O odontoameloblastoma é um tumor odontogénico misto muito raro. Reportam‐se 29 casos bem documentados na literatura inglesa consultada, dos quais apenas 5 têm envolvimento do segmento anterior da mandíbula. Um homem de 51 anos apresentava um tumor da região anterior da mandíbula, com tumefação dura, difusa e indolor na região parassinfisária direita da mandíbula. Radiograficamente existia extensa lesão radiolucente, bem delimitada, desde o dente 46 ao dente 34, com pequenas estruturas calcificadas no interior. Observava‐se expansão óssea com provável perfuração cortical e reabsorções radiculares. Após biopsia realizou‐se resseção cirúrgica. O exame anatomopatológico permitiu o diagnóstico de odontoameloblastoma. Não houve recorrência nos 30 meses de seguimento. O odontoameloblastoma é um tumor localmente agressivo com comportamento aparentemente semelhante ao dos ameloblastomas, em termos de crescimento, expansão óssea, rizólise e recorrência, parecendo prudente adotar o mesmo critério terapêutico para ambos.
Odontoameloblastoma is an extremely rare mixed odontogenic tumour. 29 well‐documented cases have been reported in English‐language literature consulted, of which only 5 involved the anterior segment of the mandible. A 51‐year‐old man presented a tumour in the anterior segment of the mandible, with a hard, diffuse and painless swelling in the right mandibular symphysis. In the x‐ray, there was significant radiolucent injury, clearly marked from tooth 46 to tooth 34, with small calcified structures inside. There was a bone expansion observed with probably cortical perforation and root resorption. After a biopsy, a surgical resection was performed. The pathological exam led to the diagnosis of odontoameloblastoma. There has been no recurrence in 30 months of monitoring. Odontoameloblastoma is a locally aggressive tumour with behaviour apparently similar to ameloblastomas, in terms of growth, bone expansion, root resorption and recurrence. It seems prudent to adopt the same therapeutic criteria for both.
O odontoameloblastoma, anteriormente conhecido como adamanto‐odontoma ou odontoma ameloblástico, é um tumor odontogénico misto benigno extremamente raro, com componente epitelial e ectomesenquimatoso1. Trata‐se de um tumor que apresenta simultaneamente componentes de ameloblastoma e de odontoma (composto ou complexo)2. Histologicamente revela uma proliferação epitelial em cordões ou ilhas, típicas do ameloblastoma, intercaladas com tecidos dentários de vários graus de maturidade, característica dos odontomas1,2.
Este tumor ocorre predominantemente em doentes jovens e parece acometer preferencialmente o setor posterior de ambos os maxilares3–12. Desde que, em 1944, Thoma et al.3 descreveram o primeiro caso, apenas 29 casos se encontram documentados na literatura inglesa consultada3–12, dos quais apenas 5 envolvendo o setor anterior da mandíbula7,9,12.
Como se trata de uma entidade clínica rara, não estão descritos protocolos específicos para o tratamento deste tumor. Todavia, como apresenta um componente ameloblástico, a OMS recomenda que se adotem os mesmos critérios usados para o ameloblastoma13. O tratamento dos ameloblastomas difere em função das suas variantes: sólida/multiquística ou uniquística, sendo os protocolos para esta última variante menos bem definidos13–15. Na decisão terapêutica deve considerar‐se o seu potencial de recidiva, pelo que numa primeira abordagem se deve combinar o intuito curativo e, simultaneamente, assegurarem‐se condições para restituição da forma e da função da área afetada14,16.
A raridade deste tumor justifica a apresentação deste caso clínico.
Caso clínicoUm homem de 51 anos, leucodérmico, recorreu à urgência de cirurgia maxilofacial por uma tumefação da mandíbula, à direita. Referia história de tumefação mandibular direita, indolor, com 6 meses de evolução, crescimento insidioso, sem acidentes inflamatórios, sem mobilidade dentária dos dentes da região afetada, nem alterações da sensibilidade mentoniana. Fumador (uma unidade maço/ano), com depressão major, sem nenhum outro antecedente pessoal ou familiar relevante. Apresentava uma discreta tumefação geniana baixa à direita, difusa, sem alterações cutâneas associadas. A observação endobucal (fig. 1) ao nível do quarto quadrante revelava apagamento do sulco vestibular inferior direito, com extensão do primeiro molar até ao canino, sem alterações da mucosa adjacente, firme e indolor à palpação. Nos exames radiológicos (fig. 2) observava‐se uma lesão radiolucente extensa e bem definida da mandíbula, atingindo o terceiro e o quarto quadrantes, estendendo‐se de distal do canino esquerdo até ao primeiro molar direito, com uma massa radiopaca irregular no seu interior, na região mais anterior. Observava‐se ainda rizólise de alguns dentes envolvidos (44, 45 e raiz mesial de 46). Na TAC (figs. 3 e 4) identificava‐se expansão da tábua externa, com possíveis áreas de perfuração de ambas as corticais e aparente preservação do rebordo basilar. Realizou‐se uma biopsia incisional da lesão quística, cujo exame anatomopatológico foi de ameloblastoma uniquístico acantomatoso. A integração com o aspeto imagiológico permitiu o diagnóstico de odontoameloblastoma.
