Descrever a prevalência do déficit estatural entre crianças da povo karapotó.
MétodosEstudo transversal, de base populacional, incluiu crianças entre seis e 59 meses da aldeia Plak‐Ô e do povoado Terra Nova, São Sebastião (AL), feito entre 2008 e 2009. O déficit estatural foi avaliado pelo índice estatura/idade, adotou‐se como ponto de corte escore z≤−2. A prevalência de déficit estatural foi determinada pela comparação das frequências simples e relativas. As curvas de crescimento da população foram comparadas com as curvas de referência da OMS. A análise dos dados contemplou a variável de desfecho estatura/idade e as variáveis preditoras local de moradia, sexo, idade, anemia, peso ao nascer, renda familiar, alfabetização materna. Para comparação das variáveis categóricas dos grupos foi usado o teste do qui‐quadrado e o teste do qui‐quadrado com correção de Yates para as variáveis dicotômicas, consideraram‐se como significância estatística p‐valores≤0,05.
ResultadosA prevalência de déficit estatural foi de 15,6% para as crianças do povoado Terra‐Nova e 9,1% para as da aldeia Plak‐Ô. A prevalência de déficit estatural da povo karapotó foi de 13,4%. As variáveis: alfabetização materna, renda familiar e baixo peso ao nascer se relacionaram estatisticamente com o déficit estatural.
ConclusõesAs prevalências de déficit estatural verificadas são expressivas, são caracterizadas como problema de saúde pública. Destacam‐se, entre os fatores associados, condições desfavoráveis de alfabetização materna, renda familiar e baixo peso ao nascer. O planejamento de estratégias para mudar a situação precisa levar tais fatores em consideração.
To describe the prevalence of short stature among children of Karapotó ethnic background.
MethodsCross‐sectional, population‐based study that included children between 6 and 59 months of age from the Plak‐Ô native village and the Terra Nova settlement, São Sebastião, Alagoas, carried out between 2008 and 2009. Short stature was evaluated by the Height/Age index, using as cutoff z score ≤−2. The prevalence of short stature was determined by comparing simple and relative frequencies. The population growth curves were compared to the WHO reference curves. Data analysis included the outcome variable: Height/Age and the predictor variables: place of residence, gender, age, anemia, birth weight, family income, maternal literacy. The chi‐square test was used to compare the categorical variables, whereas the chi‐square test with Yates correction was used for dichotomous variables, considering as statistically significant p‐values≤0.05.
ResultsThe prevalence of short stature was 15.6% for children from the Terra Nova settlement and 9.1% for those from Plak‐Ô native village. The prevalence of short stature among the Karapotó ethnicity was 13.4%. The variables: maternal literacy, family income and low birth weight were statistically associated with short stature.
ConclusionsThe observed short stature prevalence rates are significant, being characterized as a public health problem. Among the associated factors, the following are noteworthy: unfavorable conditions of maternal literacy, family income and low birth weight. The planning of strategies to reverse the situation must take such factors into consideration.
A despeito da importância, ainda são escassos os estudos disponíveis sobre a condição social, demográfica e epidemiológica, em especial sobre o perfil alimentar e nutricional, da população indígena brasileira. Embora persista essa escassez de informações, estudos recentes evidenciam uma marginalização social, o que tem provocado impactos negativos sobre o processo saúde/doença desses povos.1‐3 No que se refere ao perfil nutricional dos povos indígenas no Brasil, percebe‐se que esses passam por um complexo processo de transição, marcado pelo aumento do excesso de peso entre adultos e pela persistência de agravos relacionados às carências nutricionais, em especial o atraso no crescimento de crianças.4‐6 Essa conjuntura pode ser atribuída à considerável sociodiversidade envolvida, se considerarmos que no Brasil, foram contabilizados mais de 200 povos em todo o território nacional.7 Quanto ao atraso do crescimento de crianças indígenas, há registros de povos nos quais se identificou mais da metade da população acometida pelo agravo. Esse panorama pode ter sérias implicações na saúde dessa população.8
Dessa forma, para a população indígena brasileira, se observa uma importante sobreposição de agravos: o aumento do excesso de peso entre adultos, sem que a desnutrição de crianças tenha sido superada.1,7,9 Considerando que essas questões ainda não foram totalmente exploradas e com o intuito de contribuir para o melhor entendimento da dinâmica do agravo nessa população, este trabalho teve como objetivo descrever a prevalência do déficit de crescimento entre as crianças da povo karapotó que residem em duas localidades do Estado de Alagoas, na perspectiva de registrar o agravo em um período de rápida transição nutricional pela qual passa o país.
