violence
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Jefferson Drezett
Revista Reprodução & Climatério; Comissão de Abortamento Legal da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana e do Núcleo de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital Pérola Byington
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Em 1° de agosto de 2013 a Presidência da República sancionou, sem vetos, a Lei n° 12.845, aprovada pelo Congresso Nacional, no qual tramitava desde 1999, que estabelece a obrigação dos hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) de prestar atendimento emergencial, integral e interdisciplinar para pessoas que sofrem violência sexual. Publicada no Diário Oficial da União, seu artigo 1° expressa com simplicidade o que se pretende: garantir assistência em saúde gratuita, qualificada e humanizada que previna e reduza os danos físicos e psíquicos decorrentes da violência sexual. O artigo 3° da Lei define quais ações integram esse atendimento: tratamento de lesões físicas, genitais e extragenitais; amparo médico, psicológico e social; apoio para registrar a ocorrência junto às autoridades; e profilaxia da gravidez indesejada e das doenças sexualmente transmissíveis (DST). Além disso, estabelece o direito de cada vítima receber suficiente informação sobre seus direitos legais e orientação sobre todos os serviços sanitários para ela disponíveis.

Por seu conteúdo essencialmente humanitário, que busca atenuar as consequências da brutalidade do ato, seria razoável supor que a Lei não receberia resistência, oposição ou requerimento de veto. Mas não foi o que ocorreu. Nas semanas que precederam a decisão do Executivo, manchetes diariamente destacaram diferentes estratégias de grupos e líderes religiosos para que a Presidência da República vetasse determinados pontos da Lei. Embora a questão da interrupção da gestação decorrente do estupro sequer seja mencionada no texto, fundamentalistas religiosos reclamaram que a lei estimularia e facilitaria o aborto no país. Criticaram duramente a anticoncepção de emergência (AE), por considerá-la medicamento abortivo. Ofendidos, reagiram ao emprego do termo profilaxia para se referir à gestação, sob a justificativa de que a palavra reduz a gravidez à condição de doença. Exigiu-se que os serviços de saúde não orientassem as mulheres sobre seus direitos, sob o argumento de que essa função caberia apenas à polícia.

Embora outras manifestações contrárias à Lei n° 12.845 tenham sido veiculadas, há questões acima que merecem muita atenção. A oposição à AE é recorrente no discurso religioso e se baseia em impossíveis e fantasiosos “mecanismos de ação”, insistentemente associados ao aborto precoce. Diferentemente disso, a AE tem capacidade demonstrável de suprimir o pico do LH e impedir ou postergar a rotura folicular. A administração muito próxima da ovulação não se mostra capaz de modificá-la, o que explica parte das falhas do método. Ao mesmo tempo, a AE interfere na capacitação e na fase sustentada de migração dos espermatozoides e aumenta a viscosidade do muco cervical. Impede-se o deslocamento do gameta masculino até as trompas, o que reduz significativamente as chances de fertilização nos casos em que não foi possível atuar na ovulação.1 Além disso, estudos de morfologia e de receptividade do endométrio para a nidação do blastocisto demonstram, sem exceção, que não há prejuízo desses biomarcadores após o uso da AE hormonal e mantêm-se intactos os processos biológicos posteriores à fecundação.2

As evidências científicas atribuem à AE a legítima condição de método anticonceptivo legal e ético como os demais contraceptivos modernos e eficazes. Mas o fundamentalismo religioso sistematicamente despreza a ciência e ignora o conhecimento. Sem apresentar qualquer evidência em contrário, mantém a retórica do “efeito abortivo”. Mas essa não é apenas uma questão de expressão e liberdade de pensamento dentro dos limites democráticos. Grupos religiosos têm publicamente por meta impor sua crença a todas as mulheres, seja com a manipulação da opinião pública suscetível ao seu apelo, seja pelos obstáculos ao acesso ao anticonceptivo em nome de “proteger a vida”. As cidades paulistas de Ilhabela e Jundiaí são exemplos recentes dessa estratégia ao aprovarem nas câmaras municipais leis draconianas que proibiram a venda e distribuição local da AE. Por sua inconstitucionalidade, essas leis foram evidentemente derrubadas pelo Poder Judiciário.

