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Vol. 34. Núm. 3.
Páginas 384-387 (septiembre 2016)
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Vol. 34. Núm. 3.
Páginas 384-387 (septiembre 2016)
Relato de caso
Open Access
Shunt portossistêmico congênito intra‐hepático diagnosticado na vida intrauterina
Congenital intrahepatic portosystemic shunt diagnosed during intrauterine life
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Camila Vieira Bellettinia,
Autor para correspondencia
camila.bellettini@gmail.com

Autor para correspondência.
, Rafaela Wagnera, Aleocídio Sette Balzanelob, André Luis de Souza Andrettab, Arthur Nascimento de Mourab, Catia Carolina Fabrisb, Eduardo Maranhão Gubertb
a Hospital Pequeno Príncipe, Curitiba, PR, Brasil
b Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
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Figuras (2)
Tablas (1)
Tabela 1. Exames laboratoriais
Resumo
Objetivo

Descrever a história clínica de paciente com diagnóstico pré‐natal de shunt portossistêmico, condição rara na espécie humana.

Descrição do caso

Recém‐nascido do sexo feminino internada aos 17 dias para investigação de suspeita diagnóstica de shunt portossistêmico, aventada na ecografia obstétrica. A hipótese foi confirmada após angiotomografia do abdome e ecodoppler hepático. Outros exames, como ecocardiograma e eletroencefalograma, foram feitos para investigação de possíveis comorbidades ou complicações associadas e tiveram resultados normais. Optou‐se por tratamento conservador do shunt, já que não havia quaisquer complicações relacionadas à doença e tratava‐se de shunt intra‐hepático, que pode fechar espontaneamente até os dois anos de idade.

Comentários

O shunt portossistêmico pode levar a diversas complicações, como encefalopatia hepática, hipergalactosemia, tumores hepáticos e síndrome hepatopulmonar. A maioria dos diagnósticos é feita a partir de um mês de vida, após tais complicações ocorrerem. O diagnóstico pré‐natal dessa paciente possibilitou maior segurança para o manejo do quadro, bem como um acompanhamento periódico que permite antecipar possíveis complicações e adotar conduta intervencionista, se necessário.

Palavras‐chave:
Diagnóstico pré‐natal
Anormalidades congênitas
Tomografia computadorizada
Ultrassonografia Doppler
Abstract
Objective

To report a patient with prenatal diagnosis of portosystemic shunt; a rare condition in humans.

Case description

17‐day‐old female infant admitted for investigation of suspected diagnosis of portosystemic shunt, presumed in obstetric ultrasound. The hypothesis was confirmed after abdominal angiography and liver Doppler. Other tests such as echocardiography and electroencephalogram were performed to investigate possible co‐morbidities or associated complications, and were normal. We chose conservative shunt treatment, as there were no disease‐related complications and this was intrahepatic shunt, which could close spontaneously by the age of 2 years.

Comments

Portosystemic shunt can lead to various complications such as hepatic encephalopathy, hypergalactosemia, liver tumors, and hepatopulmonary syndrome. Most diagnoses are done after one month of age, after such complications occur. The prenatal diagnosis of this patient provided greater security for the clinical picture management, as well as regular monitoring, which allows the anticipation of possible complications and perform interventional procedures when needed.

Keywords:
Prenatal diagnosis
Congenital abnormalities
CT scan
Doppler ultrasound
Texto completo
Introdução

O shunt portossistêmico é uma condição rara, descrita pela primeira vez em 1793, por John Abernethy. Consiste de anomalia vascular congênita, na qual o sangue proveniente da veia porta drena diretamente para uma veia sistêmica e desvia a circulação do fígado.1,2

Na espécie humana, a incidência dessa patologia é estimada em um para cada 30.000 nascimentos e está associada a outras malformações, como as gastrintestinais, geniturinárias, ósseas e cardiovasculares.1–3

Descrição do caso

Recém‐nascida do sexo feminino transferida ao serviço com 17 dias de vida para investigação de possível presença de shunt portossistêmico. A hipótese diagnóstica foi aventada durante uma ecografia obstétrica rotineira do terceiro trimestre que, além da suspeita do shunt, evidenciou restrição do crescimento intrauterino (RCIU), microcefalia, encurtamento de ossos longos e aumento do tamanho da placenta. Mãe não apresentava comorbidades prévias ou durante a gestação.

O nascimento ocorreu com 37 semanas de idade gestacional, de parto cesariano, com peso de 1.900 g, a paciente era pequena para a idade gestacional,4 com Apgar 6/9. Ao nascer, foi levada à UTI neonatal, onde permaneceu por 11 dias para ganho de peso e manejo de outras intercorrências, como desconforto respiratório e icterícia neonatal com necessidade de fototerapia. Após estabilização do quadro, a paciente foi transferida para o Hospital Pequeno Príncipe, com o objetivo de investigar a suspeita diagnóstica de shunt portossistêmico.