MétodoEsses dados fazem parte da pesquisa “Vigilância alimentar e nutricional: implantação de área sentinela em duas populações do povo karapotó”. Trata‐se de estudo transversal, que considerou como unidade de estudo a população de crianças entre seis e 59 meses residentes na aldeia Plak‐Ô e no povoado Terra Nova, em São Sebastião, Estado de Alagoas. Os procedimentos empregados pela pesquisa, com relação à população de estudo e à coleta de dados foram descritos anteriormente.9
O processo de modelagem compreendeu levantamento censitário feito pelos agentes de saúde indígena, que identificaram crianças da faixa etária delimitada pelo estudo. Dessas, cinco não foram encontradas nos momentos da coleta de dados, de maneira que a população do estudo foi de 98 crianças. Uma criança foi excluída devido à inconsistência de dados antropométricos e a população final foi composta por 97 crianças.
O trabalho de campo foi feito entre 2008 e 2009 por equipe devidamente treinada, a qual esteve na aldeia e no povoado por quatro vezes, para coleta de dados.
Foram feitas entrevistas com as mães/responsáveis pelas crianças, mediante visitas domiciliares e aplicação de questionários compostos por perguntas referentes a informações socioeconômicas, demográficas e biológicas. Após o preenchimento, os questionários foram revistos para avaliar e corrigir inconsistências das informações coletadas.
A coleta dos dados antropométricos e a dosagem de hemoglobina foram feitas nos polos base da aldeia e do povoado. A avaliação antropométrica foi feita após capacitação da equipe, de acordo com a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde.10,11 O peso corporal foi obtido por meio de balança antropométrica tipo marte, com capacidade de 200kg e sensibilidade de 50g. Para aferição do comprimento das crianças menores de 24 meses foi usado infantômetro de madeira com escala de 100cm e resolução de 0cm e para crianças maiores o estadiômetro vertical com 213cm. Essas foram pesadas e medidas descalças, com vestimenta mínima. As crianças com até dois anos foram medidas em decúbito dorsal e aquelas entre dois e cinco anos, em posição ereta. Foram feitas duas medidas e calculadas as respectivas médias.
Para avaliar o estado nutricional, foi usado o software Anthro‐2007 e adotado o índice estatura/idade para o diagnóstico de déficit estatural/desnutrição. Foram usadas como referência as curvas de crescimento da OMS.12,13 A classificação das crianças segundo o índice estatura/idade foi expressa em escore z e adotaram‐se os pontos de corte déficit estatural (≤−2 escores Z) e eutrofia (>−2 escores z).
Para o diagnóstico da anemia, a hemoglobina (Hb) foi dosada mediante o uso de um hemoglobinômetro portátil Hemocue (Fresenius Kabi, Uppsala, Suécia), seguiu‐se procedimento padrão com a coleta de gota de sangue por punção de polpa digital. O ponto de corte usado para diagnóstico da anemia foi de hemoglobina<11g/dL.14 Para todas as crianças diagnosticadas com anemia foi garantida a suplementação de ferro, com o apoio do Distrito Especial Indígena (DSEI‐AL).
