A anatomia das artérias coronárias é bem conhecida, mas há grande variedade em sua origem e distribuição. A artéria descendente anterior dupla é definida como a presença de duas artérias descendentes anteriores dentro do sulco interventricular anterior, sendo classificada em quatro tipos. É uma variante anatômica benigna que deve ser reconhecida, especialmente antes de procedimentos intervencionistas. Relatamos o caso de um paciente com artéria descendente anterior dupla tipo I, com apresentação clínica de infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento de segmento ST em parede anterior, encaminhado para a realização de intervenção coronária percutânea primária.
The anatomy of the coronary arteries is well known, but there is a wide variety in their origin and distribution. The dual left anterior descending artery is defined as the presence of two left anterior descending arteries within the anterior interventricular sulcus and is classified into four types. It is a benign anatomical variant that should be recognized, especially before interventional procedures. We report a patient with type I dual left anterior descending artery, with acute anterior wall ST elevation myocardial infarction, referred for primary percutaneous coronary intervention.
A artéria descendente anterior (ADA) é a artéria com padrão mais constante em trajeto e distribuição da circulação coronária e, habitualmente, tem origem no tronco da coronária esquerda, percorre todo o sulco interventricular anterior e emite ramos septais e diagonais que garantem a irrigação das paredes anterior, septal e lateral do ventrículo esquerdo.
As anomalias de origem e trajeto coronário são extensamente citadas e classificadas na literatura. No entanto, são raramente descritos casos de ADA dupla, nos quais um segmento curto termina na porção alta do sulco interventricular anterior, e um segmento longo atinge o ápice.
O correto reconhecimento angiográfico das variações anatômicas assume grande importância durante os procedimentos de revascularização, seja percutâneo ou cirúrgico, especialmente nos casos de intervenção coronária percutânea (ICP) primária.
Relato do casoPaciente do sexo masculino, 71 anos, transferido da Unidade Básica de Saúde para o pronto atendimento cardiológico da Santa Casa de Ribeirão Preto devido à dor precordial com 8 horas de duração e eletrocardiograma com corrente de lesão subepicárdica anterior extensa. Na admissão, o paciente apresentava‐se em classe funcional Killip I, pressão arterial de 170 90mmHg, frequência cardíaca de 94 bpm, saturação periférica de oxigênio de 96%, recebendo oxigênio por cateter nasal a 2 L/minuto. As auscultas pulmonar e cardíaca estavam normais.
Com o diagnóstico clínico de infarto do miocárdio com supradesnivelamento do segmento de ST, em classe funcional Killip I, foram implementadas medidas farmacológicas (ácido acetilsalicílico AAS 200mg; clopidogrel 600mg; e nitroglicerina endovenosa), e o paciente foi encaminhado para a realização de ICP primária.
Cineangiocoronariografia foi realizada por via braquial, por punção, com introdutor 6 F, em razão da excessiva tortuosidade, de espasmo e da não progressão do fio‐guia pela via radial. O exame mostrou oclusão proximal da ADA, ausência de lesões obstrutivas nas artérias circunflexa e coronária direita, e ventriculografia esquerda com acinesia anteroapical (fig. 1).
Procedeu‐se à ICP primária, com a administração de 100 UI/kg de heparina não fracionada e passagem de fio‐guia 0,014” ChoICE® intermediário (Boston Scientific Corporation, Natick, Estados Unidos). Foi realizada, em seguida, pré‐dilatação com cateter balão semicomplacente Pantera® (Biotronik, Bülach, Suíça) 2,5 10mm até 8 atm, seguida de implante de stent Multilink® 2,75 15mm (Abbott Vascular, Santa Clara, Estados Unidos), até 14 atm. Coronariografia de controle evidenciou dissecção de borda distal de stent, que foi corrigida com implante de novo stent Multilink® 2,5 18mm até 12 atm, com resultado angiográfico final satisfatório e fluxo distal Thrombolysis in Myocardial Infarction (TIMI) 3 (fig. 2).
Como o paciente persistia com dor residual e manutenção do supradesnivelamento do segmento em ST após a saída da sala de hemodinâmica, a cineangiocoronariografia foi revisada. Levantou‐se a hipótese de uma variante anatômica, já que a ADA abordada não atingia o ápice, sendo o paciente reestudado por via femoral, com visualização de imagem que sugeria retenção de contraste no primeiro ramo diagonal.
Novo procedimento foi realizado por via femoral direita, com introdutor 6 F, sendo utilizados 100 UI/kg de heparina não fracionada. Os stents implantados previamente estavam pérvios e com resultado mantido; optou‐se pela passagem de fio‐guia 0,014” Galeo® (Biotronik, Berlim, Alemanha) no ponto de oclusão, sendo realizada pré‐dilatação com cateter balão semicomplacente Pantera® (Biotronik, Berlim, Alemanha) 2,0 10mm até 6 atm, quando se visualizou novo leito de ADA, que apresentava oclusão no segmento proximal. Foi realizado implante de stent Multilink® 2,5 38mm, com 12 atm, no segmento médio e stent Multilink® 2,75 x 23mm, com 12 atm, em segmento proximal, com overlap de bordas, resultado angiográfico final satisfatório e fluxo distal TIMI 3 (fig. 3).
O controle angiográfico final mostrou ADA dupla, tipo I de Spindola‐Franco, com um ramo curto, que emitia os ramos septais, e um ramo longo, que emitia ramos diagonais e septais distais (fig. 4).
