A aterectomia rotacional com incorporação de novas estratégias ablativas tem sido proposta para o preparo de lesões extremamente calcificadas. Entretanto, pouco se conhece a respeito da adoção dessas novas estratégias na prática contemporânea e sobre a evolução tardia dos pacientes submetidos a esse tratamento. Objetivamos avaliar os aspectos técnicos da aterectomia e a evolução tardia dos pacientes quanto à ocorrência de eventos cardiovasculares adversos maiores (ECAM).
MétodosEstudo retrospectivo e unicêntrico, incluindo todos os pacientes submetidos à aterectomia rotacional como parte do tratamento de lesões coronárias com calcificação extrema ou falha de dilatação em procedimento prévio, no período de julho de 2012 a novembro de 2014. Foram definidos como ECAM: óbito, infarto agudo do miocárdio com onda Q ou nova revascularização do vaso‐alvo.
ResultadosForam submetidos à aterectomia 29 pacientes com idade média de 69,5 ± 7,6 anos. A média da relação oliva/vaso foi de 0,54 ± 0,07; a velocidade de rotação inicial adotada foi de 161.000 ± 13.928 e a taxa de utilização de cutting balloon pós‐aterectomia foi de 45,1%. Sucesso angiográfico foi obtido em todos os procedimentos. Na evolução tardia, a mediana de tempo de seguimento foi de 13,2 meses (intervalo interquartil: 4,0 a 17,4 meses). Foram registrados um óbito por causa não cardíaca e duas novas revascularizações do vaso‐alvo. A média do tempo de sobrevivência livre de ECAM foi de 29,7 ± 2,1 meses.
ConclusõesA aterectomia rotacional contemporânea incorporou estratégias menos agressivas de ablação, com elevada taxa de sucesso imediato e baixa ocorrência de ECAM na evolução tardia.
Rotational atherectomy with new ablative strategies have been proposed for the treatment of extremely calcified lesions prior to stent implantation. Nevertheless, few data are available about the adoption of these new strategies in contemporary practice and about late outcomes of patients undergoing this therapy.
MethodsFrom July 2012 to November 2014, a retrospective single center registry was conducted, including all patients undergoing rotational atherectomy as part of the treatment of coronary arteries with heavy calcification or previous failed dilation. We evaluated technical aspects of atherectomy and late outcomes of patients for the occurrence of major adverse cardiovascular events (MACE), defined as death, Q‐wave myocardial infarction or repeat target vessel revascularization.
ResultsTwenty‐nine patients with a mean age of 69.5 ± 7.6 years, underwent atherectomy. The average burr‐to‐artery ratio was 0.54 ± 0.07, the initial rotational speed was 161.000 ± 13.928 and the rate of cutting balloon utilization after atherectomy was 45.1%. Angiographic success was achieved in all procedures. The median follow‐up time was 13.2 months (IQ: 4.0‐17.4) and there were three events: 1 death of non‐cardiac cause and 2 new target vessel revascularizations. The mean MACE‐free survival time was 29.7 ± 2.1 months.
ConclusionsContemporary rotational atherectomy incorporates less aggressive strategies of ablation with high rates of acute success and low occurrence of major adverse cardiovascular events during late follow‐up.
A aterectomia rotacional coronariana, à época de sua introdução, em 1988,1 popularizou‐se como uma abordagem ablativa mecânica alternativa à angioplastia convencional com balão, diferenciando‐se desta pela obtenção do ganho luminal, por meio da redução do conteúdo da placa aterosclerótica.2,3 No entanto, a maior complexidade técnica e a incidência relativamente alta de complicações imediatas e tardias em pacientes tratados exclusivamente com esse método determinou o declínio de sua utilização na década seguinte, especialmente após a disponibilização dos stents coronários.4
Ao longo dos últimos anos, observou‐se um aumento progressivo do número de pacientes e de lesões de alta complexidade considerados para tratamento percutâneo. Diante disso, tornam‐se frequentes os cenários anatômicos desafiadores, como a calcificação coronariana acentuada, que se associa à dificuldade de cruzamento e à dilatação das lesões e influencia negativamente nos resultados das intervenções.5,6
Nesse contexto, a aterectomia rotacional passou a ser reutilizada como ferramenta adjunta à intervenção coronária percutânea. No lugar da estratégia mais agressiva empregada no passado, a proposta atual inclui olivas menos calibrosas e velocidades de rotação menores, para uma modificação geométrica da placa aterosclerótica, seguida de dilatação das lesões com balão e outros dispositivos que, em conjunto, permitem o implante dos stents com adequada expansão de suas hastes.7,8
Há poucos dados sobre a adoção dessas novas estratégias na prática contemporânea e sobre a evolução tardia dos pacientes submetidos a esse tratamento. Desse modo, objetivamos avaliar os aspectos técnicos da aterectomia e a evolução tardia dos pacientes quanto à ocorrência de eventos cardiovasculares adversos maiores (ECAM).