A recém‐nascida foi admitida assintomática, em bom estado geral, corada, hidratada e com sinais vitais dentro dos parâmetros de normalidade. Ao exame clínico, não se evidenciaram as alterações de microcefalia e encurtamento de ossos longos observadas na ecografia obstétrica. Procedeu‐se à investigação com: 1) Ecografia abdominal, que não mostrou alterações, a avaliação da veia porta foi insuficiente; 2) Angiotomografia computadorizada, que indicou fígado com dimensões, contornos e densidade normais, havia proeminência de ramo da veia porta esquerda, até a periferia do segmento lateral esquerdo, onde se observou dilatação vascular e proeminência da veia hepática esquerda adjacente, com impressão de shunt portossistêmico intra‐hepático no segmento lateral esquerdo do fígado (fig. 1); 3) Ecografia abdominal com Doppler, que mostrou proeminências dos ramos direito e esquerdo da veia porta, com trajeto anômalo da veia porta direita, com direção posterossuperior, sinais de comunicação com a veia hepática média, local em que há aumento da velocidade de pico sistólico e fluxo oscilante, o que sugere shunt portossistêmico (fig. 2). Devido à associação do shunt com outras patologias e complicações, foram feitos outros exames: eletroencefalograma normal, ecocardiograma normal, exames laboratoriais (tabela 1).

Figura 1.

Angiotomografia de abdome – fase venosa. A seta aponta a dilatação da veia porta intra‐hepática, com o shunt portossistêmico.

(0.07MB).
Figura 2.

Ecografia abdominal com Doppler. A seta indica o shunt portossistêmico.

(0.12MB).
Tabela 1.

Exames laboratoriais

Exames feitos  Valor encontrado  Valor de referência 
Albumina  3g/dL  2,8‐4,4g/dL 
Amôniaa  55μmoL/L  9‐33μmoL/L 
Bilirrubina direta  0,48mg/dL  0,0‐0,6mg/dL 
Bilirrubina indiretaa  2,62mg/dL  0,2‐1,0mg/dL 
Bilirrubina totala  3,1mg/dL  0,6‐1,4mg/dL 
Cálcio iônico  1,41mmoL/L  1,15‐1,32mmoL/L 
Creatinina sérica  0,4mg/dL  0,1‐0,5mg/dL 
Fosfatase alcalinaa  385U/L  145‐320U/L 
Fósforo  6,1mg/dL  3,9‐6,5mg/dL 
Gama‐glutiltransferasea  177U/L  Até 115U/L 
Hemoglobina  12,8g/dL  9,0‐18,0g/dL 
Leucócitos  12130uL  5000‐15000uL 
Magnésio  2mg/dL  1,7‐2,3mg/dL 
Plaquetas  320.000μL  150.000‐450.000 μL 
Potássio  5,5mmoL/L  4,1‐5,3mmoL/L 
Proteína C reativa  6,3mg/dL  <10mg/L 
Sódio  137,2mmoL/L  136‐145mmoL/L 
Atividade de protrombinaa  67,9%  70%‐100% 
TTPA  39,9seg (1,25)  0,8‐1,25 
AST  48U/L  20‐60U/L 
ALT  34U/L  6,0‐45U/L 
Ureia  8mg/dL  5‐40mg/dL 

TTPA, tempo de tromboplastina parcial ativada; AST, aspartato aminotransferase; ALT, alanina aminotransferase.

a

Exames alterados.

Após o diagnóstico, optou‐se por tratamento conservador, tendo em vista a ótima evolução clínica, a ausência de quaisquer intercorrências relacionadas com a doença e o tipo do shunt, que pode fechar espontaneamente. A criança segue em acompanhamento médico periódico, com reavaliações clínicas e laboratoriais.

Discussão

O shunt portossistêmico é classificado em intra‐ e extra‐hepático. O extra‐hepático liga diretamente o tronco da veia porta (ou um de seus ramos) com a veia cava (ou um de seus ramos). No shunt intra‐hepático, ocorre conexão entre a veia porta (ou um de seus ramos) com as veias hepáticas ou veia cava inferior.1,3,5,6 Dessa forma, o sangue intestinal passa diretamente para a circulação sistêmica, sem passar pelo fígado.7

Possíveis fatores que influenciam o desenvolvimento dessa malformação congênita são: 1) componente genético; 2) processo complexo de malformações, o shunt está associado a malformações cardíacas, renais, ósseas e outras; 3) hemangioma do fígado, que pode ligar vasos do sistema porta com vasos hepáticos; e 4) ausência do ducto venoso durante a vida fetal, o que leva à gênese de vasos anômalos para cumprir sua função.8

A maioria dos diagnósticos de shunt portossistêmico ocorre após um mês de idade, devido às complicações encontradas ou, ainda, acidentalmente, durante a investigação das doenças associadas, como as cardiopatias.2,8 Em cerca de 10% dos casos, o diagnóstico se estabelece no período pré‐natal, como ocorreu na paciente aqui apresentada.8 A identificação pré‐natal do shunt tem se tornado mais frequente com a melhoria técnica do diagnóstico por imagem, todavia esse método tem limitações.9,10 Ultrassonografias pós‐natais são importantes e úteis na confirmação de alterações detectadas em exame pré‐natal.9