Diagrama de Spindola‐Franco demonstrando artéria descendente anterior dupla tipo I (A). Coronária esquerda em projeções oblíqua anterior esquerda e direita (B). ADA: artéria descendente anterior. Fonte: Spindola‐Franco et al.1
O paciente evoluiu com desaparecimento da dor torácica e regressão do supradesnivelamento do segmento ST. Ele teve boa evolução clínica, recebendo alta após 7 dias, com prescrição de medicação adjunta (carvedilol, enalapril, sinvastatina, AAS e clopidogrel).
DiscussãoAs variantes anatômicas de origem, trajeto, padrão de distribuição e ramificação das artérias coronárias são infrequentes e com incidência de 0,131 a 1,38%2,3 em pacientes submetidos à arteriografia coronária, podendo estar associadas a malformações congênitas, como transposição completa das grandes artérias e tetralogia de Fallot. Tuncer et al.,4 em uma análise de 70.850 coronariografias de adultos, encontraram 171 casos com anomalias coronárias, dos quais 0,017% eram ADA dupla. Embora relativamente rara, Spindola‐Franco et al.2 descrevem e classificam a ADA dupla, salientando as implicações cirúrgicas de seu correto diagnóstico. Posteriormente, essa classificação foi modificada por Moreno‐Martínez et al.5 (tabela 1).
Classificação da artéria descendente anterior (ADA) dupla, modificada por Moreno‐Martínez et al.5
Tipos | Descrição angiográfica |
---|---|
I | ADA ramo curto percorre o SIA e emite os principais septais |
ADA ramo longo desce lateral ao SIA no VE e retorna ao SIA no segmento distal, até atingir o ápice | |
Agrega‐se a um tipo: | |
a. Tipo I ‐ de Tuncer et al.4: quando ambas as ADAs (longa e curta) se originam do TCE e este tem origem anômala no seio de Vasalva direito | |
II | ADA ramo curto é igual ao tipo I, e o ramo longo desce lateral ao SIA no VD e retorna ao SIA no segmento distal, até atingir o ápice |
III | ADA ramo curto corresponde às descritas nos tipos I e II |
ADA ramo longo tem trajeto intramiocárdio, através do septo interventricular, e retorna ao epicárdio no segmento distal do SIA até atingir o ápice | |
IV | ADA original e curta formam um vaso muito curto, que se situa muito alto no SIA, de onde se originam os principais ramos septais e diagonais. O ramo longo é um ramo que origina da CD, que, em seu início, cursa anterior ao infundíbulo do VD e faz uma curva aguda, até alcançar o SIA e alcançar o ápice |
Agrega‐se a diferentes subtipos: | |
a. Tipo IV, de Tutar et al.6: tipo IV clássico com artéria circunflexa originada da CD | |
b. Tipo IV, de Moreno et al.7: a ADA curta pode não ter septais e a longa nem sempre é um ramo da CD, podendo ter origem independente no seio coronário direito | |
c. Tipo IV, de Andreou et al.8: a ADA curta emite um ramo diagonal que transcorre sobre a parede lateral do ventrículo esquerdo e passa a margem obtusa do coração, comportando‐se como um obtuso marginal aberrante | |
d. Tipo IV, de Cruz et al.9: TCE origina‐se da CD e emite a ADA longa. A ADA curta origina‐se diretamente do seio coronário esquerdo, é hipoplásica, ocupa apenas o terço proximal e não emite nenhum ramo de importância | |
e. Tipo IV, de Manchanda et al.10: a ADA curta se origina diretamente do seio coronário esquerdo, e a longa, diretamente do seio coronário direito | |
f. Tipo IV, de Maroney et al.11: a ADA curta se origina do TCE e emite os septais proximais e um único diagonal de grande importância. A ADA longa se origina da CD, chega ao SIA depois de atravessar por debaixo da via de saída do VD e emite pequenos septais em todo seu trajeto |
SIA: septo interventricular anterior; VE: ventrículo esquerdo; TCE: tronco da coronária esquerda; VD: ventrículo direito; CD: coronária direita.
A presença de ADA dupla tem grande importância clínica, e a precisa identificação de seus segmentos curto e longo é essencial para o correto planejamento dos enxertos cirúrgicos ou durante os procedimentos de revascularização percutânea.12 Além disso, o conhecimento das variantes de ADA dupla nos ajuda a entender algumas discrepâncias entre a localização das lesões coronárias e as alterações de contratilidade segmentares do ventrículo esquerdo, devendo‐se pensar em segmento curto quando há parede septal alterada e motilidade normal em parede anterior, ou oclusão do segmento longo quando há acinesia ou discinesia anteroapical com parede septal normal.
No presente relato de caso, que corresponde ao tipo I da classificação de Spindola‐Franco, salientamos a particularidade de envolvimento aterotrombótico em ambos os ramos. Com a evolução desfavorável após a primeira ICP e o não reconhecimento imediato da variação anatômica coronária que levou à persistência das manifestações isquêmicas, houve necessidade de revisão da angiografia coronária, já antecipando a possível dualidade da ADA, dado que o trajeto do primeiro ramo abordado não atingiu as porções distais.
Enfatizamos a necessidade de os cardiologistas intervencionistas se familiarizarem com os tipos anatômicos da ADA dupla, pois sua caracterização angiográfica tem implicações relevantes na tomada de decisão frente aos procedimentos de revascularização.
Fonte de financiamentoNão há.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.