MétodosDesenho do estudo e populaçãoRealizou‐se estudo retrospectivo em centro único, dedicado ao tratamento de doenças cardiológicas de alta complexidade. No período de julho de 2012 a novembro de 2014, foram incluídos todos os pacientes submetidos à aterectomia rotacional como parte do tratamento de lesões coronarianas com calcificação extrema (calcificação visível em imagem fluoroscópica antes da injeção de contraste) ou com falha de dilatação da lesão em procedimento prévio. Foram excluídos pacientes com lesões reestenóticas ou em enxertos cirúrgicos.
Procedimento e terapia antiplaquetária duplaOs pacientes receberam, previamente à intervenção, dupla antiagregação plaquetária com dose de ataque de 200mg de ácido acetilsalicílico e 600mg de clopidogrel. Durante o procedimento, heparina não fracionada foi utilizada na dose de 70 a 100 U/kg, e o uso de inibidores da glicoproteína IIb/IIIa ficou a critério do operador.
Todos os procedimentos foram realizados com o sistema de aterectomia rotacional Rotablator (Boston Scientific, Natick, Estados Unidos), utilizando‐se exclusivamente a via de acesso femoral. A escolha do tamanho das olivas foi realizada pelos operadores, tendo em vista o diâmetro da referência distal do vaso‐alvo, conforme avaliação pela angiografia. O tamanho da oliva foi selecionado para alcançar uma proporção de oliva/vaso de 0,5 (no máximo de 0,7). A velocidade do dispositivo variou entre 140 mil e 180 mil rotações por minuto. A aterectomia foi interrompida a critério do intervencionista, após número variável de passagens da lesão ou após o surgimento de complicações.
O tipo e os tamanhos dos dispositivos utilizados após a ablação ficaram a cargo do operador principal. Após a alta, a dose de manutenção diária recomendada foi de 100mg de aspirina e 75mg de clopidogrel, com suspensão do tienopiridínico, de acordo com o julgamento do médico assistente.
Desfechos e definiçõesO desfecho primário do estudo foi a ocorrência de ECAM, definidos como óbito, infarto agudo do miocárdio (IAM) com onda Q ou nova revascularização do vaso‐alvo no seguimento clínico tardio, encontrados em consulta ao prontuário eletrônico institucional e por contatos telefônicos. Avaliou‐se, secundariamente, a evolução hospitalar dos pacientes quanto à ocorrência de óbito, acidente vascular cerebral (AVC), infarto periprocedimento (infarto tipo 4a), nova revascularização do vaso‐alvo e nefropatia induzida por contraste.
Sucesso angiográfico foi definido como estenose residual < 50% e fluxo coronário Thrombolysis in Myocardial Infarction 3 (TIMI). Infarto periprocedimento foi definido como evidência clínica, eletrocardiográfica ou ecocardiográfica de isquemia acompanhada de aumento superior a cinco vezes o percentil 99 dos valores de CK‐MB massa ou troponina I em pacientes com valores basais normais, ou nova elevação > 20% após estabilidade ou queda inicial nos pacientes com valores basais maiores que o percentil 99 do método. IAM com onda Q foi definido como o surgimento de novas ondas Q patológicas no eletrocardiograma, acompanhado ou não de sintomas de isquemia ou alteração da contratilidade miocárdica. Nefropatia induzida por contraste foi definida como elevação de creatinina sérica superior a 25% em relação ao valor basal ou superior a 0,5mg/dL em termos absolutos, sem outra causa aparente após a administração de meio de contraste.
Análise estatísticaA análise dos dados clínicos e angiográficos foi realizada utilizando‐se o software Statistical Package for the Social Science (SPSS, IBM Corp. New York, Estados Unidos). As variáveis contínuas foram descritas como média e desvio padrão, e as variáveis categóricas como contagem absoluta e porcentagens. Para descrição do tempo de seguimento, utilizaram‐se mediana e intervalo interquartil (percentis 25‐75). A análise de sobrevida foi realizada pelo método de Kaplan‐Meier.
ResultadosDurante o período analisado, 29 pacientes obedeceram aos critérios de inclusão e foram avaliados pelo presente estudo. A média de idade da população foi de 69,5 ± 7,6 anos, e observou‐se porcentual elevado de diabetes melito (62,1%) e do padrão multiarterial (79,3%) (tabela 1).