Mas há um inegável paradoxo na condenação religiosa da AE e na articulação por sua proibição, principalmente quando se consideram alguns indicadores de saúde reprodutiva. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que ocorram, anualmente, 75 milhões de gestações não planejadas em todo o mundo. Desse total, 46 milhões terminam em aborto induzido. Quase a metade desses abortos é praticada em condições precárias e inseguras, que levam à morte 45 mil mulheres jovens a cada ano. Outros cinco milhões de mulheres que sobrevivem ao aborto de risco enfrentam graves sequelas reprodutivas.3 O fundamentalismo religioso trata com descaso o fato de que ao reduzir as taxas de gravidez indesejada, a AE necessariamente reduz a busca das mulheres pelo aborto. Portanto, a anticoncepção não promove a aborto, mas o previne. Em consequência, ao diminuir o número de abortos inseguros, evita-sem tanto a morte de mulheres como a perda fetal e se protege a vida.

A estreiteza da visão religiosa que não admite o efeito preventivo da AE sobre o aborto é a mesma que considera insulto termos médicos que tratam eticamente a anticoncepção. De fato, a contestada palavra profilaxia deriva do grego prophýlaxis e seu uso na saúde comumente se aplica aos meios tendentes a evitar a propagação de doenças. Mas esse conceito não é restrito. A palavra também se aplica à proteção da saúde e, enquanto sinônimo de precaução, pode denominar outras medidas em outras áreas do conhecimento. Para a ciência, profilaxia também é qualificador de prevenção, registrada como identificador único Q000517 na Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) no Descritor em Ciências da Saúde (DeCS), e inclui medidas preventivas em casos individuais. Portanto, é correta a terminologia empregada na Lei e não há sustentação para a distorcida associação entre profilaxia e doença. Mesmo assim, o Executivo apressou-se a atender a leiga opinião religiosa e se comprometeu a substituir a profilaxia da gravidez pelo lamentável eufemismo medicação com eficiência precoce para prevenir a gravidez.

Existe, no entanto, a questão concreta de tentar impedir o acesso à AE para mulheres que sofrem crimes sexuais. E não há argumento que a justifique. O emérito professor Anibal Faúndes afirma, com experiência e sensibilidade, que a gestação decorrente de estupro é uma segunda violência contra a mulher, muitas vezes intolerável para ser mantida até o termo. A maioria das mulheres nessas circunstâncias parece concordar. Estudo feito em nosso meio indica que 88,4% das mulheres apresentam intenso sentimento de repúdio pela gestação forçada. Outras 76,7% declaram sua frustração e impotência frente uma violação de seu direito de escolha pela maternidade. Após dois ou mais anos da feitura do aborto legal, quase 70% dessas mulheres ainda referem problemas de sexualidade, resultado do abuso sexual. Por outro lado, mais de 80% das mulheres que decidiram pelo aborto eram católicas, evangélicas ou espíritas. As mesmas religiões inflexíveis quanto ao tema do aborto e que advogam a proibição de sua prática. Nenhuma delas declarou arrependimento pela escolha.4

A perversidade de pretender obrigar que mulheres vulneráveis corram o risco de engravidar do estupro causa tanta perplexidade quanto pretender a tirania de obrigá-las a manter essa gestação até o término. Nesse caso, o argumento religioso de que a lei sancionada estimularia o aborto não faz sentido e não tem relevância. A legislação penal brasileira é restritiva quanto ao aborto e o tipifica como crime. A Lei n° 12.845 não altera esse fato, nem acrescenta excludentes de ilicitude. Contudo, desde 1940 o inciso II do artigo 128 do Código Penal estabelece que não há punição para a mulher ou para o médico(a) que faz o aborto quando a gravidez resulta de crime sexual. Mulheres têm o direito de escolha de manter a gestação ou interrompê-la, assim como os profissionais de saúde podem decidir se fazem ou não o procedimento, mediante sua consciência. Cabe ao Estado o dever de ampará-los, qual seja sua decisão.5