TAC 3D: lesão osteolítica na região sinfisiária com aparente septação, apresenta um conglomerado de estruturas calcificadas semelhantes a dentículos. Ramo horizontal direito com aparente perfuração da tábua interna da mandíbula. Rebordo basilar aparentemente não acometido pela lesão.
Sob anestesia geral, por via de abordagem cirúrgica intraoral, procedeu‐se a descolamento mucoso supraperióstico vestibular e lingual, observando‐se abaulamento da cortical vestibular, sem aparente solução de continuidade da mesma (figs. 5 e 6). Realizou‐se ostectomia marginal desde 35‐47 (fig. 7); desinserção dos músculos do pavimento oral e sua referenciação com fio de seda 2/0; excisão em bloco da lesão com sacrifício do nervo dentário inferior direito e preservação do rebordo basilar (osso cortical), clinicamente não afetado pela lesão (figs. 8 e 9); procedeu‐se, ainda, a ostectomia por desgaste com broca de todo osso medular residual do rebordo basilar remanescente que manteve cerca de 1cm de altura em toda extensão, preservando, assim, a continuidade óssea da mandíbula (fig. 10). Colocou‐se uma placa de titânio para reconstrução mandibular do sistema 2,4mm Reconstruction (Osteomed®, Dallas, EUA) «em ponte» sobre o defeito (fig. 11), de forma a aumentar a resistência às tensões mecânicas sobre o rebordo basilar e evitar uma possível fratura da mandíbula. Procedeu‐se ainda a fixação dos músculos genio‐hioideos e genioglossos à placa de reconstrução, reduzindo desde modo o dano morfológico e funcional. Encerramento da ferida operatória com fio de sutura de poliglatina 910 3/0 (Vicryl®, Ethicon, EUA).
O exame anatomopatológico da peça operatória (fig. 12) revelou uma lesão odontogénica uniquística com 4cm de comprimento, 2,5cm de altura e largura variável (maior à direita), completamente excisada, na parede do qual existem áreas de proliferação epitelial típica dos ameloblastomas, intercalada com formações calcificadas compatíveis com miniaturas de dentes rudimentares, típica dos odontomas compostos, o que permitiu o diagnóstico definitivo de ondotoameloblastoma.
No terceiro mês pós‐operatório, com a completa cicatrização das feridas intraorais e segundo o exame anatomopatológico, não existindo invasão do osso remanescente, realizou‐se a reconstrução do defeito ósseo, por via de abordagem cirúrgica submandibular, com enxertos corticoesponjosos colhidos de ambas as cristas ilíacas anteriores, fixados com parafusos à placa de reconstrução previamente aplicada. Após 30 meses de seguimento não há evidência de recidiva. Sem queixas dolorosas. Tem anestesia mentoniana à direita. Apresenta um bom resultado estético no contorno mandibular (fig. 13), sem reabsorção significativa dos enxertos ósseos (fig. 14).
O odontoameloblastoma é uma neoplasia benigna extremamente rara1,2,4–13,17,18, descrita inicialmente por Thoma et al., em 1944, com a designação de adamanto‐odontoma3 e definida pela WHO Classification of Tumors como «uma neoplasia que inclui ectomesênquima odontogénico em associação com epitélio odontogénico que lembra um ameloblastoma, tanto em estrutura como em comportamento biológico. Devido à presença do ectomesênquima odontogénico, ocorrem alterações indutivas levando à formação de dentina e esmalte em partes do tumor»1,17. Na prática, tal traduz‐se pela ocorrência num mesmo tumor de um ameloblastoma e de um odontoma (composto ou complexo). De acordo com a mais crítica revisão de casos publicada5, a maioria destes tumores contém áreas de ambos os tipos de odontoma e, menos frequentemente, apresentam predominância do tipo composto ou do tipo complexo. O componente ameloblástico pode adotar os habituais subtipos sólido/multiquístico ou uniquístico.
