A via radial é amplamente utilizada para a realização de cateterismo cardíaco e angioplastia, com vantagens como a diminuição do risco de sangramento e de complicações vasculares. O presente caso relata uma complicação rara durante o cateterismo cardíaco por via radial: a avulsão de tecido endotelial da artéria radial pelo cateter e sua embolização para a artéria descendente anterior, a qual foi resolvida pela aspiração manual do fragmento embolizado. Tal complicação pode ter relação com as características anatômicas específicas da artéria radial do paciente.
The radial access is widely used for cardiac catheterization and angioplasty, with advantages such as decreased risk of bleeding and vascular complications. This case reports on a rare complication during cardiac catheterization by radial access: radial artery endothelial tissue avulsion through the catheter and its embolization to the left anterior descending artery, which was resolved by manual aspiration of the embolized fragment. This complication may be related to the specific anatomical characteristics of the patient's radial artery.
O uso do acesso radial para a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos tem ganhado número crescente de adeptos, por estar associado à diminuição do risco de sangramento, ao maior conforto para o paciente e à deambulação precoce pós‐procedimento, em comparação ao acesso femoral.1–3 Particularmente, a redução no sangramento se traduz em diminuição de eventos clínicos e até mesmo em redução de mortalidade, especialmente em pacientes com infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do ST (IAMCST).4,5
Desse modo, são importantes o conhecimento e o manuseio das possíveis complicações relacionadas ao acesso radial e, dentre elas, relatamos a avulsão da artéria radial, complicação muito rara, cuja ocorrência pode levar à sua oclusão.6,7 A avulsão da artéria radial pode se associar à embolização de fragmentos do endotélio com oclusão coronária aguda, necessitando de intervenção percutânea imediata, como demonstrado no presente caso.
Relato de casoPaciente do sexo feminino de 63 anos, com antecedentes de diabetes melito, hipertensão arterial sistêmica e doença arterial coronariana multiarterial com IAMCST de parede inferior em março de 2012. Na ocasião da internação, foi realizada coronariografia, que evidenciou oclusão da artéria coronária direita (ACD) e lesões obstrutivas na artéria descendente anterior (ADA) e no ramo marginal, com circulação colateral grau 3da ADA para ACD. Foi feita tentativa de angioplastia da ACD, sem sucesso, por impossibilidade de cruzamento da lesão com o fio‐guia. A paciente foi avaliada pela equipe de cardiologia, que indicou revascularização cirúrgica.
Ela recebeu alta hospitalar com recomendação de retorno após 60 dias para reavaliação e agendamento da cirurgia, mas ela não retornou para dar continuidade ao tratamento. Em novembro de 2014, devido à dor precordial aos médios esforços, retornou no ambulatório de cirurgia cardíaca, sendo solicitada nova coronariografia.
O procedimento foi realizado pela técnica radial, após teste de Allen normal, utilizando introdutor 6 F Glidesheath e fio‐guia 0,021”/45cm ponta reta, que acompanha o introdutor (Terumo Medical®, Tóquio, Japão). Foi administrada heparina na dose de 5.000UI pelo introdutor. Na passagem do conjunto cateter Judkins JL 3,5 5 F e fio‐guia hidrofílico 0,038” Stiff (Terumo Medical®, Tóquio, Japão) pela artéria radial direita, a paciente referiu dor no braço, e foi percebida dificuldade na progressão do cateter na altura da artéria braquial direita, mas, mesmo assim, ele atingiu a raiz da aorta. Após a retirada do fio‐guia, não se observou refluxo do sangue pelo cateter, sendo então o cateter retirado e realizada sua lavagem com soro fisiológico 0,9%, com a eliminação de tecido de forma tubular e esbranquiçado (fig. 1A). O mesmo cateter foi reintroduzido e foi realizada injeção de contraste na artéria radial, a qual mostrava‐se de fino calibre, com origem na artéria axilar direita (fig. 1B). Neste momento, foram administrados 40mg de papaverina diluída em 10mL de soro fisiológico 0,9% intra‐arterial, lentamente, durante 2 minutos. Com o auxílio da guia hidrofílica, o cateter atingiu a raiz da aorta novamente, e foi realizada coronariografia esquerda em projeção anteroposterior, que mostrou oclusão da ADA (fig. 2A). Nesse momento, a paciente passou a referir forte dor precordial.
(A) Coronariografia esquerda mostrando oclusão da artéria descendente anterior no terço médio. (B) Fragmento de tecido retirado da artéria descendente anterior pela aspiração manual. (C) Coronariografia esquerda mostrando reperfusão da artéria descendente anterior após aspiração. (D) Coronariografia esquerda de controle pós‐implante de stent.