Para a feitura do parasitológico de fezes, foram entregues recipientes aos responsáveis, os quais foram orientados para a coleta de fezes nos seus respectivos domicílios. As amostras fecais foram recolhidas, acondicionadas em caixa térmica resfriada e enviadas para análise laboratorial pelos métodos de sedimentação espontânea e Kato‐Katz.15,16
Foi feita a dupla entrada de dados, a validação e o processamento das análises com o uso do software Epi‐Info versão 6.04 (CDC, Atlanta, EUA). As variáveis analisadas foram categorizadas em local de moradia: Plakô e Terra Nova; coleta de lixo: classificada como “adequada” (lixo coletado) ou “inadequada”’ (lixo enterrado, queimado ou depositado em terreno baldio). A variável local de nascimento da criança foi divida entre as que nasceram no hospital ou na maternidade e as que tiveram parto feito na própria casa. Sobre a suplementação de vitamina A, foi verificado no cartão da criança o registro de aplicação do micronutriente. As crianças nascidas com peso ≥2.500g foram classificadas como “peso adequado”. As que nasceram com peso menor do que esse valor foram classificadas como “peso inadequado”, obtido a partir do cartão da criança.17 A renda familiar per capita (rendimentos obtidos no mês anterior à entrevista) foi classificada em menor e maior do que um salário mínimo. O nível de alfabetização das mães foi classificado em mães que leem e escrevem e as analfabetas.
A prevalência do déficit estatural foi determinada pela comparação das frequências simples e relativas. Para comparar as variáveis categóricas, foi usado o teste do qui‐quadrado ou o teste do qui‐quadrado com correção de Yates para as variáveis dicotômicas, considerou‐se o p‐valor≤0,05 como significância estatística. Para a comparação das curvas de crescimento da população estudada com as curvas de referência da OMS, foram elaborados gráficos para o índice estatura/idade, com o uso do software Anthro, segundo local de moradia.12 O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos, sob o protocolo n° 009429/2006‐15. O estudo também foi submetido à e aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, conforme prevê determinação para estudos em populações indígenas, sob o protocolo 1.013.414.
ResultadosA caracterização da população está descrita na tabela 1, na qual se pode observar predominância do sexo feminino (54,6%) e de idade ≥2 anos (67%). Constata‐se que 66% das crianças do povo estudado residem na aldeia Plak‐Ô e 34% no povoado Terra Nova.
Caracterização da população das crianças menores de cinco anos, do povo karapotó. São Sebastião‐Alagoas, 2008/9
Variáveis | N com informação | % |
---|---|---|
Local de moradia | ||
Plak‐Ô | 33 | 66,0 |
Terra Nova | 64 | 34,0 |
Sexo | ||
Masculino | 44 | 45,4 |
Feminino | 53 | 54,6 |
Idade | ||
<2 anos | 32 | 33,0 |
≥2 anos | 65 | 67,0 |
Coleta de lixo | ||
Adequada | ‐ | ‐ |
Inadequada | 97 | 100,0 |
Local de nascimentoa | ||
Maternidade/Hospital | 94 | 97,9 |
Casa | 2 | 2,1 |
Suplementação vitamina Aa | ||
Sim | 67 | 77,0 |
Não | 20 | 23,0 |
Anemia ferropriva | ||
Não | 41 | 42,3 |
Sim | 56 | 57,7 |
Presença de parasitosesa | ||
Não | 24 | 32,9 |
Sim | 49 | 67,1 |
Observou‐se prevalência de déficit estatural de 15,6% em crianças cujas famílias residiam no povoado Terra‐Nova e de 9,1% para as habitantes da aldeia Plak‐Ô. Para as crianças do povo karapotó, a prevalência do déficit estatural encontrada foi de 13% (fig. 1). O déficit estatural, em médias de escores z, não se relacionou de forma significativa com o sexo, a idade, a presença de anemia e o local de moradia. Para as variáveis alfabetização materna, renda familiar e peso ao nascer, foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre as categorias analisadas, observaram‐se menores médias de escores z de estatura/idade entre as crianças que nasceram com baixo peso, naquelas cujas mães eram analfabetas e nas pertencentes a famílias com renda per capita inferior a um salário mínimo (tabela 2).