Atendendo à raridade do odontoameloblastoma, foi realizada uma pesquisa e análise crítica dos casos publicados na literatura inglesa, desde 1944 até 2013, nos seguintes motores de busca: PubMed, Medline, IndMED, CIELO, ISSN, MedKnow, PMC, OMICS Group, RefDoc, INIST, ScienceDirect. Utilizou‐se o seguinte termo de pesquisa: odontoameloblastoma.
Os artigos disponíveis são meras descrições de casos, esparsos. Não há nenhum estudo publicado que permita aferir a frequência deste tumor ou a sua patogénese.
Acedeu‐se a 10 artigos (13 casos)3–12, 6 resumos (6 casos), 9 referências (10 casos), totalizando 29 casos de odontoameloblastoma publicados na literatura inglesa desde 1944, sumarizados na tabela 1.
Revisão da literatura inglesa (1944‐2013)
Ano | Caso | Autor | Idade | Sexo | Localização | Procedimento cirúrgico | Seguimento (M) | Recorrência (M) |
1944 | 15,7,9 | Thoma et al. | 35 | F | Mand. post. | ‐ | ‐ | ‐ |
1946 | 23 | Thoma, Goldman | 20 | M | Max. ant. | ‐ | 24 | Sim (24) |
1953 | 35,7,9 | Frissel, Shafer | 7 | M | Mand. post. | ‐ | 49 | Sim (6 e 49) |
1956 | 45,7,9 | Silva | 2,5 | F | Max. ant. | ‐ | 11 | Não |
1964 | 55,7,9 | Choukas, Toto | 8 | M | Mand ant. | ‐ | 18 | Não |
1968 | 65,7,9 | Jacobson, Quinn | 12 | F | Mand post. | ‐ | 24 | Não |
75,7,9 | 20 | F | Mand. post. | ‐ | 96 | Não | ||
1980 | 85,7,9 | Labriola et al. | 25 | M | ‐ | ‐ | 6 | Não |
1986 | 95,7,9 | Gupta, Gupta | 50 | M | Mand. post. | ‐ | 18 | Sim (18) |
1989 | 105,7,9 | Takeda et al. | 11 | F | Max. ant. | ‐ | ‐ | ‐ |
1990 | 115,7,9 | Thompson et al. | 34 | F | Mand. ant. | ‐ | ‐ | ‐ |
1991 | 125,7,9 | Kaugarsan, Zussmann | 15 | M | Max. post. | ‐ | 7 | Não |
1993 | 135,7,9 | Gunbay, Gunbay | 11 | M | Max. ant. | Enucleação | 84 | Não |
1995 | 145,7,9 | Raubenheimer et al. | ‐ | ‐ | ‐ | ‐ | ‐ | ‐ |
1998 | 155,7,9 | Aguado et al. | 47 | F | Max. post. | Resseção marginal | 72+17 | Sim (72)+não (17) |
1998 | 165,7,9 | Stypulkowska | ‐ | ‐ | ‐ | ‐ | ‐ | ‐ |
1999 | 175,7,9 | Goh, The | ‐ | ‐ | ‐ | ‐ | ‐ | ‐ |
2001 | 184 | Sapru et al. | 36 | M | Mand. post. | Resseção marginal | 12 | Não |
2002 | 195 | Mosqueda et al. | 9 | M | Hemimaxila | Enucleação | 36 | Não |
205 | 15 | M | Mand. post. | Resseção segmentar | 12 | Não | ||
215 | 25 | M | Max. post. | Resseção marginal | 6 | Não | ||
2004 | 226 | Palaskar, Nayer | 42 | F | Mand. post. | Enucleação | ‐ | ‐ |
2004 | 237 | Granizo et al. | 12 | F | Mand. ant. | Enucleação | 24 | Não |
2009 | 248 | Mosca et al. | 22 | F | Max. ant. | Enucleação | 72 | Não |
258 | 16 | M | mand. post. | Enucleação | 6 | Não | ||
2011 | 269 | Dive et al. | 40 | M | Mand. ant. | Enucleação | 84+24 | Sim (84 duas vezes) + não (24) |
2012 | 2710 | Siniscalchi et al. | 15 | M | Max. post. | Enucleação | 60 | Não |
2012 | 2811 | Misir et al. | 11 | F | Max. post. | Enucleação | 48 | Não |
2013 | 2912 | Kumar et al. | 38 | F | Mand. ant. | Enucleação | 240+36 | Sim (240) + não (36) |
2013 | 30 | Caso presente | 51 | M | MGand. ant. | Resseção marginal | 30 | Não (30) |
A idade média dos doentes foi de 23,3 anos (31 meses a 51 anos), sendo os homens ligeiramente mais afetados do que as mulheres, numa proporção de 3:2. A mandíbula e o maxilar superior foram afetados numa proporção semelhante de 1,4:1, sendo o segmento posterior da mandíbula 1,5 vezes mais afetado que o anterior. Há apenas 5 casos descritos de atingimento do segmento anterior da mandíbula (tabela 1).