A normativa do Ministério da Saúde, publicada em 1999, oferece protocolo que orienta os profissionais de saúde a conduzir o atendimento de mulheres em situação de gravidez decorrente de violência sexual, obedecidos os princípios éticos e o ordenamento jurídico.6 A Lei n° 12.845 não cria uma norma técnica, mas garante que todas as mulheres tenham acesso à existente. Nesse aspecto, a crítica à Lei excede a retórica religiosa. O Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 42/2007, de autoria do deputado federal Henrique Afonso, que se declara membro da Igreja Presbiteriana, propõe suspender a norma técnica do Ministério da Saúde e proibir a interrupção da gestação decorrente de estupro. No mesmo sentido, caminha o Projeto de Lei (PL) 478/2007, do deputado federal Luiz Bassuma, conhecido como Estatuto do Nascituro, que tornaria inviolável a vida desde a fecundação e faria crime o aborto em caso de estupro ou qualquer intervenção que comprometesse a viabilidade do óvulo fecundado.

Como esse objetivo não é factível frente à atual legislação, fundamentalistas religiosos exigiram do Executivo que a informação sobre a possibilidade de interromper a gestação fosse arbitrariamente negada às mulheres. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) alega que esse tipo de informação induziria e estimularia a escolha pelo aborto. Pretende, portanto, que seja ocultado das mulheres que elas têm o direito ao aborto ético, legal e seguro. Não cabe comentar tamanha intenção de desrespeito aos direitos humanos das mulheres e o flagrante afrontamento da Constituição. Grande parte da população conhece o direito ao aborto em casos de estupro, o que tornaria a medida inócua. Por outro lado, desconhecer direitos é mais frequente entre mulheres pobres e com menor escolaridade. São essas mulheres mais vulneráveis que dependem dos serviços de saúde para receber a informação sobre o direito ao aborto legal.

Não há violação da ética ou do direto ao orientar uma mulher grávida de estupro sobre quais opções tem frente essa situação. A norma técnica do Ministério da Saúde prevê essa medida. O Comitê de Ética em Reprodução Humana e Saúde da Mulher da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo) afirma que o principal compromisso do(a) médico(a) deve ser proporcionar as melhores condições de saúde reprodutiva para as mulheres. Mesmo aqueles que se encontrem impedidos de fazê-lo por razões de consciência não deixam de ter essa responsabilidade. Deve prevalecer o dever de informar à mulher todas as opções para sua condição, inclusive aquelas de que ele eventualmente se negue a praticar. O princípio bioético da autonomia assegura a participação da mulher nas decisões sobre sua saúde.7

Contraditoriamente, a CNBB defende a tese de que apenas as delegacias de polícia forneçam esse tipo de informação. Difícil entender por qual motivo o delegado de polícia poderia oferecer informação para uma mulher sobre uma questão de sua saúde e o profissional de saúde, não. Preconizar que apenas a polícia informe sobre o direito ao aborto legal em casos de estupro esconde uma lógica misógina: a de que as mulheres alegariam falso estupro e que precisam ser submetidas ao interrogatório policial, como criminosas, para “encontrar a verdade”. Além de violar o direito de presunção de veracidade, essa proposição não tem fundamento. A mulher que sofre crime sexual não tem dever legal de comunicar o fato à polícia, fazer o boletim de ocorrência ou se submeter ao exame de corpo de delito.5 Mesmo assim, a Lei n° 12.845 estabelece que os serviços de saúde devam apoiar e orientar a mulher a tomar essas medidas enquanto exercício de direitos, da mesma forma que já o faz a norma técnica do Ministério da Saúde.6

Por fim, cabe compreender o contexto em que se aplica a Lei n° 12.845 e se insere a retórica religiosa. Não são poucas as razões que fundamentaram a proposição do Legislativo. A violência contra mulher é uma brutal violação de direitos humanos. Entre 2002 e 2006 foram registrados mais de oito mil óbitos de mulheres brasileiras com entre 15 e 29 anos, resultado direto de agressões físicas praticadas por homens. Quase 12% das regiões analisadas no país mostram taxa elevada de letalidade de mulheres, muito acima da média nacional, e alertam para a magnitude e as complexidades regionais do problema.8

