Avaliar a influência da esterilização em autoclave e da desinfeção com um desinfetante de alto nível na resistência à fratura por flexão de espigões de fibra de vidro.
MétodosForam utilizados 24 espigões de fibra de vidro divididos em 3 grupos. Um primeiro grupo, designado grupo controlo, constituído por 8 espigões não submetidos a qualquer tipo de processo de esterilização/desinfeção, um segundo grupo, grupo autoclave, constituído por 8 espigões submetidos a esterilização por autoclave e um terceiro grupo, grupo desinfetante, formado por 8 espigões imersos numa solução desinfetante de alto nível. Após o processo de esterilização/desinfeção foi analisada a resistência à fratura por flexão com recurso ao teste de resistência à flexão com 3 pontos. Os dados obtidos foram analisados estatisticamente recorrendo ao teste paramétrico de ANOVA a uma via (α=0,05) e ao teste de Bonferroni.
ResultadosVerificaram‐se diferenças estatisticamente significativas entre o grupo controlo e o grupo dos espigões esterilizados em autoclave (p <0,001) e entre o grupo controlo e o grupo desinfetante (p=0,002). Não foram verificadas diferenças com significado estatístico, para um intervalo de confiança de 95%, entre os grupos dos espigões submetidos a autoclave e ao desinfetante (p=0,829).
ConclusõesA resistência à fratura por flexão diminuiu nos espigões submetidos quer a esterilização com autoclave quer a desinfeção com um desinfetante de alto nível.
To determine whether autoclave sterilization or a high‐level disinfectant can affect the properties of the original glass fiber post, particularly regarding its resistance to fracture by bending.
MethodsTwenty‐four fiber glass posts were used, divided into three groups. The first group, named control group, consisting of eight elements; the second group, autoclave group, consisted of eight posts submitted to autoclave sterilization. The third and final group, disinfectant group, was made of eight posts immersed on a high‐level disinfectant solution. After the process of sterilization/disinfection the resistance to fracture by bending was analyzed, using the three‐point bending test. To verify if there were any differences between at least two groups, the parametric One‐way ANOVA test was used. The Bonferroni test was used to verify between which groups there were significant statistical differences.
ResultsIt was found that the autoclave group and the control group had significant statistical differences (p <0.001). The same was observed between the disinfectant and the control group (p=0.002). At a 95% confidence level, no significant statistical differences were found between the autoclave and disinfectant groups (p=0.829).
ConclusionsThe sterilization/disinfection procedures diminished the fiber post resistance, leading to a bigger chance of fracture when compared to the control group.
Um dos principais objetivos da medicina dentária é a conservação de dentes. Este desafio é grande particularmente no caso de dentes com tratamento endodôntico que exibem um maior risco de falha biomecânica1–3.
A utilização de espigões intrarradiculares não torna os dentes mais resistentes, aumentando apenas a estabilidade do falso coto e fornecendo retenção ao material de reconstrução coronária4. As restaurações com recurso a espigões constituem um método correntemente utilizado, exigindo um sólido conhecimento dos princípios endodônticos, periodontais, restauradores e oclusais para selecionar o correto sistema espigão/coto capaz de reter a restauração, cumprindo com as necessidades biológicas, mecânicas e estéticas dos dentes2,5,6.
Os aspetos a ter em consideração para a utilização de um espigão são vários, nomeadamente a retenção7,8, a resistência, o desenho, o material de fabrico9–12 e a sua largura2,13,14. Também devem ser considerados o comprimento radicular e a conuração canalar1,6,15–18, a anatomia, função e posição dos dentes na arcada, a quantidade de estrutura dentária remanescente bem como o esquema oclusal do paciente19,20.
Em reabilitações dentárias pós‐tratamento endodôntico os espigões de compósito reforçado com fibra de vidro têm sido cada vez mais uma opção com comprovado sucesso clínico21,22. A sua utilização é mais conservadora, ao mesmo tempo que se reduz o tempo de cadeira e o custo final para o paciente, comparativamente às técnicas indiretas com falsos cotos fundidos5. Alguns são constituídos por fibras de vidro, uni ou bidirecionais, introduzidas numa matriz de resina epoxy ou à base de metacrilato que fortalece a estrutura, outros, no entanto, possuem fibras de vidro envolvidas numa verdadeira matriz de resina composta2,23,24. Apresentam, entre outras, a vantagem de terem um módulo de elasticidade próximo do da dentina o que contribui para a redução da concentração do stress na interface dentina/espigão, fazendo com que as forças se dissipem pela raiz2. Ao permitirem que o dente apresente alguma flexão, sob o efeito de cargas, contribuem para a redução do risco de fratura radicular2,25–28.
Por vezes o médico dentista vê‐se perante a necessidade de mudar a sua escolha inicial sendo necessário proceder à esterilização/desinfeção do espigão para uma posterior reutilização. Uma esterilização apropriada e eficiente dos materiais entre cada paciente é uma obrigação legal, uma responsabilidade ética e uma medida essencial no combate à infeção cruzada29.
Entende‐se por esterilização todo o processo capaz de eliminar todas as formas de vida, inclusive as formas esporuladas de microrganismos mais resistentes. A desinfeção, por sua vez, elimina a maioria dos microrganismos, mas não necessariamente todos, não atuando ao nível dos esporos bacterianos30.
Estão descritos 3 passos no processo de descontaminação e preparação dos instrumentos/superfícies: descontaminação prévia em água corrente, lavagem manual, ultrassónica ou com recurso a uma máquina de lavar e esterilização/desinfeção31,32. A esterilização, em medicina dentária, é realizada, preferencialmente, com recurso a autoclaves que utilizam vapor húmido, no interior de uma câmara fechada, a alta pressão (15‐20psi) e alta temperatura (121°C ou 134°C) durante um período de tempo pré‐definido. Também é frequentemente referida na medicina dentária a «esterilização a frio». Trata‐se de um método controverso que consiste na imersão de instrumentos de pequenas dimensões, em soluções desinfetantes de alto nível, na diluição e durante o período de tempo recomendados pelo fabricante, visando a eliminação de todos os microrganismos, inclusive dos esporos, num processo, pelo menos no capítulo teórico, equivalente ao da esterilização. É um método não controlável, indicado apenas para instrumentos não‐cirúrgicos sensíveis ao calor e para impressões em alginato. Recorre ao gluteraldeído e baseia‐se em estudos que mostram que os esporos são permeáveis a esta substância, considerada esterilizante, independentemente do pH e da temperatura33,34.
O presente estudo procurou avaliar a influência dos métodos de esterilização/desinfeção na resistência à fratura por flexão dos espigões de fibra de vidro, de acordo com a seguinte hipótese nula: (H0) a esterilização/desinfeção não influenciou a resistência à fratura dos espigões de fibra de vidro.
Materiais e métodosForam utilizados 24 espigões ParaPost® Fiber White (Coltène/Whaledent, Mawhaw, NJ, EUA, lote MT ‐ 183371), de 15mm de comprimento e 1,2mm de diâmetro, divididos em 3 grupos.
O primeiro grupo, grupo controlo, constituído por 8 elementos, o segundo grupo, grupo autoclave, constituído por 8 espigões submetidos a esterilização por autoclave (JSM®, Matosinhos, Portugal), e um terceiro grupo, grupo desinfetante, formado por 8 espigões imersos numa solução desinfetante, de alto nível, designado Instrunet® Esporicida 30 (IE30) (Inibsa Laboratórios S.A., Barcelona, Espanha).
Os espigões do grupo controlo não foram submetidos a qualquer processo de esterilização/desinfeção. Os espigões do grupo autoclave, termosselados individualmente em mangas (Bastos Viegas, Penafiel, Portugal), foram colocados num esterilizador horizontal a vapor de água saturada e submetidos a um ciclo a 134°C, a 2,20bar, durante 10 minutos. Os espigões do grupo desinfetante foram imersos durante uma hora numa solução de 10ml de IE30 ativado e diluído numa solução 1:2.
Após o procedimento de esterilização/desinfeção foi analisada a resistência à fratura por flexão com recurso ao teste de resistência à flexão com 3 pontos. Os espigões foram apoiados em 2 apoios paralelos tendo‐se feito deslocar um apoio perpendicular, sobre o ponto médio do comprimento do espigão. De acordo com a norma ISO 14125 o comprimento do vão era 20 vezes o do diâmetro do espigão. Os ensaios foram realizados numa máquina Instron ElectroPuls E1000, provida de uma célula de carga de 2kN em controlo de deslocamento até à fratura da amostra. A taxa de deslocamento foi de 5mm/min.
Foram calculadas as médias e desvios‐padrões para cada grupo tendo sido utilizadas como elementos de estatística descritiva.
Garantidos os pressupostos de normalidade, verificado com o teste de Shapiro‐Wilk (p=0,432), e de homogeneidade de variâncias, verificado com o teste de Levene (p=0,365), foram analisados os valores médios de resistência à fratura, utilizando o teste de variâncias ANOVA.
Foi utilizado o teste paramétrico ANOVA a uma via para verificar se existiam diferenças entre pelo menos 2 dos grupos, seguido do teste post‐hoc de comparações múltiplas segundo o método de Bonferroni, para determinar entre que grupos se verificavam essas diferenças. Foi fixado um nível de significância estatística de 5%.
A análise estatística foi realizada recorrendo ao programa informático SPSS versão 21 (SPSS Inc., Chicago, Illinois, EUA).
ResultadosPara cada grupo foram calculados os valores médios bem como o seu desvio padrão (tabela 1).
Com base no teste paramétrico ANOVA a uma via verificou‐se existirem diferenças com significado estatístico (p<0,05) entre pelo menos 2 grupos quanto à resistência à fratura por flexão.
Os testes post‐hoc segundo Bonferroni permitiram verificar diferenças estatisticamente significativas entre o grupo controlo e o grupo autoclave (p<0,001) e entre os grupos controlo e o grupo submetido ao desinfetante (p=0,002). Não se verificaram diferenças entre o grupo sujeito a esterilização por autoclave e o grupo sujeito ao desinfetante (p=0,829).
DiscussãoPor vezes o clínico tem de fazer uma segunda opção descartando o primeiro espigão selecionado. A reutilização de espigões de fibra de vidro, nestas circunstâncias, é uma conduta eticamente aceitada desde que devidamente descontaminados. No entanto, não é consensual o método ideal para a sua esterilização/desinfeção e pouco se conhece sobre a preservação das propriedades originais muito devido à ausência, quase total, de estudos sobre o assunto.
Neste trabalho, 24 espigões de fibra de vidro ParaPost® Fiber White (Coltene/Whaledent, Mawhaw, NJ, EUA) foram sujeitos a testes de resistência à fratura após esterilização por autoclave e «a frio».
A solução desinfetante IE30, cuja composição possui 2% de glutaraldeído e 9,4% de fenol a 90%, foi escolhida já que é habitualmente utilizada no processo de «esterilização a frio» sendo eficaz contra os vírus HIV, HBV e HSV e contra esporos35.
De acordo com as instruções do fabricante, Coltène/Whaledent, os espigões ParaPost® Fiber White (Coltène/Whaledent, Mawhaw, NJ, EUA) devem ser esterilizados em soluções desinfetantes de alto nível, por imersão. O melhor método de preparação dos espigões testados, não utilizados, para sua posterior reutilização será aquele que, destruindo todas as formas de vida, mantenha as suas propriedades originais, nomeadamente quanto à sua resistência.
Neste estudo, verificou‐se existirem diferenças com significado estatístico entre os grupos, rejeitando‐se a hipótese nula, isto é, confirmando existirem diferenças entre, pelo menos, 2 grupos quanto à resistência à fratura por flexão.
Comparando os resultados obtidos para cada grupo testado e o grupo controlo, verificamos uma diminuição da resistência à fratura em todos os espigões submetidos a tratamento. As diferenças observadas entre o grupo dos espigões submetidos a esterilização por autoclave e o grupo controlo tiveram significado estatístico. O mesmo foi observado entre o grupo controlo e o grupo dos espigões submetidos a desinfeção de elevado nível.
Os espigões pertencentes ao grupo autoclave, depois de termicamente selados, foram sujeitos a um ciclo de esterilização a vapor, segundo o protocolo descrito. Não se tratando do método de esterilização indicado pelo fabricante seria de esperar que pudesse afetar a estrutura da matriz resinosa ou as próprias fibras de vidro, levando a uma diminuição da sua resistência à fratura por flexão. Os resultados obtidos confirmam‐no uma vez que o valor de carga média capaz de produzir fratura (60,4N) foi significativamente inferior ao registado para o grupo controlo (84,3N). Na literatura internacional, só foi possível encontrar um outro trabalho que analisa a resistência de espigões à fratura após procedimentos de esterilização/desinfeção. Nesse estudo36 foram testados 40 espigões divididos em 4 grupos, por marca comercial e composição. Após 2 ciclos de esterilização em autoclave realizaram testes de resistência à fratura verificando diferenças estatisticamente significativas entre os grupos testados. Os espigões testados reduziram em 24% a capacidade de resistir à fratura. O facto da redução da resistência, nesse estudo, ser ainda mais relevante pode ser resultado de os autores terem realizado 2 ciclos de esterilização. Parece, assim, ser necessário ter em consideração o número de vezes que, em clínica, os espigões são testados e descontaminados para posterior reutilização pois podem enfraquecer consideravelmente e, desta forma, comprometer o procedimento restaurador.
Pequenos defeitos na produção, como a existência de pequenos espaços vazios, fissuras e microbolhas são o suficiente para enfraquecer o espigão, tornando assim a restauração mais frágil e com pior prognóstico37. Poderá ser interessante analisar, com recurso à microscopia eletrónica de varrimento, se as altas temperaturas e a pressão atingidas no autoclave são suscetíveis de produzir alterações na estrutura da matriz dos espigões que possam corroborar o decréscimo da resistência à fratura observada após a realização de um ciclo de esterilização por vapor húmido.
Por outro lado, sendo uma das principais vantagens dos espigões de fibra de vidro o seu módulo de elasticidade, semelhante ao da dentina, poderia ser interessante, num trabalho futuro, verificar se os procedimentos de esterilização/desinfeção podem afetar esses valores. Finalmente, também seria interessante e importante averiguar se o tempo de contacto do espigão com a estrutura dentária durante a realização de uma prova é suscetível de induzir contaminação e em que grau, de modo a percebermos melhor qual o método de descontaminação a utilizar com vista a uma posterior reutilização.
ConclusõesOs 2 métodos utilizados, esterilização e desinfeção de elevado nível, influenciaram a resistência à fratura por flexão dos espigões de fibra de vidro, diminuindo‐a de forma estatisticamente significativa.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.
Os autores agradecem à Coltène/Whaledent pelo material cedido para o estudo.