Comunicação intercoronária ou arcada coronária é uma anomalia congênita rara. Relatamos o caso de um paciente com comunicação intercoronária, com quadro de dor torácica e eletrocardiograma com padrão de repolarização ventricular precoce, mas sem aterosclerose significativa à cineangiocoronariografia. No entanto, foi visualizada comunicação intercoronária com fluxo unidirecional entre a coronária direita e a artéria circunflexa, que foi avaliada pela ecocardiografia sob estresse físico, sem detecção de isquemia. Embora a comunicação intercoronária geralmente não esteja relacionada à isquemia, há relatos na literatura de que o fluxo unidirecional pode causar isquemia miocárdica por meio do roubo coronariano.
Intercoronary communication or coronary arcade is a rare congenital abnormality. The authors report the case of a patient with intercoronary communication, chest pain, and electrocardiogram showing an early ventricular repolarization pattern, but no significant atherosclerosis at the coronary angiography. Nevertheless, an intercoronary communication with unidirectional flow between the right coronary artery and the left circumflex artery was visualized, and later assessed by physical stress echocardiography, which did not detect ischemia. Although intercoronary communication is usually unrelated to ischemia, there are reports in the literature that unidirectional flow can cause myocardial ischemia through coronary steal.
O conhecimento da anatomia normal da circulação coronária, bem como das variantes e das anomalias congênitas associadas, é fundamental para uma adequada abordagem dos doentes. Na população geral, a prevalência das anomalias congênitas coronárias é de cerca de 1 a 2%.1 A apresentação destas anomalias é variável, podendo apresentar‐se como clinicamente silenciosas ou causar situações potencialmente ameaçadoras à vida, como infarto agudo do miocárdio ou morte súbita.1 A comunicação intercoronária ou arcada coronária é definida como uma circulação aberta com fluxo de sangue bidirecional entre duas artérias coronárias. Ela pode ser distinguida de circulação colateral por suas características angiográficas e, normalmente, não está associada à doença aterosclerótica coronariana.1
Relato de casoPaciente do sexo masculino, 62 anos, com antecedentes de hipertensão arterial e tabagismo, foi transferido da Unidade Básica de Saúde para o pronto atendimento cardiológico da Santa Casa de Ribeirão Preto, com provável diagnóstico de síndrome coronariana aguda. Apresentava dor retroesternal, em aperto, em repouso, sem outros sintomas associados, com 20 horas de início. O eletrocardiograma (fig. 1) mostrava padrão de repolarização precoce em região anterior.
No momento da avaliação inicial, referia dor torácica leve, apresentava pressão arterial de 140 × 80mmHg, frequência cardíaca de 64 bpm, ausculta cardíaca sem sopros e ausculta pulmonar sem alterações. Foram iniciadas medidas terapêuticas anti‐isquêmicas (ácido acetilsalicílico 200mg, clopidogrel 300mg e enoxaparina 60mg a cada 12 horas), e foram seriados os marcadores de necrose miocárdica. Apesar dos marcadores de necrose miocárdica serem negativos, optou‐se por estratégia invasiva, devido aos sintomas.
Foi realizada cineangiocoronariografia (fig. 2) via radial com introdutor 6 F Radifocus® Introducer II Transradial Kit (Terumo Co., Tóquio, Japão) e cateter Multipurpose Performa® Diagnostic Cardiology Catheter (MeritMedical, South Jordan, EUA), que evidenciou coronária esquerda dominante e sem lesões obstrutivas. No entanto, foi observado enchimento de circunflexa via coronária direita (comunicação intercoronária). A ventriculografia esquerda não mostrava défices segmentares, e a fração de ejeção foi estimada em 63%.
Coronariografia evidenciando comunicação entre a coronária direita e a circunflexa. Coronária direita em projeção oblíqua anterior esquerda e oblíqua anterior direita cranial (A e B). Coronária esquerda em projeção oblíqua anterior direita caudal e oblíqua anterior esquerda cranial (C e D).