Déficit estatural, em média de escore Z, em menores de cinco anos, do povo karapotó, segundo variáveis relacionadas a criança e maternas. São Sebastião‐Alagoas, 2008/9
Variáveis | N | % | Estatura/idade escore z | |
---|---|---|---|---|
x¯±DP | p‐valor | |||
Local de moradia | ||||
Plak‐Ô | 33 | 66,0 | −0,27±1,52 | 0,29 |
Terra Nova | 64 | 34,0 | −0,68±1,24 | |
Sexo | ||||
Masculino | 44 | 45,4 | −0,43±1,33 | 0,23 |
Feminino | 53 | 54,6 | −0,64±1,37 | |
Idade (anos) | ||||
<2 | 32 | 33,0 | −0,56±1,32 | 0,89 |
≥2 | 65 | 67,0 | −0,54±1,37 | |
Anemia na criança | ||||
Não | 41 | 42,3 | −0,29±1,32 | 0,10 |
Sim | 56 | 57,7 | −0,73±1,35 | |
Peso ao nascer | ||||
Adequado | 88 | 90,7 | −0,46±1,28 | 0,02 |
Inadequado | 9 | 9,3 | −1,35±1,80 | |
Renda familiara | ||||
≥1 Salário mínimo | 56 | 58,3 | −0,22±1,40 | 0,03 |
<1 Salário mínimo | 40 | 41,7 | −0,78±1,28 | |
Alfabetização materna | ||||
Lê e escreve | 62 | 63,9 | −0,30±1,25 | 0,01 |
Analfabeta | 35 | 36,8 | −0,97±1,42 |
A figura 2 apresenta a comparação do déficit de crescimento, pelo índice estatura/idade da população estudada, com as curvas de referência da OMS. As crianças apresentaram, de forma geral, valores inferiores de escore z, quando comparados com os pontos de referências analisados, e apresentaram, nas duas localidades, curvas de crescimento com tendências de inclinação deslocadas à esquerda.
DiscussãoA população investigada habita duas localidades de um município do Nordeste brasileiro, São Sebastião, região do semiárido alagoano. O povo karapotó é formado por uma população estimada em 1.067 habitantes, cujo estilo de vida e de subsistência assemelha‐se à população não índia do Brasil.18
Em relação à condição ambiental, em especial no que se refere a variável lixo, observa‐se que a população analisada não teve acesso à coleta adequada de detritos no período analisado. Essa condição, assim como o alto índice de infestação por parasitose intestinal identificado (67%), dentre outras questões, tem sido frequentemente associada à desnutrição em crianças.1,19 No contexto das múltiplas causas associadas ao agravo, essas condições sanitárias devem ser consideradas ao se estabelecer a atenção nutricional, processo habitualmente longo, em especial quando não se preveem medidas de melhoria das condições ambientais de saneamento e de qualidade de vida.1,2
Apesar do acesso ao parto hospitalar identificado em quase toda população avaliada (cerca de 98%), o deficiente acesso desse povo aos serviços de saúde é retratado pela baixa cobertura da suplementação com megadoses de vitamina A, ressalta‐se que 23% da população não receberam o suplemento medicamentoso. Crianças desnutridas frequentemente apresentam hipovitaminose A, o que seguramente compromete seu prognóstico.20 A vitamina A deveria ser administrada, com doses profiláticas, conforme prevê estratégia brasileira de controle do agravo.21 A administração desse medicamento propiciaria a essas crianças um aumento da resistência a infecções, em especial no aparelho respiratório e digestivo, e preveniria infecções respiratórias agudas e as diarreias, agravos extremamente corriqueiros nessa fase da vida.21
Outro agravo nutricional identificado na população foi a anemia ferropriva, que acometeu quase 60% da população no período analisado. Esse tipo de anemia, comum entre as crianças brasileiras, repercute negativamente no desenvolvimento neuropsicomotor e na capacidade cognitiva do indivíduo, em especial quando incide precocemente (primeiros anos de vida), o grupo etário mais vulnerável ao agravo.22
O déficit de estatura atinge mais de 13% das crianças, prevalência superior à de crianças não indígenas no estado de Alagoas (10,3%)23. Ressalta‐se ainda que a prevalência aqui encontrada é quase duas vezes superior à de crianças não indígenas do Brasil (7%), segundo a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde.24
Situações importantes da existência da desnutrição entre crianças indígenas foram registradas no Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas/2009.7 O estudo trouxe à tona informações relevantes sobre o perfil das sociedades indígenas no Brasil, ao retratar a presença de transição nutricional nessa população, com emergência do sobrepeso (30,2%) e obesidade (15,7%) em mulheres de 14 a 49 anos, sem que a desnutrição entre as crianças tenha sido superada. A referida pesquisa revelou que 26% das crianças menores de cinco anos têm déficit de estatura por idade, proporção ainda maior na região norte do país (41,1%).7
No que diz respeito ao atraso do crescimento, segundo local de moradia, sexo e idade das crianças, não foram detectadas diferenças significativa do ponto de vista estatístico. Esse fato indica que o agravo acometeu as crianças, nas categorias analisadas, em termos de magnitude, numa mesma intensidade.