Ela foi medicada com heparina endovenosa (EV), complementada para atingir 100 UI/kg e 600mg de clopidogrel via oral, e o cateter diagnóstico foi trocado por cateter‐guia EBU 3,5 6 F (Medtronic, Mineapolis, EUA) pela artéria radial direita. Foi posicionada a guia Whisper Extra Support 0,014” (Abbott Vascular, Santa Clara, EUA) no leito distal da ADA e, em seguida, realizada aspiração manual com o cateter Thrombuster II (Kaneca Medix Corporation, Tóquio, Japão), sendo retirado pequeno fragmento com aspecto semelhante ao retirado do cateter diagnóstico (Fig. 2B). A coronariografia de controle pós‐aspiração mostrou ADA com fluxo Thrombolysis In Myocardial Infarction (TIMI) III e lesão segmentar de 80% no terço proximal (fig. 2C), similar ao cateterismo realizado em 2012. Foi realizada pré‐dilatação com balão Pantera 2,5 x 20mm (Biotronik Corporation, Berlim, Alemanha) a 8atm, seguido de implante de stent Promus Element 3,0 × 32mm (Boston Scientific Inc. Natick, EUA) a 18atm. A coronariografia de controle pós‐implante mostrou stent bem expandido, sem dissecções e com fluxo TIMI III (fig. 2D). A arteriografia radial direita após o procedimento mostrou artéria radial pérvia (fig. 3).
Durante a internação, a paciente evoluiu assintomática, sem alterações eletrocardiográficas, com pico de troponina de 0,87 ng/mL e isoenzima MB da creatina quinase (CKMB) massa de 3 ng/mL, recebendo alta hospitalar em uso de antiagregação plaquetária dupla. Na reavaliação clínica 2 meses após a alta, a paciente permanecia assintomática, e o pulso radial direito estava presente, apenas discretamente diminuído em relação ao pulso radial esquerdo.
DiscussãoO presente caso se diferencia dos relatos de avulsão endotelial da artéria radial descritos na literatura médica pela ocorrência concomitante de embolização de fragmento endotelial para a artéria coronária, ocasionando sua oclusão, a qual foi resolvida empregando‐se o cateter de aspiração.
As complicações do acesso radial para coronariografia e angioplastia coronária mais comuns são espasmo arterial e oclusão trombótica da artéria radial. Outras complicações mais raras são sangramento no local de acesso, hematomas no antebraço, perfuração da artéria radial ou braquial, pseudoaneurisma, síndrome compartimental e abscesso do local de acesso.1,8
A avulsão da artéria radial é uma complicação muito rara, e a maioria dos relatos de casos está relacionada ao momento da retirada do introdutor radial6,7,9 e, menos comumente, ao espasmo com aprisionamento do cateter‐guia. No presente caso, a artéria radial, de fino calibre, apresentava uma variação anatômica, com origem na artéria axilar direita, fato que propiciou a ocorrência do espasmo, culminando com a avulsão de fragmento de tecido pela ponta do cateter.10
Dentre as variações anatômicas da artéria radial, três delas – bifurcação alta da artéria radial (axilar), curvaturas e tortuosidades – estão associadas ao insucesso da técnica radial. A bifurcação alta é frequente e pode ser dividida em quatro tipos, de acordo com variações do diâmetro da artéria radial e anastomoses.1 No terceiro tipo, similar ao observado no presente relato, a artéria radial remanescente ou artéria radial hipoplásica é de fino calibre, com diâmetro muito pequeno até mesmo para o uso de cateteres 4 F. A abordagem por via de acesso alternativa é preferível neste caso extremo, devido à progressão dolorosa do cateter associada ao espasmo e ao aumento do risco de perfuração. Acesso radial contralateral é sempre uma possibilidade a ser considerada neste contexto, pois a vasculatura dos antebraços tende a ser assimétrica. Alternativamente, o acesso femoral pode ser utilizado.1
A embolia coronariana pode ser decorrente de quadros clínicos, como a endocardite infecciosa, a fibrilação atrial, a fragmentação de trombo mural em átrio esquerdo ou ventrículo esquerdo e o mixoma atrial ou trombo originado em próteses cardíacas valvares.11 A embolia, neste relato de caso, provavelmente ocorreu por nova avulsão de tecido pela ponta do cateter, após lavagem e reintrodução, ou, alternativamente, durante a primeira tentativa de cateterização da coronária esquerda, devido à migração de fragmento de tecido presente dentro do cateter. A tromboaspiração manual, usualmente empregada para aspiração de trombos no IAMCST,12 funcionou adequadamente na aspiração do êmbolo.
A avulsão da artéria radial provavelmente ocorreu pelo trauma ocasionado pela ponta do cateter em vaso de fino calibre, com espasmo adicional subjacente. Os preditores de espasmo da artéria radial são idade avançada, baixa estatura, artéria radial de fino calibre, sexo feminino, diabetes, falha na primeira tentativa de acesso arterial e dor.1 Medidas que previnam e/ou tratem o vasoespasmo são úteis para reduzirem as chances dessa complicação, como a anestesia local apropriada, o uso de introdutores e cateteres hidrofílicos,13 a manipulação delicada dos cateteres, o uso de sedação para diminuir a ansiedade e o uso profilático sistemático de drogas espasmolíticas. O cocktail com nitroglicerina e verapamil pode reduzir a incidência de espasmo na artéria radial para < 5%, com cateteres 6 F, e para < 1%, com cateteres 5 F.14 O uso de introdutores com dilatadores de pontas extremamente afiladas também colabora para diminuir o trauma na parede do vaso.
Uma limitação do presente relato foi a não realização de estudo anatomopatológico dos fragmentos extraídos.
Fonte de financiamentoNão há.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
A revisão por pares é de responsabilidade da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista.