O debate em torno da descentralização gestionária dos cuidados de saúde primários não é recente. Em 1999, o Professor Sampaio Faria escreveu, neste mesmo espaço, um comentário dedicado ao tema, onde sublinhava a incompatibilidade entre os propósitos da saúde pública e a centralização gestionária dos serviços e dos programas de prevenção da doença e promoção da saúde.
Ao longo dos anos, vários autores têm sugerido que o desenvolvimento dos cuidados de saúde primários (CSP) e das práticas efetivas de saúde pública dependem da possibilidade e capacidade de muitas das decisões poderem ser tomadas próximas dos cidadãos e das comunidades e não em sede de poder, isto é, tomadas (ou influenciadas) por órgãos mais recuados e distantes e com menor conhecimento dos problemas e necessidades em causa.
No caso concreto dos cuidados primários, o processo de descentralização, naquilo que respeita [diz respeito a]aos conceitos de desconcentração e delegação, deveria ter sido consolidado com a criação dos ACeS - Agrupamentos de Centros de Saúde, uma vez que seriam extintas as sub-regiões de saúde, sendo que as ARS [Administrações Regionais de Saúde] lhes sucederiam nas atribuições, sem prejuízo das que fossem atribuídas aos ACes. Estes beneficiariam de autonomia administrativa para proceder à decisão e implementação de soluções adaptadas aos recursos disponíveis e às necessidades específicas das populações que servem.
A finalidade dos ACeS é a de garantir a prestação de CSP à população de uma área geográfica definida, procurando manter os princípios de equidade e solidariedade, de modo a que todos os grupos populacionais partilhem igualmente dos avanços científicos e tecnológicos, postos ao serviço da saúde e do bem-estar da comunidade.
Todavia, a ausência de autonomia de gestão, pela não realização da descentralização para o nível local, é a principal transformação estruturante da reforma dos CSP que falta implementar. E não obstante, esta é fundamental para dar estabilidade à organização da prestação de cuidados de saúde, permitindo uma gestão rigorosa e equilibrada dos recursos existentes, o que se torna imperativo no atual contexto de austeridade.
A descentralização para os ACeS foi um das medidas preconizadas nas “Linhas de Ação Prioritária para o Desenvolvimento dos Cuidados de Saúde Primários”, de 2006, que consistia na atribuição de autonomia aos AceS. Este processo deveria ser gradual e estar concluído num prazo máximo de 3 anos. No entanto, no segundo trimestre de 2012, a autonomia parece não ter sido ainda efetivamente consolidada.
Existem exemplos de experiências internacionais e fundamentos legais para a descentralização da gestão. Estão previstos e disponíveis os instrumentos de monitorização e avaliação de resultados. A evidência internacional parece demonstrar que os modelos de gestão dos CSP estão diretamente relacionados com o cumprimento dos objetivos da prestação de cuidados de saúde de qualidade.
Os ACeS completam agora três anos de existência.
Qual foi o balanço desta experiência? Porque não foi possível realizar a decentralização anunciada? Que alternativas realistas existem no atual contexto português para a evolução dos ACeS? Para quando esta análise e o debate que seguramente merecerá?
Estas questões são particularmente relevantes, tendo em conta o trajeto histórico da reforma e a sua natureza, essencialmente no que diz respeito a dois aspetos.
O primeiro tem a ver com o facto de a principal força propulsora desta reforma terem sido as lideranças profissionais no terreno (esta é talvez a sua principal originalidade) – afastar as decisões sobre a gestão das organizações dos CSP dessas lideranças não será certamente uma das melhores formas de dar continuidade a esta reforma.
O segundo aspeto a considerar é o que se relaciona com a importância de um consenso alargado na sociedade portuguesa sobre a evolução da reforma dos CSP – foi possivelmente a existência dessa base social de apoio que permitiu ter-se chegado até aqui.
Qualquer alteração organizacional a implementar não poderá verificar-se se não existir consenso e se não se concretizar em melhorias relativamente à situação que lhe deu origem e sempre sem colocar em causa aqueles que foram os objetivos da reforma iniciada em 2005 e que se baseiam, essencialmente, na (i) necessidade da existência de cuidados de saúde de qualidade para todos os cidadãos, na (ii) recompensa pelas boas práticas profissionais e na (iii) eficiência e sustentabilidade do sistema de saúde.