O uso de −2 desvios‐padrão como limite implica que 2,3% da população de referência são classificados como “desnutridos” até mesmo se forem indivíduos verdadeiramente “saudáveis”, sem apresentar dificuldades de crescimento. Portanto, 2,3% podem ser considerados como “valor de base” ou prevalência esperada. Embora as prevalências em populações carentes sejam geralmente mais elevadas do que 2,3%,25 a expressiva vulnerabilidade nutricional dessa população é demonstrada pelos valores aqui encontrados (cerca de 9% a 16%, segundo local de moradia), ultrapassam entre quatro e sete vezes mais o valor limítrofe. Embora esteja claro que crianças indígenas brasileiras ainda apresentem elevada prevalência do atraso de crescimento, a compreensão dos principais fatores relacionados ao agravo ainda é limitada.7,8
No que diz respeito à associação do déficit estatural e idade das crianças, os resultados aqui apresentados são semelhantes a estudos com as crianças kaingang, para as quais a idade não se mostrou significativamente associada ao déficit ponderal.26 Contrariamente, estudo feito em xavantes mostrou uma relação inversa do déficit estatural com a idade da criança: quanto menor a idade, melhor seu estado nutricional.27 Os autores do trabalho apontaram para o aleitamento materno como fator de proteção para o agravo no grupo avaliado.
O saber ler e escrever da mãe influenciou favoravelmente o estado de nutrição de seus filhos. Maiores médias de escores z foram identificadas entre os filhos de mães alfabetizadas. Quando tais achados são comparados com os estudos feitos com a população em geral, os resultados aqui apresentados corroboram os dados da literatura. Estudos indicam a baixa escolaridade materna como fator preditivo da desnutrição entre crianças. Sem dúvida, a desnutrição é mais frequente em populações com baixa escolaridade, devido, em parte, à relação entre escolaridade materna e inserção da mulher no mercado de trabalho, o que permite o aumento do poder aquisitivo da família e afeta de forma direta a disponibilidade e o acesso aos alimentos.28,29
Em relação à análise do rendimento financeiro das famílias, sabe‐se que essa envolve diferentes aspectos que dificultam a interpretação desses dados, considera‐se que as comunidades tradicionais, tais como a população indígena, configuram organizações sociais que operam formas econômicas com pouca acumulação de capital e forte dependência das atividades de subsistência. Dessa forma, a mensuração do poder aquisitivo por meio do rendimento familiar pode não ser a maneira mais apropriada para mensurar o acesso ao alimento nesse tipo de população.30 Sabe‐se, entretanto, que o déficit estatural se associa, predominantemente, às condições econômicas das famílias. Assim, a associação positiva aqui encontrada entre baixa renda e déficit estatural de crianças remete à premissa de que o incremento monetário das famílias tem relação direta com o estado nutricional, na medida em que uma renda maior possibilita maior acesso aos alimentos.28 Os dados aqui apresentados corroboram essa premissa ao se identificarem maiores médias de escores z entre as crianças que fazem parte das famílias de renda maior quando comparadas com as de renda inferior ao ponto de corte adotado.
A sensível relação entre a presença da anemia ferropriva e o atraso do crescimento de crianças tem sido registrada na literatura científica. Entretanto, não foi encontrada significância estatística entre a associação do déficit estatural e a anemia nesse grupo, apesar das elevadas prevalências encontradas para os dois agravos em questão. De fato, crianças desnutridas apresentam frequentemente anemia, dentre outras carências nutricionais associadas, e se considera que a desnutrição é caracterizada pela deficiência simultânea de vários nutrientes.31 Considerando a elevada prevalência do atraso do crescimento (13,4%) e a simultânea ocorrência da anemia ferropriva (57,7%) nesse grupamento populacional, recomenda‐se que a investigação desses agravos e seus respectivos fatores associados seja aprofundada. Sobre esse aspecto, ressalta‐se ainda que, ao se analisarem as variáveis associadas ao estado nutricional desse grupo, não se pretendeu estabelecer uma relação de causa‐efeito. O presente estudo fez uma avaliação com o objetivo de detectar maior ou menor vulnerabilidade nutricional em um grupo populacional ainda pouco investigado.