Características clínicas e angiográficas
Variável | n = 29 pacientes/ 31 lesões |
---|---|
Idade, anos | 69,5 ± 7,6 |
Sexo masculino, n (%) | 21 (72,4) |
Hipertensão arterial, n (%) | 27 (93,1) |
Diabetes melito, n (%) | 18 (62,1) |
Dislipidemia, n (%) | 28 (96,6) |
Insuficiência renal,a n (%) | 7 (24,1) |
Insuficiência cardíaca, n (%) | 8 (27,6) |
Cirurgia de revascularização do miocárdio prévia, n (%) | 5 (17,2) |
Angioplastia coronária prévia, n (%) | 4 (13,8) |
Infarto agudo do miocárdio prévio, n (%) | 4 (13,8) |
Acidente vascular encefálico prévio, n (%) | 1 (3,5) |
Tabagismo, n (%) | 13 (44,8) |
Atual | 3 (10,3) |
Prévio | 10 (34,5) |
Quadro clínico, n (%) | |
Angina estável ou equivalente anginoso | 19 (65,5) |
Síndrome coronariana aguda | 10 (34,5) |
Presença de isquemia em teste não invasivo | 8 (27,6) |
Provedor, n (%) | |
Sistema Único de Saúde | 17 (58,6) |
Sistema de Saúde Suplementar | 12 (41,4) |
Padrão arterial, n (%) | |
Uniarterial | 6 (20,7) |
Biarterial | 6 (20,7) |
Triarterial | 17 (58,6) |
Vaso‐alvo, n (%) | |
Tronco da coronária esquerda | 2 (6,5) |
Descendente anterior | 19 (61,3) |
Circunflexa | 4 (12,9) |
Coronária direita | 6 (19,4) |
Classificação angiográfica das lesões, n (%) | |
Tipo A | 0 |
Tipo B1 | 0 |
Tipo B2 | 1 (3,2) |
Tipo C | 30 (96,8) |
Lesão em bifurcação, n (%) | 10 (32,2) |
Fluxo coronário (TIMI) do vaso‐alvo, n (%) | |
TIMI 0 | 0 |
TIMI 1 | 1 (3,2) |
TIMI 2 | 5 (16,1) |
TIMI 3 | 25 (80,6) |
Grau de estenose da lesão‐alvo, % | 87 ± 9 |
TIMI: Thrombolysis in Myocardial Infarction.
aClearance de creatinina calculado < 60mL/minuto.
Foram realizados 29 procedimentos, sendo tratadas 31 lesões com o Rotablator. O diâmetro inicial das olivas foi de 1,54 ± 0,22mm, com relação oliva/referência distal do vaso de 0,54 ± 0,07 e velocidade de rotação inicial de 161.000 ± 13.928 rotações por minuto (rpm). Em 93,6% das intervenções, foi realizada a dilatação da lesão com balão após a aterectomia rotacional, com utilização de cutting balloon em 45,1% dos casos. Stents farmacológicos foram utilizados em 77,4% dos pacientes, com média de 1,54 ± 0,66 stent por lesão e comprimento médio dos stents implantados de 40,3 ± 20,0mm (tabela 2).
Aspectos técnicos dos procedimentos
Variável | n = 29 pacientes/ 31 lesões |
---|---|
Indicação da aterectomia, n (%) | |
Falha em dilatar a lesão em procedimento prévio | 6 (19,4) |
Calcificação angiográfica extensa | 25 (80,6) |
Diâmetro inicial da oliva, mm | 1,54 ± 0,22 |
Utilização de segunda oliva de maior diâmetro, n (%) | 4 (12,9) |
Relação oliva/referência distal do vaso | 0,54 ± 0,07 |
Número de passagens da lesão com oliva | 3,15 ± 2,01 |
Tempo total de rotação, segundos | 65 ± 45 |
Velocidade inicial de rotação, rpm | 161.000 ± 13.928 |
Aumento da rotação durante a aterectomia, n (%) | 5 (16,1) |
Dose de radiação, DAP | 234.400 ± 141.458 |
Dose de radiação, Kerma | 3.839,12 ± 2.404,83 |
Volume de contraste, mL | 260 ± 149 |
Acesso vascular, n (%) | |
Radial | 0 (0) |
Femoral | 29 (100) |
Introdutor arterial, n (%) | |
6 F | 5 (17,2) |
7 F | 22 (75,9) |
8 F | 2 (6,9) |
Procedimento ad hoc, n (%) | 6 (20,7) |
Procedimentos guiados por USIC, n (%) | 6 (20,7) |
Pré‐dilatação da lesão após aterectomia, n (%) | 29 (93,6) |
Utilização de cutting baloon, n (%) | 14 (45,1) |
Número de vasos tratados por procedimento | 1,35 ± 0,48 |
Utilização de stents farmacológicos, n (%) | 24 (77,4) |
Número de stents no vaso‐alvo | 1,54 ± 0,66 |
Comprimento dos stents no vaso‐alvo, mm | 40,3 ± 20,0 |
Marca‐passo profilático, n (%) | 2 (6,9) |
Balão intra‐aórtico, n (%) | 0 |
RPM: rotações por minuto; DAP: produto dose‐área; USIC: ultrassonografia intracoronária.