Uma vez que parte da circulação mesentérica é desviada de sua passagem pelo fígado, o metabolismo da galactose, da amônia e de outros compostos tóxicos deixa de ocorrer normalmente, leva a aumento sérico dessas substâncias.2 Os sintomas predominantes do shunt estão associados à encefalopatia hepática decorrente dessa toxicidade.6–8,11 Manifestam‐se com sonolência, confusão mental, alterações de comportamento, irritabilidade, desorientação, dificuldades escolares, desatenção e hiperatividade. Também se podem identificar retardo mental e convulsões.8,10 A encefalopatia hepática apresenta‐se com maior frequência em pacientes mais velhos, é identificada em 15% dos casos de shunt portossistêmico em crianças.1

Outras graves manifestações do shunt são: hipergalactosemia, colestase neonatal, tumores hepáticos, hipertensão arterial pulmonar, síndrome hepatopulmonar.6–8,11 Ainda podem estar associadas: glomerulopatia membranoproliferativa, hiperinsulinemia com hiper e hipoglicemia, hipotiroxinemia, hiperandrogenismo, pancreatite e insuficiência cardíaca.8,12 Relatos na literatura sugerem que a RCIU, como observado em nossa paciente, possa também estar relacionada com o shunt.8,9,13 A explicação para a RCIU encontra‐se na diminuição da perfusão hepática causada pelo shunt. A perfusão hepática adequada parece induzir a proliferação celular com consequente aumento de fator de crescimento semelhante à insulina (IGF‐1), da expressão de mRNA no fígado, assim como aumento da proliferação celular periférica. Diante do exposto, a literatura sugere que em casos de RCIU sem etiologia evidente – como insuficiência placentária ou alterações cromossômicas – seja aventada a hipótese diagnóstica de shunt portossistêmico e ultrassonografias pré e pós‐natais sejam feitas.13

Eventualmente, há atrofia do fígado devido à diminuição de substâncias hepatotróficas que chegam ao fígado via circulação portal.1,2 Características de hipertensão portal, como ascite, varizes e esplenomegalia, são raras no shunt portossistêmico congênito. Quando esses sinais estão presentes, deve‐se pensar em outras causas de shunt espontâneo.2 Laboratorialmente, podem estar aumentados os valores das transaminases, gama‐glutamiltransferase, atividade de protrombina, amônia e bilirrubinas. A albumina sérica pode estar diminuída.8 No caso clínico aqui descrito, a paciente apresentou mínimo aumento de amônia, fosfatase alcalina, gama‐glutiltransferase e diminuição da atividade de protrombina, sem quaisquer repercussões clínicas. Tais alterações não foram consideradas complicações graves do shunt.

O exame de imagem de escolha para o diagnóstico é a ecografia com Doppler de sistema porta.1,5,8 Tomografia computadorizada é exame de imagem a ser feito a seguir para detalhar melhor a anatomia da região e contribuir para a melhor decisão terapêutica.8

Devido às suas complicações potenciais graves, indica‐se a intervenção cirúrgica ou radiológica para corrigir o shunt portossistêmico. Relatos na literatura mostram o benefício dessa correção mesmo em shunts assintomáticos, com o papel de prevenir futuras repercussões significativas.6,8 Adicionalmente, quanto maior a criança e maior o diâmetro das veias envolvidas no shunt, mais difícil torna‐se fechá‐lo, ressalta‐se a importância da intervenção precoce.3 Por outro lado, na situação específica de shunt assintomático intra‐hepático em crianças com menos de dois anos, indica‐se conduta expectante, uma vez que grande parte deles fecha espontaneamente antes dos 24 meses de idade. Se, todavia, não fechar até os dois anos, deve‐se considerar a intervenção.6,8–10,13 Com base nesse conhecimento, na paciente aqui relatada optou‐se por conduta expectante até os dois anos de idade ou até surgirem sinais de complicação.

Nos casos sintomáticos em que se indica intervenção terapêutica, há relatos de que, após a resolução do shunt, alterações laboratoriais, manifestações neurológicas e tumores hepáticos regridem totalmente ou ao menos melhoram significativamente.8,10 A hipertensão pulmonar pode resolver desde que o shunt seja corrigido antes do desenvolvimento de lesões vasculares irreversíveis.8 Há ainda melhoria da função cognitiva e recuperação de peso e estatura, quando essas alterações estavam presentes.10

Os shunts portossistêmicos são patologias raras com complicações potencialmente graves. Se não foi feito o diagnóstico pré‐natal, esse deve ser considerado no período pós‐natal diante de encefalopatia, hipertensão pulmonar, síndrome hepatopulmonar e colestase neonatal, principalmente se houver alterações laboratoriais, como hiperamonemia, hipergalactosemia, hiperbilirrubinemia direta e aumento de transaminases. Em nossa experiência, ressaltamos a importância do diagnóstico pré‐natal, que possibilitou maior segurança para o manejo do quadro, bem como um acompanhamento periódico que permite antecipar possíveis complicações e adotar conduta intervencionista quando necessário.

Financiamento

O estudo não recebeu financiamento.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

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