A técnica de tunelização, combinada com enxerto de tecido conjuntivo, tem sido descrita como uma opção vantajosa no tratamento de recessões gengivais classe I e II de Miller moderadas. O presente artigo descreve o caso clínico de uma paciente de 22 anos, do sexo feminino, referenciada para tratamento de recessões gengivais múltiplas. Após avaliação clínica e radiográfica, constatou‐se a presença de recessões gengivais classe I de Miller nos dentes 2.1, 2.2 e 2.3, tendo‐se decidido proceder ao recobrimento radicular destes dentes, recorrendo a esta técnica. Após um ano, observa‐se recobrimento radicular completo, ausência de hemorragia à sondagem, profundidade de sondagem inferior a 3mm e perfeita integração estética com os tecidos adjacentes. Esta técnica apresenta resultados bastante previsíveis quando indicada e corretamente executada, permitindo obter resultados estéticos.
The tunnel technique with connective tissue graft has been described as a favorable option for treatment of Miller Class I and II defects. This article describes the case of a 22 year‐old female patient referred for treatment of multiple gingival recessions. Clinical and radiographic examination revealed Miller Class I gingival recession of the teeth 2.1, 2.2 and 2.3; thus the tunnel technique with connective tissue graft was proposed to provide root coverage. A year after the surgical procedure, there was total root coverage, no bleeding on probing, probing depht under 3mm e nice aesthetic integration. This technique provides a predictable surgical result when recommended and correctly executed, offering an aesthetic outcome.
A recessão gengival é caracterizada por um deslocamento apical da margem gengival, estando frequentemente associada a hipersensibilidade dentária e queixas estéticas. As recessões gengivais podem ser localizadas, afetando apenas um dente, ou generalizadas, afetando mais de um dente1.
Atualmente, observa‐se uma procura crescente por parte dos pacientes em relação às técnicas de cirurgia plástica periodontal, que permitem melhorar ou restabelecer a harmonia do sorriso2,3.
Existem inúmeras técnicas descritas na literatura para o tratamento de recessões gengivais, com diferentes graus de complexidade e resultados variáveis. Um dos problemas que o clínico enfrenta é precisamente a seleção da técnica mais adequada a cada caso1,4.
A profundidade da recessão, quantidade de gengiva queratinizada apical à recessão e o biótipo gengival são algumas das variáveis que condicionam a seleção da técnica cirúrgica5.
Várias técnicas cirúrgicas têm sido descritas na literatura para o tratamento de recessões gengivais. Em 1985, Langer e Langer descreveram a técnica de enxerto de tecido conjuntivo (ETC) subepitelial para o recobrimento de recessões isoladas ou múltiplas7. Posteriormente, Raetzke apresentou uma versão diferente de ETC, a «técnica em envelope»8. Allen, em 1994, numa modificação da técnica de Raetzke, descreveu a «técnica em túnel ou envelope supraperióstico», para o tratamento de recessões múltiplas adjacentes9. Zabalegui combinou as técnicas de Allen e Langer e Langer na «técnica de tunelização» com ETC10. Azzi apresentou outra modificação da técnica, em 2002, quando descreveu um túnel entre a mucosa e o periósteo, através de incisões sulculares que incluíam as papilas11. Zühr et al. sugeriram a utilização de microinstrumentos cirúrgicos para uma execução mais minuciosa da técnica de tunelização, mantendo as papilas intactas e o ETC exposto na zona das recessões, sendo essa porção nutrida pelas zonas laterais e apicais do enxerto12.
A técnica de tunelização é uma alternativa às técnicas tradicionais, como a técnica de retalho de reposicionamento coronal com ETC (RRC+ETC)2,13.
Esta técnica de tunelização com ETC (TUN+ETC) tem demonstrado resultados clínicos previsíveis, com resultados semelhantes ao RRC+ETC, a par de uma excelente integração estética em termos de cor e textura com os tecidos adjacentes2,13–15.
Esta técnica está indicada no tratamento de recessões gengivais classe I e II de Miller, isoladas ou múltiplas, com uma profundidade ≤3mm16. A ausência de gengiva queratinizada não constitui uma contraindicação absoluta6, mas, nestes casos, o enxerto deve ficar ligeiramente exposto (até 2mm)17, de forma a aumentar a banda de gengiva queratinizada com o decorrer do processo de cicatrização4.
A utilização de magnificação e de instrumentos de microcirurgia permite manusear os tecidos de uma forma mais atraumática14,18,19, o que combinado com a utilização de fios de sutura extremamente finos (6/0 ou 7/0) contribui para um menor trauma dos tecidos, menor formação de tecido cicatricial15, rápida revascularização e melhor pós‐operatório12,19.
Caso clínicoUma paciente de 22 anos, saudável, não fumadora, foi referenciada à consulta de periodontologia do ISCSEM para o tratamento das recessões gengivais existentes nos dentes anteriores. Após avaliação clínica e radiográfica (figs. 1 e 2), constatou‐se a presença de recessões gengivais classe I de Miller (fig. 3), com cerca de 3mm de altura no 2.3, 2mm de altura no 2.2 e 1mm de altura no 2.1. O 2.1, 2.2 e 2.3 apresentavam uma profundidade de sondagem <3mm em todas as localizações.
Numa primeira consulta, a paciente recebeu instruções de higiene oral, a par de uma destartarização e polimento dentário.
Na ausência de inflamação gengival e presença de um índice de placa inferior a 20%, decidiu‐se proceder ao recobrimento radicular destes dentes, através de um ETC tunelizado.
