Pouco mais de 30 anos já se passaram desde o primeiro relato da aplicação da angioplastia coronária com balão, ou, como se denomina atualmente, da intervenção coronária percutânea (ICP) primária no tratamento de pacientes acometidos por infarto agudo do miocárdio, hoje rotulado de síndrome coronariana aguda com elevação do ST.1
Esta terapêutica teve sua trajetória iniciada em paralelo e buscava os mesmos objetivos da reperfusão coronariana farmacológica (realizada por meio da administração intracoronária e, após, intravenosa, dos fibrinolíticos): recuperação rápida e plena do fluxo coronário anterógrado na artéria coronária epicárdica ocluída; redução da estenose coronária subjacente promotora do evento agudo; e preservação da microcirculação coronária.2 Estes ditames são os aríetes para vencer a necrose muscular e suas malévolas e graves consequências, que rapidamente se estabelecem após a oclusão aguda de um vaso coronário.3
Em 1993, publicavam‐se os primeiros ensaios controlados, randomizados, cotejando ambos os métodos, ICP primária vs. fibrinolíticos. Desde então, uma onda de reperfusão positiva, eficaz, reparadora do fluxo coronário perdido com a oclusão aguda estabeleceu‐se em definitivo, sendo amplamente favorável à aplicação da ICP primária.4
O advento da chamada “moderna terapia antiplaquetária”, inicialmente com os inibidores da glicoproteína IIb/IIIa, de administração intravenosa, até a síntese e utilização, por via oral, dos inibidores dos receptores plaquetários da P2Y12, forneceu a segurança sistêmica ao procedimento intervencionista, tão necessária neste momento agudo, catalisador de forte vetores de coagulação, e, como pilar final de consolidação da ICP primária, a ancoragem mecânica da placa aterotrombótica rota, por meio do implante dos stents coronários.3
Em 20 anos, o método intervencionista, de temido e desacreditado em momento inicial, avançou para uma unanimidade na prática cardiológica contemporânea, reinando soberano nas diretrizes médicas mundiais, sendo eleito o método primeiro para enfrentamento do infarto com supradesnivelamento do ST, com rotulação Classe I e Nível de Evidência A − a maior possível.5–7Com isto, uma forte pressão instalou‐se nos serviços médicos hospitalares em espectro mundial. Os serviços de hemodinâmica e intervenção cardiovascular, antes acostumados a encerrarem suas atividades no horário comercial, foram revirados do avesso em sua logística, sendo obrigados a operar no chamado ciclo eterno, aberto 24 horas durante os 7 dias da semana, sem fechar jamais.5–7A ICP primária promoveu resultados que podem ser considerados absolutamente ímpares na história da cardiologia moderna. O impacto da redução da mortalidade, associado à rápida reabilitação à vida laboral e social destes pacientes, demonstrou o melhor deste procedimento: a capacidade inequívoca de salvar vidas, retirando até os mais resistentes críticos de sua trincheira conservadora (a cada cem pacientes submetidos à ICP primária vs. fibrinólise, cinco óbitos, cinco reinfartos e um acidente vascular cerebral são evitados).8
No entanto, como oferecer este benefício a toda uma população, no sentido mais amplo? Do morador rural, afastado dos centros terciários, ao urbano, refém dos congestionamentos caóticos, e em todos os distintos sistemas de gestão de saúde?
A ICP primária demanda, como evidenciado por Araújo et al.,9 hospitais com estrutura terciária, dotados de equipamentos de radiologia dedicados, unidades coronárias estruturadas, arsenal de dispositivos percutâneos amplo e sempre disponível (a anatomia coronária somente será conhecida de modo emergencial e será sempre distinta de um enfermo para outro), cirurgia cardíaca de prontidão e − o mais importante − o “fator RH” (de Recursos Humanos) dedicado, com intervencionistas aptos, qualificados na abordagem deste cenário agudo e de risco, e equipe multidisciplinar capacitada e experiente, além de protocolos de conduta e rotas validados, implementados e comprovadamente eficazes disponíveis 24/7!3,5–7 Ufa! Uma ponte longe demais?
Araujo et al.,9 radicados no extremo sul do Brasil, demonstram que é possível e evidenciam, em sua coorte consecutiva, seus resultados. Interessante observar a incidência de casos capturados em um dos maiores hospitais federais da Região Sul do Brasil − cerca de 80 por ano; 6, em média, por mês; pouco mais de 1 por semana.