Crimes sexuais podem ser entendidos como a amarga expressão dessa violência de gênero e atingem principalmente as mulheres. Os números envolvidos na violência sexual são igualmente expressivos, embora reconhecidamente subnotificados. Mesmo assim, entre 2004 e 2006 foram feitos 105 mil atendimentos de emergência nos EUA de mulheres jovens com lesões físicas decorrentes de crimes sexuais.9 A estimativa mais preocupante, embora confiável, é que 12% a 25% das meninas sofra algum tipo de abuso sexual até os 18 anos.10 Investigação da OMS indica que a frequência de abuso sexual praticado pelo parceiro íntimo pode alcançar desde 6% das mulheres que vivem em Sérvia e Montenegro até 59% das mulheres na Etiópia. No Brasil, 15% das mulheres declaram ter sofrido violência sexual e 34%, violência física, ambas praticadas nessas circunstâncias.11 Esses dados divergem consideravelmente dos registros oficiais dos órgãos da segurança pública, os quais refletem a pequena parcela de mulheres que consegue vencer os obstáculos para formalizar a comunicação para as autoridades, entre eles o medo de represália do agressor e o constrangimento e a humilhação.

Não mais se questiona a elevada prevalência da violência sexual contra mulher, considerado fenômeno mundial de rápido crescimento. Mas é preciso reconhecer seus efeitos, com sequelas sociais, emocionais e físicas que as tornam mais vulneráveis a problemas de saúde e que limitam seu desenvolvimento humano. A saúde reprodutiva é frequentemente afetada por lesões físicas, DST, gravidez forçada e transtornos psicológicos. Esses agravos, isoladamente ou em conjunto, têm se mostrado potencialmente devastadores para as mulheres, principalmente quando há despreparo do sistema de saúde para oferecer respostas qualificadas.6

A violência contra a mulher reúne condições incontestáveis de um problema de saúde pública. Isso exige políticas para as mulheres que promovam a igualdade de gênero e o respeito à vida e à integridade física, fundamentais para atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Ainda que se tenha avançado positivamente na organização e implantação do atendimento de mulheres em situação de violência sexual, existe grande concentração dos serviços nas regiões Sul e Sudeste, enquanto que mulheres de regiões menos favorecidas ainda enfrentam barreiras para receber atendimento. Desde a publicação da norma técnica do Ministério da Saúde, há quase 15 anos, o sistema de saúde ainda não conseguiu resolver questões fundamentais que garantam o acesso igualitário de todas as mulheres em situação de violência sexual aos procedimentos a que têm direito. Nesse sentido, a Lei n° 12.845 é um instrumento necessário para que gestores municipais e estaduais não se eximam de suas responsabilidades.

A Lei n° 12.845 foi sancionada sem vetos e a retórica religiosa, aparentemente vencida. Prevaleceu o respeito ao princípio da laicidade do Estado, que separa as questões religiosas das questões de direitos. Entretanto, as chamadas frentes parlamentares formadas basicamente por parlamentares religiosos são responsáveis por 31 proposições de leis sobre o aborto que representam graves retrocessos à legislação e que ferem direitos adquiridos pelas mulheres.

Mas há outras iniciativas que refletem a arrogância e a intolerância religiosa. O Projeto de Lei (PL) 7.382/2010, do deputado evangélico Eduardo Cunha, visa a criminalizar a “discriminação contra heterossexuais”, como antagonismo ao projeto de lei que criminaliza a homofobia, garantindo que heterossexuais expressem sua aversão aos que deles diferem. O Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 234/2011, do deputado João Campos, pastor da Assembleia de Deus, pretende instaurar a “cura gay” no país e sustar a lúcida resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe tratar a homossexualidade como doença. Retirado por força de manifestações populares, o PDL 234/2011 foi novamente apresentado e está em tramitação no Legislativo. O mesmo deputado defende o Projeto de Lei (PL) 377/2011, que criminaliza as trabalhadoras do sexo e as castiga com um ano e seis meses de prisão. O pastor evangélico Marcos Feliciano, deputado federal e líder do Ministério Tempo de Avivamento, protocolou o Projeto de Lei (PL) 9394/96, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação para tornar obrigatório o ensino religioso nas escolas.

Entre esses exemplos, cabe destaque para a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 99/2011, de autoria do deputado federal João Campos. Ela revela o que realmente pretende o fundamentalismo religioso: conceder capacidade postulatória às associações religiosas para propor ação de inconstitucionalidade de leis e de atos normativos que contrariem suas crenças. Em síntese, colocaria em enorme risco o Estado laico, democrático e de direito. E isso extrapola a simples retórica.

Referências
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