Sucesso angiográfico foi obtido em 100% dos procedimentos. As complicações associadas à aterectomia estão expressas na tabela 3. A taxa de infarto periprocedimento (tipo 4a) foi de 10,3%, não ocorrendo óbitos, AVC e nem nova revascularização do vaso‐alvo no seguimento hospitalar (tabela 4).
Resultados do procedimento e evolução hospitalar
Variável | n = 29 pacientes/31 lesões |
---|---|
Sucesso angiográfico, n (%) | 31 (100,0) |
Complicações vasculares relacionadas ao procedimento, n (%) | |
Slow‐flow | 2 (6,5) |
No‐reflow | 1 (3,2) |
Dissecção coronária | 3 (9,7) |
Perfuração coronária | 1 (3,2) |
Óbito, n (%) | 0 (0) |
AVC, n (%) | 0 (0) |
IAM periprocedimento (tipo 4a), n (%) | 3 (10,3) |
Nova revascularização do vaso‐alvo, n (%) | 0 (0) |
Nefropatia induzida por contraste, n (%) | 0 (0) |
Tempo de internação, dias | 6 (3‐9) |
AVC: acidente vascular cerebral; IAM: infarto agudo do miocárdio.
O seguimento clínico tardio dos pacientes (tabela 4) revelou duas novas revascularizações do vaso‐alvo e um óbito de causa não cardíaca (choque séptico 6 meses após a intervenção). A média do tempo de sobrevivência livre de ECAM foi de 29,7 ± 2,1 meses (fig. 1).
DiscussãoOs resultados do presente estudo sugerem que a aterectomia rotacional como técnica adjunta ao tratamento percutâneo de lesões com calcificação extrema é segura e efetiva, com elevada taxa de sucesso do procedimento e evolução favorável no seguimento tardio. Nesse registro, destacou‐se a complexidade clínica da população, em especial o elevado porcentual de diabetes melito (62,1%), insuficiência renal crônica (24,1%), padrão multiarterial (79,3%) e revascularização miocárdica prévia (31,0%). A técnica de aterectomia adotada caracterizou‐se por relação oliva/vaso conservadora, velocidades iniciais de rotação da oliva < 180 mil rpm, baixo tempo total de ablação e elevado porcentual de dilatação adicional das lesões com expressiva utilização de cutting balloon.
Relação oliva/vaso conservadora (< 0,7) tem sido sugerida no contexto de utilização da aterectomia rotacional como ferramenta de modificação da complacência da placa, associando‐se à elevada taxa de sucesso angiográfico, com menor incidência de complicações, como perfuração e dissecção coronária.9 A velocidade de rotação da oliva, por sua vez, também parece influenciar nos resultados do procedimento, posto que velocidades superiores a 180 mil rpm têm sido relacionadas ao risco de embolização de debris ateroscleróticos e elevação de marcadores de necrose miocárdica.10 A despeito da descrição dessas estratégias para incremento de segurança da aterectomia, registros recentes demonstram taxas de complicações ainda superiores às observadas em outras intervenções coronárias percutâneas.11,12
Nessa casuística, observou‐se a adoção combinada das estratégias descritas acima, resultando em único caso de perfuração, ocorrida em artéria circunflexa angulada, e taxa de 9,7% de dissecção coronária, todas resolvidas por via percutânea com implante de stents.
Outra característica da estratégia ablativa contemporânea é a necessidade de preparo adicional da placa previamente ao implante dos stents, devido ao menor ganho luminal obtido com a utilização de olivas de menor calibre. O emprego de cutting balloon nesse contexto associa‐se a maior área seccional mínima intra‐stent, apesar de maior perda luminal tardia.13 No presente estudo, observou‐se taxa de 93,6% de dilatação adicional após aterectomia, com uso de cutting balloon em 45,1% dos procedimentos, resultando em sucesso angiográfico imediato em todos os casos, com baixa taxa de nova revascularização do vaso‐alvo no seguimento tardio.
Este estudo apresentou como limitações o caráter retrospectivo e o número relativamente baixo de pacientes, entretanto, trata‐se de uma população selecionada, de alta complexidade, na qual foi possível descrever aspectos técnicos do procedimento e realizar evolução clínica tardia.
ConclusõesA aterectomia rotacional contemporânea com a incorporação de estratégias conservadoras de ablação apresenta segurança e eficácia no tratamento percutâneo de lesões calcificadas em pacientes de alta complexidade.
Fonte de financiamentoNão há.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.