Antes da cirurgia, foi efetuada antissepsia com digluconato de clorohexidina (CHX) a 0,2% durante um minuto e anestesia com articaína+epinefrina 1:200.000. Posteriormente, foi efetuada destartarização e alisamento radicular da zona em questão, com ultrassons e uma cureta mini‐five 1‐2.
Foram utilizados instrumentos de microcirurgia, de forma a permitir a manipulação o mais atraumática possível dos tecidos (fig. 4). O procedimento cirúrgico foi iniciado pela preparação do leito recetor, através de uma incisão intrassulcular com uma microlâmina SM 69 (Swann‐Morton®, Inglaterra) (fig. 5). Posteriormente, foi criado um túnel supraperiósteo, segundo a técnica modificada de Zühr et al.15 (fig. 6). Com recurso a instrumentos adequados, criou‐se um retalho de espessura parcial, que se estendeu apicalmente além da linha mucogengival e lateralmente um dente além da recessão. Na zona interdentária, o retalho estendeu‐se coronalmente à base das papilas, de forma a permitir a sua posterior elevação. Com uma sonda periodontal, foi verificado se o túnel se encontrava todo no mesmo plano, de forma a permitir um fácil deslizamento do enxerto (fig. 7).
Um ETC com cerca de 1mm de espessura (fig. 8) foi recolhido do palato através de uma incisão única, distante 3mm da margem gengival dos pré‐molares superiores (fig. 9). O enxerto foi guiado através do túnel com recurso a uma sutura de seda 4/0 e um descolador, deixando o enxerto cerca de 1mm acima da junção amelocimentária. Posteriormente, a sutura de seda foi removida e o enxerto foi estabilizado com recurso a uma sutura suspensória com poliamida 5‐0 (Seralon®, Serag Wiessner, Alemanha) (fig. 10).
Após a cirurgia, a paciente foi instruída a abster‐se de escovar a zona intervencionada e a efetuar bochechos com um colutório de CHX a 0,2%, durante 2 semanas. Foi prescrito ibuprofeno 600mg, de 12 em 12 horas, durante 4 dias.
Ao fim de uma semana, foi efetuada a remoção de sutura da zona dadora e uma profilaxia com gel de CHX da zona recetora (fig. 11). A sutura do palato foi removida passados 8 dias e, após 15 dias, foram removidas as restantes suturas (fig. 12).
Após 4 semanas, o enxerto encontrava‐se perfeitamente revascularizado e o processo de re‐epitelização quase completo, à semelhança da zona dadora no palato, onde a cicatrização se processou sem intercorrências.
Aos 3 meses, observa‐se a presença de recobrimento radicular completo e uma faixa de gengiva queratinizada com cerca de 5‐6mm.
Os dentes em questão apresentavam uma profundidade de sondagem de 1mm a centro‐vestibular, centro‐palatino e 2mm a mesial e distal, sem hemorragia à sondagem em todas as localizações.
A estabilidade dos resultados obtidos pode ser observada no controlo a um ano (figs. 13 e 14) e a três anos (fig. 15).
Discussão e conclusõesA técnica de tunelização foi desenvolvida como uma modificação da técnica em envelope6 e os resultados descritos na literatura demonstram a obtenção de resultados previsíveis, em termos de recobrimento radicular e aumento da quantidade de gengiva queratinizada2,4,13–15,20.
Para o tratamento de recessões múltiplas com uma profundidade ≤3mm, em que a exigência estética é elevada, a técnica de tunelização poderá ser a opção de eleição, uma vez que permite a preservação das papilas, o que a par da ausência de incisões de descarga assegura um melhor suprimento sanguíneo do enxerto, permitindo alcançar excelentes resultados estéticos e funcionais a longo prazo1,6,13,14,16,21.
A fim de aumentar a banda de gengiva queratinizada, as porções mais coronais do enxerto podem ficar descobertas. Para prevenir a necrose, é essencial assegurar que nenhuma porção do enxerto superior a 1‐2mm fica exposta, mantendo a maioria do enxerto coberto pela mucosa do túnel17.
Estudos recentes compararam o TUN+ETC com o RRC+ETC, sendo que o primeiro apresentou melhores resultados em termos de % de recobrimento radicular e aumento de espessura do tecido 2,15. A ausência de incisões de descarga e a melhor vascularização na técnica em túnel podem justificar a diferença nos resultados obtidos.
Em relação à manutenção dos resultados, o follow‐up a 3 anos deste caso vai ao encontro dos resultados existentes na literatura, que demonstram uma boa estabilidade a longo prazo 2,21.
O recurso a material microcirúrgico com uma curvatura e tamanho adaptados à anatomia local revelou‐se benéfico na redução do trauma tecidual, contribuindo para uma maior vascularização da zona, com melhores resultados pós‐operatórios14,18,19.
Esta técnica apresenta como vantagens: a ausência de incisões de descarga, ausência de alterações significativas no posicionamento da linha mucogengival, manutenção da profundidade do vestíbulo13, e proteção da posição e altura das papilas6,14. Adicionalmente, a ausência de cicatrizes e boa integração em termos estéticos podem ser considerados uma vantagem na perspetiva do paciente6.
No entanto, apesar das vantagens referidas, constitui uma técnica sensível, que deve ser realizada por um operador experiente com recurso de instrumentos específicos12,14. Por outro lado, devido ao reposicionamento limitado passível de ser obtido com esta técnica, a mesma não está indicada no tratamento de recessões profundas4.
Apesar de ser uma técnica sensível, podemos concluir que constitui uma opção de tratamento previsível para recessões classe I e II de Miller4,6,15,17,18.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com os da Associação Médica Mundial e da Declaração de Helsinki.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.
À direção clínica do Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz, ao Dr. José João Mendes, Dr. João Rua e Dra. Ana Delgado, por todo o apoio disponibilizado.