Apesar de não existirem protocolos terapêuticos específicos para este tumor, a maioria dos autores pesquisados3–12 aconselham uma excisão alargada e vigilância apertada por um período de pelo menos 5 anos. Os tratamentos disponíveis incluem a enucleação, com ou sem curetagem, a resseção marginal e a resseção segmentar. Apesar de um tratamento mais agressivo ser defendido como mais sensato, no sentido de evitar futuras recorrências, os tratamentos realizados nestes 29 casos (tabela 1), quando referidos (14 casos), foram 10 enucleações, 3 recessões marginais e uma resseção segmentar.
O seguimento oscilou entre 6‐276 meses, correspondendo a um tempo médio de 48,5 meses. Encontraram‐se descritos 6 casos de recorrência, ocorridos entre 6‐240 meses de pós‐operatório, não se conhecendo o tipo de intervenção realizada. Nestes casos de recorrência, é provável que a excisão da lesão tenha sido incompleta18. O seguimento médio dos doentes publicados (4 anos) foi relativamente curto, atendendo à possibilidade de recidiva tardia, característica do ameloblastoma, o que impede conclusões definitivas.
A combinação dos achados clínicos e radiográficos característicos dos odontoameloblastomas impõem o diagnóstico diferencial com lesões odontogénicas e não odontogénicas radiolucentes bem definidas, uniloculares ou multiloculares, com quantidades variáveis de material calcificado no seu interior5, como sejam: o odontoma, o fibro‐odontoma ameloblástico, tumor odontogénico epitelial calcificante, quisto odontogénico calcificante, tumor odontogénico adenomatoide e fibroma cemento‐ossificante.
O tratamento do odontoameloblastoma é cirúrgico. Trata‐se duma lesão localmente agressiva que parece ter o mesmo comportamento dos ameloblastomas em termos de crescimento, invasão óssea, reabsorção radicular e recorrência. Admite‐se que o comportamento do odontoameloblastoma depende do seu componente ameloblástico e, por isso, parece lógico adotar os critérios terapêuticos estabelecidos para os ameloblastomas, os quais se encontram extensamente discutidos na literatura médica14,19. Sucintamente, refira‐se que os métodos cirúrgicos podem ser mais conservadores ou, pelo contrário, mais radicais, correspondendo os primeiros à remoção da lesão justalesional (enucleação ou curetagem, com ou sem marsupialização prévia eventualmente complementada por outras modalidades terapêuticas ao nível do osso subjacente, como fixadores químicos [solução de Carnoy], crioterapia ou cauterização térmica ou química). Nos designados métodos «radicais» (resseção segmentar, resseção marginal e resseção composta) procede‐se à resseção dum bloco do osso envolvido e eventualmente dos tecidos moles adjacentes, evitando a remoção justalesional.
Foi referida, em 1963, uma importante característica do ameloblastoma, com implicação direta no tratamento, que é a facilidade para invadir os espaços intertrabeculares do osso esponjoso sem que se verifique reabsorção das trabéculas e, portanto, poder ultrapassar os seus limites radiográficos ou macroscópicos. Por outro lado, ao nível do osso cortical, embora possa provocar erosão, parece não ter a capacidade para o infiltrar de forma inaparente19. Com base nestes conceitos, foi publicado em 200016 um protocolo de tratamento com preservação dos rebordos basilares, sempre que possível.
No caso apresentado tratava‐se duma lesão quística e, por isso, optou‐se pela resseção da lesão com margens de segurança de 1cm ao nível do osso medular, para além do limite aparente e incluindo o periósteo. Preservou‐se o rebordo basilar da mandíbula após confirmação intraoperatória da sua aparente integridade. Este procedimento foi complementado com a decisão de protelar por 3 meses a reconstrução mandibular, para conhecer com precisão a extensão anatomopatológica da lesão. Sendo uma zona de fácil controlo clínico e de deteção precoce de eventuais recidivas, deixou em aberto a possibilidade de excisão ulterior, se porventura o referido exame viesse a revelar uma excisão incompleta da lesão a esse nível.
ConclusãoO odontoameloblastoma é uma lesão localmente agressiva que parece ter o mesmo comportamento do clássico ameloblastoma em termos de crescimento, expansão óssea, reabsorção radicular e recorrência. Por outras palavras, o comportamento do odontoameloblastoma é o mesmo da sua componente ameloblástica, pelo que parece prudente adotar os mesmos critérios terapêuticos para ambas as entidades.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.