Diante do número de infartados reportados ao Sistema Único de Saúde (SUS), cerca de pouco mais de 50 mil casos/ano, estes números podem ser considerados baixos, evidenciando que a ponte segue longe demais, ou seja, não se conseguem atender tantos pacientes quanto deveríamos, pois, na maioria das vezes, a distância e as dificuldades múltiplas no diagnóstico do infarto do miocárdio promovem um retardo que retira os pacientes da janela da melhor oportunidade terapêutica, de atender, no máximo, nas 12 horas iniciais, e, no mundo ideal, nas primeiras 6 horas do início dos sintomas. Estima‐se, pelo número de ICP primárias reportadas no SUS, que 12% dos infartados atendidos sob a égide deste sistema de saúde recebem a ICP primária.10,11
A estratégia terapêutica de ICP primária necessita da compreensão da gravidade e da intensidade dos sintomas do infarto do miocárdio, além da busca por ajuda profissional o mais brevemente possível. Neste sentido, os usuários do SUS estão longe de terem esta conscientização, em parte por responsabilidade de quem deveria oferecê‐la.12,13
Acrescente‐se ainda que a disponibilidade de hospitais com programa de ICP estabelecido está longe do ideal por número de habitantes, e que programas eficazes e organizados de transferência para realização deste tipo de reperfusão ainda são um sonho em nosso país.10–13Por outro lado, dados das ICP primárias estão disponíveis na interface eletrônica do SUS, a partir de 2004, e, nos últimos 10 anos, o incremento de procedimentos é notável, superior a 300%.11
Cotejar os achados de Araujo et al. com os números do SUS é interessante e ilustra o esforço dos colegas em construírem uma ponte da reperfusão para estas pessoas agudamente infartadas (tabela 1).9–11A mortalidade média de Araújo et al. foi de 9,9%, ou seja, cerca de um quarto superior a média da Região Sul, no ano de 2015. Os autores discorrem acerca deste achado, focando no retardo para transferência destes infartados, considerado superior ao desejado (tempo de transferência de 4,4 ± 2,5 horas e tempo porta‐balão de 68 ± 34 minutos) − sendo este último muito bom, abaixo dos 90 minutos almejados.
Intervenção coronária percutânea primária. Taxa de mortalidade hospitalar e número de procedimentos atendidos sob a égide do Sistema de Único de Saúde
Região | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 |
---|---|---|---|---|
Total de procedimentos | 5.867 | 6.093 | 7.135 | 8.524 |
Norte, (%) | 5.76 | 8.78 | 7.04 | 6.88 |
Nordeste, (%) | 7.1 | 7.17 | 7.15 | 8.06 |
Sudeste, (%) | 6.57 | 7.83 | 7.89 | 7.43 |
Sul, (%) | 7.17 | 6.13 | 6.95 | 7.01 |
Centro‐Oeste, (%) | 6.72 | 14.48 | 9.55 | 9.03 |
Média de mortalidade, (%) | 6.87 | 7.33 | 7.44 | 7.43 |
Além do retardo na transferência, a demora do paciente para buscar atendimento é fator contribuinte para aumento do tempo de isquemia, o que determina piora dos resultados e do prognóstico.3
Observamos, no estudo de Araujo et al., a ocorrência de 11,6% de Killip IV na admissão e de eventos cardiovasculares aos 30 dias de 18,3%. Esses resultados, dentre outras coisas, podem ser justificados pelo retardo na abertura da artéria.14
Os pacientes foram encaminhados de outras unidades de saúde em 74% das vezes, sendo 29,3% transferidos pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), ou seja, uma ponte precisa ser construída para que os pacientes cheguem e com rapidez, pois a estrutura especializada para recebê‐los estará à espera deles.
A elevação do retardo promoverá redução do benefício e poderá promover maior dificuldade técnica no procedimento, no quesito reestabelecimento do fluxo coronário coronário anterógrado normal, mas o advento de técnicas adjuntas e a farmacologia anticoagulante e antiplaquetária potente podem ajudar a elevar o desempenho da ICP primária nos cenários de maior adversidade trombótica.3
Outras justificativas e sugestões podem ser listadas: início tardio da terapia antiplaquetária (no centro primário, e não somente ao chegar no centro terciário) e análise do perfil do intervencionista, visto ser um hospital‐escola (médicos em treinamento vs. médicos com experiência consolidada).
A ponte segue longe demais? Sim, sempre seguirá, pois enquanto não atingirmos um porcentual superior da submissão de infartados à ICP primária, precisaremos de forte atuação da gestão, envidada, incansável, de modo comprometido e dedicado.
Em um país de inequidades exaltadas em negrito, ostentando gradientes socioeconômicos abissais, de extensão continental, com gestão pública heterogênea, triplamente dividida em seus poderes, muitas das vezes, claudicante, oscilante e sujeita a influências politico‐partidárias, e não técnicas, somente a perseverança de um grupamento médico unido, interessado e apto as estes enfrentamentos poderá lograr avanços significativos, construindo, então, não uma pinguela instável, mas uma ponte perene, revestida do concreto mais rígido que existir neste país, para pavimentar a reperfusão, para muitos mais que necessitarem.
Ou, nos restará dizer, como dito por um alto oficial ao marechal de campo britânico Montgomery, inspirador de um ótimo filme, repleto de estrelas de Hollywood: “I think we may be going a bridge too far...”
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.