Pode‐se supor, em nível de causa imediata, que o peso inadequado ao nascer possa impedir que as crianças desse povo alcancem seu pleno potencial de crescimento linear.32 A associação estatística entre desnutrição e baixo peso ao nascer, aqui encontrada, pode ser resultado de fatores relacionados ao período gestacional aqui não investigados.33 A hipótese estabelecida é que uma má condição nutricional nessa etapa da vida constitui um expressivo e significativo fator de risco para o posterior atraso do crescimento. É o que os dados aqui apresentados parecem confirmar, ao serem identificadas menores médias de escores z em crianças que nasceram com baixo peso,32 fato também confirmado por Kühl et al.,26 que encontraram associação entre o atraso de crescimento com o baixo peso ao nascer em crianças kaingang.
Em relação à comparação das curvas de crescimento da população estudada com as de referência da OMS, percebe‐se claramente que as crianças do povo karapotó residentes na aldeia Plak‐Ô e as do povoado Terra Nova apresentam valores de escore z inferiores ao ponto de corte adotado. As curvas da OMS são um conjunto de informações que representam a melhor descrição de crescimento linear fisiológico de crianças saudáveis em condições ambientais favoráveis, independentemente de seu povo. Destaca‐se ainda que uma característica importante dessas curvas é a de representar uma amostra internacional e multiétnica usada para avaliar populações indígenas.1‐3,5,26,27
Dessa forma, as inclinações à esquerda das três curvas exibidas em relação ao padrão de referência adotado, segundo local de moradia, evidenciam médias de escore z inferiores ao esperado em uma população saudável. Ou seja, as inclinações das curvas aqui apresentadas definem o atraso de crescimento evidenciado entre as crianças do povo avaliado.
Uma limitação do estudo é o desenho transversal, aspecto que impede inferências de causa e efeito. Portanto, os achados devem ser tratados com cautela até que uma avaliação longitudinal de fatores de risco seja feita. Embora estudos de natureza transversal não possibilitem inferência de causalidade, são fundamentais para estabelecer hipóteses e direcionar planejamentos de estudos prospectivos que estabeleçam relações claras entre os fatores condicionantes/determinantes do déficit estatural de crianças. Apesar das limitações citadas, o estudo é inédito nesse povo, representa o universo de crianças krapotó e permite concluir que a desnutrição ainda se apresenta como importante agravo nutricional nessa população.
É importante ressaltar que a desnutrição em crianças conta com determinação múltipla de uma complexa rede de fatores, envolve aspectos biológicos, demográficos, socioeconômicos e culturais, dentre outros.5,6,8,27,34 Dessa forma, a criança, em especial de povos tradicionais, não pode ser vista como uma unidade isolada. Explicitar o dinamismo e a heterogeneidade da situação nutricional de indígenas brasileiros demanda uma interação da ordem antropológica, biológica e social, considerando‐se a criança em seu contexto. Nessa população, a prevalência do atraso de crescimento encontrada é expressiva em comparação à situação da população não indígena no país, distancia‐se das referências estabelecidas pela OMS. Destacam‐se, entre os fatores associados, as condições desfavoráveis de alfabetização materna, renda familiar e o baixo peso ao nascer.
Assim, diante da conhecida sensibilidade desses fatores de expressar o padrão de vida de uma população, é fundamental considerar as especificidades do grupo em questão, no sentido de implantar estratégias oportunas de enfrentamento dos problemas identificados. Considera‐se, portanto, indispensável estabelecer políticas que valorizem a cultura e as práticas alimentares e respeitem os conhecimentos tradicionais e a biodiversidade desse povo.
FinanciamentoO estudo recebeu financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas/FAPEAL.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.