A ausência de doença aterosclerótica implicou ecocardiograma sob estresse para avaliar isquemia provocada pela comunicação intercoronária, na possibilidade desta ser de fluxo unidirecional e causar isquemia. O ecocardiograma foi realizado sob estresse físico com resultado negativo para isquemia miocárdica.
Foi mantido com enalapril 20mg a cada 12 horas e metoprolol 50mg ao dia, com suspensão dos antiagregantes plaquetários e anticoagulante, não havendo recorrência de dor torácica durante a internação, tendo recebido alta em boas condições clínicas.
DiscussãoAs alterações congênitas da anatomia coronária são classificadas como variantes da normalidade ou anomalias das artérias coronárias. As variantes da circulação coronária são uma alternativa ao padrão normal, relativamente frequentes, enquanto as anomalias da circulação coronária são incomuns, observadas em menos de 1% da população.1 As variantes e as anomalias da circulação coronária podem ser divididas em quatro grupos principais: anomalias da origem, do percurso, da terminação e intrínsecas.2
A comunicação intercoronária ou arcada coronária é uma anomalia rara, observada pela primeira vez por Cheng,3 na qual existe uma comunicação com fluxo bidirecional entre duas artérias coronárias principais. Ela tem diferenças do ponto de vista anatômico, histológico e funcional em comparação com os vasos colaterais. Sua prevalência não é conhecida com exatidão, tendo sido relatada como de 0,002 a 0,04%.3 Cerca de 0,02% dos cateterismos cardíacos diagnósticos tem comunicação intercoronária, o que corresponde a uma em cada 5.000 coronariografias normais.4
Sabemos que continuidades arteriais existem em outras áreas, como o arco palmar superficial da mão, ramos intestinais da artéria mesentérica superior (arcada de Riolan) e o polígono de Willis. Com relação à comunicação intercoronária, estão descritos dois tipos: um localizado no sulco atrioventricular posterior, entre a coronária direita e a circunflexa; e outro no sulco interventricular, entre a descendente anterior e a descendente posterior.5 Presume‐se que esta anomalia da circulação coronária seja congênita, resultado da persistência do padrão fetal da circulação coronária, a partir de uma comunicação entre o plexo embrionário anterior esquerdo e do plexo embrionário posterior direito.5 Assim, foi sugerido que um desenvolvimento embrionário imperfeito possibilita manter o canal coronário proeminente e de grande calibre, ao contrário da circulação colateral, pois esta frequentemente está associada a estenoses significativas das artérias coronárias.4,6 No entanto, há relatos de que o desenvolvimento da comunicação intercoronária, na ausência de doença arterial coronária obstrutiva, pode ocorrer como resultado de espasmos coronários repetitivos.6 A estrutura da comunicação intercoronária é típica de uma artéria coronária epicárdica: está presente em vasos coronários angiograficamente normais, exibe camada muscular bem desenvolvida, com diâmetros superiores ≥ 1mm, com características extramurais e é menos tortuosa quando comparada às colaterais.4 Vale ressaltar que as circulações colaterais se assemelham às arteríolas, pois têm um endotélio suportado por colágeno mal organizado e fibras musculares.4 Há opiniões contraditórias sobre sua repercussão funcional, pois podem se apresentar com um fator de proteção (bypass natural) para isquemia em uma artéria coronária quando há uma lesão obstrutiva.1,6 Por outro lado, podem levar à isquemia, por fenômeno de roubo de fluxo, quando é unidirecional e não existe qualquer lesão obstrutiva.1,3 As consequências isquêmicas de uma comunicação intercoronária com fluxo unidirecional podem ser explicadas por sua semelhança com uma fístula de uma artéria coronária para um território de baixa pressão.2 Os distúrbios transitórios do fluxo coronário podem causar dor torácica típica e isquemia nas provas funcionais.6 Diante destes casos, os pacientes tratados com betabloqueadores ou os antagonistas dos canais de cálcio não diidropiridínicos geralmente apresentam melhora clínica pelo mecanismo de reduc¿a¿o do to¿nus vasomotor.1
Fonte de financiamentoNão há.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
A revisão por pares é de responsabilidade da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista.