A população nas prisões está a aumentar na maioria dos países do mundo e tem sido relacionada com algumas das taxas mais elevadas de tuberculose (TB) registradas em toda a população humana.
Os surtos de tuberculose nas prisões são há muito, do conhecimento geral mas a aplicação de diretrizes específicas tem sido incompleta e heterogénea devido a diversos obstáculos específicos que têm sido levantados.
O risco infeccioso dos presos, a falta de condições estruturais, o estilo de vida da prisão, o impacto da estratificação hierárquica não oficial dos presos, a descontinuação e disarticulação terapêutica entre as instituições de cuidados médicos foram alguns dos problemas encontrados.
O controlo eficaz da TB em ambiente prisional exigirá uma atenção renovada e uma mais elevada consciencialização política conducente a reformas significativas ao nível do parque prisional.
Prison population is rising in the majority of the countries in the world, and has been related to some of the highest tuberculosis (TB) rates ever registered in any human population.
Prison outbreaks have been known to occur but the implementation of specific guidelines was always incomplete and heterogeneous due to specific obstacles posed.
Inmates’ infectious risk, lack of structural conditions, prison's lifestyle, impact of inmate nonofficial hierarchical stratification, therapeutic discontinuation and disarticulation between healthcare institutions were some of the encountered problems.
Managing prison TB effectively will demand a renewed attention and a higher political awareness to major reforms in prisons.
A ocorrência de surtos em prisões na Europa de Leste e América é conhecida desde os anos 901. Porém, somente em 1997 surgiu o alerta sobre a problemática prisional por aquela que ficou conhecida como a Declaração de Baku (fig. 1), sublinhando a urgência epidémica que revestia a tuberculose (TB) prisional e a sua associação com a infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH) e com a crescente farmacorresistência. Apelava ainda à necessidade premente de melhores serviços médicos prisionais, melhores planos de controlo para a TB e de maior comprometimento político, em parceria, entre os ministérios da Saúde, do Interior e da Justiça.
A Declaração de Baku, 1997.
Baseado em Maher et al.2.
No seguimento dessa declaração, em 19982 e 20003 surgiram as primeiras linhas de orientação específicas para o controlo da TB em ambiente prisional, porém, a sua implementação foi sempre lenta, incompleta e heterogénea face às especificidades desse cenário4. Não obstante um ligeiro progresso, vários obstáculos têm vindo a ser identificados e potenciados pelo paradigma do subfinanciamento e da negligência política, contribuindo para que o parque prisional represente ainda uma importante reserva para a TB4–6.
Desse conjunto de fatores serão abordados: a dimensão epidemiológica e demográfica do problema, os fatores de risco específicos dos reclusos e o «estilo de vida prisional», o problema da inadequação infraestrutural penitenciária; os obstáculos específicos oferecidos aos programas de tratamento, a repercussão da hierarquia reclusa paralela, a permeabilidade epidemiológica e a questão tutelar da saúde prisional. Dados recentes referentes à realidade portuguesa são também discutidos.
A inquietante realidade prisionalO aumento da população encarcerada tem sido reportado por todo o mundo. Atualmente estima‐se que mais de 9,8 milhões de indivíduos se encontrem detidos em estabelecimentos prisionais (EP), centros de detenção, esquadras, asilos ou campos de concentração de guerra7. Os Estados Unidos da América (EUA), China, Federação Russa e Brasil respondem conjuntamente por mais de metade desse contingente recluso atual. A taxa de encarceramento mundial foi em 2008 de 158/105, tendo 71% dos países, incluindo 68% dos países europeus, incrementaram o seu contingente recluso7.
Presentemente a maior taxa de encarceramento com 730/105 habitantes pertence aos EUA8. A sua «carga» prisional de TB, em declínio desde 1992, apresentou entre 2000‐2007 um crescimento anual de 2,4%9. Em 2008 a taxa de incidência reclusa de novos casos de TB ativa foi de 4,2/105 – um valor 6‐10 vezes superior à da população livre – e a taxa de TB latente de 25%10,11.
No continente africano, um estudo realizado numa prisão zambiana12 encontrou uma prevalência de TB entre 15‐20%. Já no Botswana foi reportada uma prevalência geral prisional estimada de 3.797 casos/105 reclusos, sem existência de qualquer estratégia de rastreio13.
Num conjunto de 22 países europeus14 foi apurada uma taxa de notificação média de TB prisional de 232/105 reclusos, tendo existido países com notificações alarmantes de até 17.808 casos/105. O risco de um recluso desenvolver TB foi até 83,6 vezes superior ao de um indivíduo na comunidade livre.
Relativamente a taxas de infeção, estudos em penitenciárias espanholas e italianas detetaram taxas de 56%15,16 e 17,9%17, respetivamente.
Vários levantamentos epidemiológicos foram efetuados nos últimos anos em países de alta prevalência da Europa de Leste18–20. Alguns encontraram taxas de TB prisional entre os valores mais altos alguma vez registados em qualquer outra população humana (tabela 1).
Taxas de notificação anual/prevalência de todas as formas de TB
Autor | Localização da prisão, país | Notificação anual | Prevalência |
---|---|---|---|
Koffi e col | Bouake, Costa do Marfim (1990‐92) | 7.200/105 hab. | |
Drobniewski e col | Sibéria, Rússia (1993) | 820/105 | |
Auregan e col | Atananarivo, Madagáscar (1993) | 2.400/105 | |
Rozman e col | São Paulo, Brasil (1993) | 2.650/105 | |
Al Shareef e col | Jeddah, Arábia Saudita (1993‐1995) | 456/105 | |
Coninx e col | Baku, Azerbaijão (1994) | 4.667/105 | |
Bollini e col | Chisinau, Moldávia (1996) | 2.640/105 | |
Wares e col | Tomsk, Rússia (1996) | 7.000/105 | |
Nyangulu e col | Zomba, Malawi (1996) | 5.100/105 | |
Aerts e col | Tiblissi, Geórgia (1998) | 6.500/105 | |
Bobrik e col | Okrug indeterminado, Rússia (2002) | 4.173/105 | |
Wang EA e col | Botswana (2002) | 4.173/105 | |
SEAP‐Rio de Janeiro | Prisões estaduais – R. Janeiro, Brasil (2004) | 3.300/105 (Média) | |
Sánchez e col | Rio de Janeiro, Brasil (2005) | 8.600/105 | |
SEAP‐Rio de Janeiro | Prisões estaduais ‐ R. Janeiro, Brasil (2005) | 3.532/105 |
Na Federação Russa, durante a década de 90, a incidência e a mortalidade por TB no sistema penal chegaram a atingir em algumas prisões os 7.000/105 e 485/105 reclusos, respetivamente, situação que só foi alterada após implementação gradual dos conteúdos estratégicos Tratamento de Breve Duração sob Observação Direta (DOTS) pela Organização Mundial de Saúde (OMS)21. Foram reportadas taxas de mortalidade de 24%22, com metade das mortes ocorrendo no espaço prisional23. No ano de 2002 as prisões russas apresentavam ainda uma incidência média de novos casos de TB notificados de 2.028/105 reclusos21.
Já na população prisional brasileira alguns estudos mostraram taxas de incidência anual média variando entre 1.073‐3.137/10524–27. Em prisões do Rio de Janeiro a incidência de novos casos foi de 3.532/105 em 2005, 35 vezes superior à taxa da população geral28,29. Já estudos de Sánchez et al.19,30 encontraram prevalências de TB de 4,6‐8,6% (ou seja 8.600/105). O estado de São Paulo31 apresentou uma incidência prisional de 800/105 com uma prevalência média de coinfecção TB/VIH de 49,9%25.
Genericamente, a ocorrência de grandes cadeias de transmissão intraprisional de TB é favorecida pelas dificuldades de diagnóstico precoce, conjuntura demográfico‐estrutural desfavorável e elevada velocidade de renovação da população prisional. O turnover para doença em reclusos pode atingir os 21%/ano e um caso índice de tuberculose pulmonar (TP) pode acarretar exposição com viragem tuberculínica em 13% do total de reclusos da instituição e a exposição possível de outros 10%32.
O aumento da taxa de encarceramento relaciona‐se diretamente com o aumento da taxa de incidência nacional de TB33. Porém, apesar do número absoluto de prisioneiros ser relevante para as diferenças na incidência de TB e TB multirresistente (TB‐MR), o determinante mais importante é mesmo o ritmo de crescimento relativo da população prisional.
A TB, em grande medida potenciada pelo fenómeno do VIH, tem contribuído para a maior farmacorresistência prisional. Estudos de genotipagem detetaram prevalências alarmantes de estirpes altamente quimiorresistentes que tendem a tornar‐se dominantes em ambiente recluso1,34–36.
Fatores de risco: proveniência e vida prisionalNão constituindo uma fatia longitudinal da sociedade, a população prisional apresenta uma larga proporção de indivíduos pobremente instruídos e socioeconomicamente desfavorecidos, transportando já à entrada um alto risco de infeção tuberculosa. Os reclusos tendem a desenvolver TB ativa não apenas devido às pobres condições de vida prisionais, mas também devido ao seu percurso de vida prévio à clausura. São, aliás, muito propensos a desenvolvê‐la ainda antes da sua chegada à prisão15,18,22,23.
A população reclusa é tendencialmente masculina37, constituída tipicamente por jovens dos 15‐45 anos provenientes de segmentos pobremente educados e socioeconomicamente desfavorecidos. Pertencem muitas vezes a minorias já com limitado acesso a cuidados médicos e com estilos de vida disruptivos para com a adesão à terapêutica38–40. Geralmente apresentam baixa literacia, reduzidos padrões de higiene, desnutrição, doença psiquiátrica, toxicodependência, estatuto de sem‐abrigo e maior prevalência de infeção VIH e alcoolismo. Detêm habitualmente um vasto repertório de penas anteriores, tendência a fácil reincidência criminal e uma grande proporção é oriunda de países de alta endemia2,4,40,41. Muitos destes fatores dificultam a aplicação de estratégias de controlo da TB ainda na comunidade livre42.
Relativamente ao triângulo epidemiológico da TB em meio prisional, são os fatores do hospedeiro e a dimensão ambiental que merecem maior reflexão2. O recluso, a um passado predisponente a doença, pela entrada na penitenciária faz associar um risco ainda superior decorrente da insalubridade e das más condições do estilo de vida prisional. Oficialmente, o espaço mínimo para cada recluso segundo a Convenção de Proteção para os Direitos Humanos e Liberdades Básicas21 é de 4m2, todavia, regulamentos sanitários e códigos penais em muitos países recomendam espaços de 2m2 e, em largas regiões do mundo, tal legislação é simplesmente desconhecida ou negligenciada. As prisões encontram‐se habitualmente sobrelotadas22,43,44. Os últimos dados disponibilizados pelo Centro Internacional de Estudos Prisionais mostram taxas de ocupação, em alguns países, a rondar os 300% da lotação oficial8.
Adicionalmente, em prisões desprovidas de um sistema eficaz de rastreio médico à admissão existe a possibilidade de prisioneiros bacilíferos serem colocados em celas coletivas. Por outro lado, durante o tempo de pena as reativações tuberculosas são quase ubíquas entre a comunidade encarcerada35. As celas habitacionais albergam grande número de detidos que se misturam durante o dia com detidos de outras celas em espaços confinados, proporcionando um contacto próximo e prolongado22,19,45. Além da sobrelotação, as celas ou camaratas são insuficientemente ventiladas, sombrias e com alto valor de humidade21. Mesmo quando existem janelas, os reclusos em países com invernos rigorosos podem nunca abri‐las devido à falta de aquecimento das celas35, o que promove a viabilidade de partículas infeciosas aerossolizadas em suspensão22,32,44,46.
As condições de saneamento básico e instalações sanitárias são habitualmente insuficientes e de escassa manutenção e, de modo geral, as práticas de higiene são pobres. O «balde higiénico» em celas continua a existir em muitas partes do mundo, tal como as frequentes interrupções no acesso a água corrente ou aquecida21.
A desnutrição é um outro problema prevalente. Além da entrada de sujeitos subnutridos no sistema, em prisões de países desfavorecidos a dieta fornecida é frequentemente insuficiente, mal conservada e desequilibrada. A desnutrição exercerá maior efeito deletério47 naqueles à partida mais suscetíveis à doença nesse cenário ideal de contágio, ou seja, os mais fracos, os previamente doentes e os de categoria hierárquica inferior35.
Além dos fatores de risco dos reclusos, Wong et al.43 apuraram como elementos facilitadores da transmissão da TB a sobrelotação, a má ventilação e o alto turnover de indivíduos. Já Lobacheva et al48 relacionaram o risco de desenvolver TB com: o alto número de indivíduos por cela, a inexistência de roupa da cama individual, o pouco tempo de recreio ao ar livre, toxicodependência, más condições habitacionais prévias e baixo rendimento. O grupo apontado como de maior risco é constituído pelos reclusos do sexo masculino com idades superiores aos 30 anos, imigrantes, com escolaridade inferior a 5 anos e encarcerados há menos de 2 anos17,36.
Em geral, as condições de vida diária na prisão promovem a doença. As comorbilidades mais encontradas em prisões mundiais foram: doença mental, hepatopatia, malária, diarreia crónica, escabiose, complexo relacionado com a síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA), miocardiopatia, parasitoses, sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis49‐51. Apesar da facilitação do processo de adoecimento, em alguns países é difícil obter uma taxa de mortalidade prisional fidedigna dado o enviesamento gerado pela subnotificação e pela libertação seletiva dos indivíduos mais gravemente doentes21.
O consumo de drogas ilegais é comum e o material injetável é utilizado em condições de improvisamento e conspurcação. Os reclusos são vulneráveis não só ao poder das autoridades oficiais, mas também às exigências de outros reclusos mais agressivos ou poderosos. O contacto sexual pode ocorrer de forma forçada ou voluntária, ou ainda sob a forma de favor2. Por outro lado, a disponibilização de preservativos é limitada e o seu uso diminuto35. Sendo a infeção VIH o mais importante fator de risco na progressão de infeção para doença tuberculosa52, estudos em prisões americanas relataram já prevalências de VIH de 2,1‐18,0% em homens e de 2,7‐26,3% em mulheres37,53,54. Porém, percentagens assustadoramente superiores foram já relatadas em contexto de surtos prisionais de TB55. A seroprevalência de VIH em prisões europeias e brasileiras apresentou‐se entre os 0,001‐12,8%14 e os 4,8‐7,2%, respetivamente56.
A forte inter‐relação entre condições prisionais inadequadas, TB e VIH complica extraordinariamente o sucesso dos programas de controlo. Sob uma lógica subsocietária de violência e dureza entre pares, onde a coação e o castigo físico são comuns, as condições de stresse físico e mental promovem a deterioração do estado de saúde e da competência imunitária dos reclusos, facilitando a reativação de infeção latente ou suscetibilizando‐os para reinfeções2.
O impacto da estratificação hierárquica reclusaConceptualmente a prisão é um espaço de confinamento forçado de grupos desenquadrados que promove a demarcação primária de 2 grupos opostos: o contingente de guardas e demais funcionários prisionais, e os reclusos. Como sublinham Diuana et al45, aos primeiros cabe o papel restrição e manutenção da ordem, enquanto os segundos tentam opor‐se à restrição da sua liberdade e proteger ao máximo a abrangência da sua esfera de decisão, dando espaço à criação estereótipos hostis e uma aculturação de papéis binomial. Porém, a dinâmica relacional numa prisão não é totalmente bipolarizada. Entre a massa de reclusos ocorre também o estabelecimento de uma estratificação interna conducente a uma organização em fações/grupos com subculturas distintas. Este fenómeno acarreta a aceitação de um conjunto de códigos de conduta no seio destes subgrupos e conduz a uma realidade de permanente equilíbrio instável entre fações reclusas e entre estas e os guardas/administração prisional45.
Apesar de pequenas diferenças entre países, estas estruturas de poder paralelas são um denominador comum à maioria das prisões, podendo até ser mais poderosas do que a autoridade oficial. Podem mesmo ser fomentadas pela administração dado que o efeito dissuasor exercido por uma fação reclusa dominante sobre as restantes pode auxiliar na manutenção da ordem2,22. A própria distribuição reclusa pelas unidades internas da instituição prisional obedece frequentemente a filiações a grupos e fações criminosas existentes nas comunidades exteriores19.
Coninx e Reyes6,22,57 são autores de vários trabalhos sobre a dinâmica e estruturação destas hierarquias prisionais e sobre a sua repercussão potencial sobre as estratégias de controlo da TB e cuidados de saúde prisionais. A maioria dos estudos provém de populações prisionais da Europa de Leste e caraterizam particularmente bem as hierarquias reclusas nesses países. A dinâmica de poder organizacional é, ainda assim, muito semelhante entre prisões de diferentes regiões da Europa. Do estudo de muitas prisões de repúblicas ex‐soviéticas sabe‐se que os reclusos estão organizados num sistema subcultural de castas. Os chefes (blatniye) representam a casta superior e são normalmente criminosos profissionais. Segue‐se uma maioria silenciosa (muzhiki) de criminosos não‐profissionais que não detêm poder e aceitam a supremacia da classe anterior e o destacamento para a realização de tarefas obscuras. Na cauda hierárquica encontra‐se a «escória» (petukhi), constituída pelos desprezados da sociedade prisional: homossexuais, violadores, pedófilos, renegados dos outros grupos e quem tiver infringido as leis não‐oficiais da hierarquia prisional22. Esta última é a classe mais violentada, coagida e despojada de direitos básicos. Além do sistema de castas, a organização pode ainda obedecer a pressupostos raciais ou pertença a grupos delinquenciais rivais.
Globalmente, provou‐se que estas formas de hierarquia reclusa determinam desigualdade no acesso aos cuidados de saúde2, com várias implicações diretas na gestão da TB. O processo de seleção de reclusos para internamento e tratamento pode ser deturpado por tentativas de alguns reclusos influentes serem integrados em programas de tratamento, visando adquirir potenciais «regalias» como dieta reforçada, melhores condições de acomodação, menor nível de segurança, maior liberalização do direito a visitas, etc.2,22.
Foi reconhecido já o fornecimento de expetorações positivas provenientes de outros colegas, transportadas na mão ou mesmo dentro da sua boca, quando não lhes foi exigida a lavagem de mãos e exposição bucal prévias22. Por outro lado, alguns prisioneiros com TB bem informados podem tentar evadir‐se ou evitar ser admitidos a programa terapêutico apresentando expetoração negativa de prisioneiros saudáveis, temendo que o reconhecimento de TB ativa, particularmente se multirresistente, possa adiar a sua libertação2, ou então receando a estigmatização ou a passagem a regime de isolamento prolongado2,40. Reyes alertou para o fato de elementos da equipa de saúde prisional, frequentemente mal pagos e desmotivados, poderem tolerar trocas de amostras de expetoração após recebidos subornos de «chefes» ou reclusos abastados22. Ainda, o grupo de reclusos de cauda hierárquica pode ser coagido a não se identificar como sintomático sob pena de ser violentado. Reconheceu‐se também dificuldade na distribuição dos reclusos nas enfermarias prisionais, visto que a tentativa de misturar reclusos de diferente status ou fações nas mesmas divisões é habitualmente infrutífera dada a forte tendência ao reagrupamento hierárquico22.
Historicamente e em locais de maior escassez, paralelamente ao tráfico interno de tabaco, droga ou outros bens, chegou a registar‐se tráfico de medicação antibacilar18,22 que seria mesmo usada em algumas prisões como unidade de moeda2,59.
As equipas médicas que trabalham nas prisões têm graves dificuldades em levar a cabo a toma supervisionada. Os enfermeiros prisionais são confrontados com estratagemas forjados pelos reclusos para evitarem tomar a medicação, podendo a coação exercida sobre eles atingir proporções nefastas2,18,22.
Atualmente, e em especial nas prisões dos países ocidentalizados com economias de mercado e acesso facilitado a antibacilares, a situação não apresenta já estes contornos. Contudo, a presença de hierarquias paralelas é omnipresente e, invariavelmente, as prisões são realidades violentas onde regras não oficiais são impostas e se fazem cumprir pela força. É importante, pois, a noção das barreiras que a hierarquização entre os reclusos e as dialéticas de poder e influência colocam à aplicação das políticas para a saúde neste meio18,22,58, podendo interferir com decisões médico‐administrativas, com o diagnóstico atempado, com a admissão à enfermaria prisional, com a correta seleção de reclusos para tratamento e com a efetividade terapêutica22.
Outros obstáculos encontradosPara além do problema infraestrutural, do estilo de vida prisional e da influência da hierarquia reclusa, outros obstáculos específicos condicionando a implementação efetiva dos programas de controlo da TB têm sido identificados18,21,34,37,59,60.
Nível geral inferior de cuidadosOs encarcerados têm direito a usufruir de um nível equivalente de cuidados ao existente fora do sistema prisional2, porém, o paradigma da falta de financiamento agudizado pela pressão demográfica prisional exerce um efeito asfixiador sobre a qualidade dos serviços de saúde prisionais. Sob a habitual tutela do Ministério da Justiça, a saúde prisional raramente consegue implementar diretivas de saúde internacionais ou integrar estudos de intervenções59. Soma‐se ainda a dificuldade dos reclusos usufruírem de recursos médicos especializados ou hospitalização civil, reconhecendo‐se ainda alguma resistência por parte de alguns prestadores de cuidados da comunidade em cuidar de indivíduos percebidos como perigosos37.
Escassez de recursos e desmotivação das equipas de saúde prisionalAs infraestruturas e os meios de diagnóstico para a TB são muitas vezes inadequados e podem mesmo não se basear em larga escala na microscopia da expectoração34. Adicionalmente, a escassez infraestrutural obsta a que se consiga o isolamento respiratório dos casos suspeitos ou confirmados e a que camas de internamento correcionais possam não funcionar como alas de saúde56. Em algumas prisões os registos médicos são mínimos e não informatizados e o corpo médico prisional é insuficiente, não raras vezes mal treinado e mal remunerado – o subsídio de risco, quando existe, é irrisório. A desmotivação é frequente entre a equipa de saúde, mais compreensível ainda por a sua atividade ser exercida num ambiente hostil e imprivisível15,35.
Existe ainda muito pouca informação disponível sobre o ratio médico‐recluso em prisões63. Glaser37 alerta para a dificuldade do recrutamento de médicos face ao montante remuneratório oferecido, ausência de benefícios, ambiente pouco atrativo e localização extraurbana de muitas prisões. Todos estes fatores contribuem para serviços de saúde ineficazes, potenciando os diagnósticos tardios e casos indetetados15,35.
Auto e hetero subvalorização dos sintomasNum quotidiano violento onde a preocupação primordial é de índole sobrevivencial, a subvalorização de sinais e sintomas de doença tende a verificar‐se35. Outras vezes é o controlo exercido pela própria hierarquia reclusa oficiosa que limita o acesso a cuidados clínicos a alguns detidos45.
Como sublinham Sanchez et al34, a subcultura prisional de afirmação pela dureza e imagem de força define padrões de comportamento e expectativas entre pares, sendo importante a proteção gerada pelo pertencimento grupal. O reconhecimento de TB transporta a assunção de fragilidade ou de pouca robustez e o risco sempre presente de estigmatização pelos elementos da sua fação. Isto propicia a frequente ocultação de sintomas2,40.
O ambiente de tensão impele os guardas penitenciários a valorizarem prioritariamente a problemática da sua segurança imediata acima das questões de saúde dos detidos45. Por motivo de os reclusos poderem não apresentar sintomatologia verificável ou por considerarem a saúde destes como um «privilégio», os guardas de ala podem limitar o acesso aos serviços de saúde favorecendo atrasos diagnósticos2,40,45.
Enviesamento da relação médico‐doente e ação médica essencialmente prescritivaO acesso a cuidados médicos apropriados em contexto prisional é restringido devido ao imperativo de segurança e à natureza coerciva do sistema. Nesse meio, onde a distinção de comportamento voluntário de involuntário é difícil, muitos atos são de índole intimidatória ou coativa, sendo igualmente difícil garantir a confidencialidade37.
Em muitos países os guardas prisionais atuam repressivamente obrigando, pela força, a aceitação do tratamento. Isto, colidindo com o direito de exercício de autonomia responsável para a saúde60, torna as ações de saúde eminentemente prescritivas34,45.
Por outro lado, o vínculo de confiança entre o doente e o profissional de saúde é dificultado desde logo pela ausência do direito à livre escolha de médico e enfermeiro. Contrariamente, também o próprio médico é obrigado à prestação de cuidados a todos os reclusos sem exceção. Assim, o primado da segurança e o funcionalismo judiciário acabam por trazer uma «terceira dimensão à habitual relação bilateral médico‐doente»60.
Descontinuação terapêuticaA má adesão terapêutica é da maior relevância dentro do sistema penitenciário4. Encarcerados durante longos períodos num espaço intrinsecamente hostil, os reclusos não são facilmente persuadidos pelo argumento de saúde pública do perigo da farmacorresistência2 e vários dos comportamentos já focados ameaçam ainda mais a sua adesão terapêutica2,40. Adicionalmente, logo que ocorre resolução sintomática verifica‐se frequentemente uma quebra motivacional em manter a toma de antibacilares em detrimento de preocupações mais imediatas2.
Outro problema reside na medicação autoprescrita ou trazida por familiares, que propicia interações medicamentosas e efeitos adversos que poderão conduzir à interrupção terapêutica4.
Insuficiente articulação com as entidades públicas de saúdeA relação entre os vários EP e entre estes e o Serviço Nacional de Saúde (SNS) é de grande disparidade. Na necessidade de recorrer a urgências ou consultas especializadas em unidades hospitalares públicas preside frequentemente uma lógica de «desembaraço momentâneo»61. A descoordenação entre a administração e serviços médicos prisionais e as unidades de saúde comunitárias tem graves consequências. Por altura da libertação, quando se inicia o processo de ligação ao dispensário de TB ou centro de saúde local, são frequentes as faltas de comparência a consultas nessas unidades de saúde e a cedência de moradas erradas propiciando cursos terapêuticos incompletos4,5. Num estudo, apenas 26,3% dos reclusos libertados com TB ativa compareceram voluntariamente junto dos dispensários para completarem o tratamento, tendo as principais barreiras encontradas sido a falta de abrigo, o desemprego, o alcoolismo e a toxicofilia62. Também a este nível Wong43 reportou taxas de cura no sistema prisional 10‐20% inferiores à homóloga para a população local, maioritariamente resultantes da reduzida adesão terapêutica no período pós‐libertação. Num estudo com reclusos azeris recém‐libertados 13% não completaram tratamento e 11% faleceram58.
A questão da tutela da saúde prisionalNa esmagadora maioria dos países o ministério responsável pelos serviços de saúde prisionais não é o Ministério da Saúde, mas sim o Ministério da Justiça ou da Administração Interna. Em regra, estes apresentam uma diferente conceção de prioridades e menor experiência para a organização e resolução das insuficiências dos serviços de saúde prisionais. Esta impreparação, somada a restrições orçamentais, impede a implementação de políticas reformistas no sistema de saúde prisional e promove uma inevitável priorização da segurança em detrimento da saúde, resultante de um paradigma de ação claramente orientado para a esfera jurídico‐legal15,35.
Em países da União Europeia como a Inglaterra, França e Noruega a saúde prisional encontra‐se já tutelada pelo Ministério da Saúde. Nos restantes países a coordenação dos serviços de saúde prisionais com as instituições comunitárias e, nomeadamente, com o plano nacional de controlo da TB encontra‐se dificultada4. A transferência tutelar possibilita uma melhor resposta às carências específicas dos reclusos no campo da assistência médica, bem como às necessidades dos profissionais de saúde prisional59. Acrescidamente permitiria o distanciamento deontológico entre médico e aparelho penitenciário e maior facilidade em recrutar e fixar quadros técnicos para os serviços de saúde prisionais59.
A permeabilidade do sistema prisionalAs prisões são importantes tanto na origem como na transmissão da TB25. Contrariamente ao expectável, existe uma grande dinâmica de fluxo tanto dentro do próprio sistema prisional como entre este e a comunidade livre. Esta permeabilidade traduz‐se nos movimentos de transferência de reclusos entre cadeias de detenção temporária para instituições penais, entre diferentes prisões, entre prisões e tribunais, entre prisões e unidades hospitalares prisionais ou civis, e mesmo entre os blocos de segurança de uma mesma prisão15,35. Por altura da suspeita de um caso índice de TP frequentemente muitos prisioneiros expostos já se movimentaram dentro da instituição ou foram transferidos ou libertados durante o tempo estimado de infecciosidade. Essa transmissão pode ocorrer em celas‐dormitório, ginásios, oficinas, cantinas e áreas de visitas11.
Além do potencial de eclosão dentro de uma prisão, é igualmente possível a transmissão de TB à comunidade por parte de reclusos recém‐libertados, conforme o atestam numerosos estudos32,37,63–67. Um caso ilustrativo foi reportado nas prisões do estado de Nova Iorque onde um grupo de 12 reclusos com TB‐MR foi transferido entre 20 prisões originando um perigoso surto5. Em alguns países muitos doentes terminais, alguns com TB potencialmente MR, são libertados através de decretos amnistiais68.
A vertente de oportunidadeO parque prisional é potencialmente um espaço metamorfósico para a TB visto que, facilmente, é local do contágio, concentração, disseminação e potencial exportação da doença4. Porém, o auditório recluso representa também uma flagrante oportunidade para as políticas de controlo surtirem impacto significativo em termos de saúde pública. Provindo a maioria dos reclusos de segmentos populacionais com estilos de vida desajustados e que oferecem maiores dificuldades de identificação e tratamento da TB na comunidade exterior, o encarceramento permite circunscrever e visar terapeuticamente este grupo de alto risco, sob um regime terapêutico supervisionado adjuvado, programas de desintoxicação e de educação para a saúde6,34,37,38,69. Mais do que uma ameaça de contrair doença, o tempo de reclusão deverá proporcionar a oportunidade de diagnosticar e tratar estes indivíduos com benefício repartido para o sujeito e comunidade em geral37,70.
Necessidades e medidas: as 2 facesComo resposta às necessidades existentes, a OMS e o Comité Internacional da Cruz Vermelha elaboraram diretivas para o controlo da TB em ambiente prisional2. Também o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) renovou recentemente linhas de orientação71 que, por escassez de ensaios controlados sobre TB prisional, refletem maioritariamente recomendações de peritos assentes na aplicação dos conteúdos DOTS e DOTS‐Plus com inclusão de atividades ajustadas a essa realidade específica71.
Atualmente, a operacionalização de estudos de intervenção em prisões permanece difícil e o recurso a modelos matemáticos para simular a dinâmica da TB e avaliar o impacto de determinadas medidas tem sido uma estratégia utilizada28.
Para o controlo da TB, assegurada a pêntade elementar DOTS2,71, o painel do CDC defende a necessária adoção de um conjunto de medidas primordiais: identificação precoce de reclusos com TB através de rastreio à entrada e com caráter periódico, associada a um eficiente rastreio de contactos; tratamento rigoroso e bem‐sucedido da TB ativa e da infeção latente; uso apropriado de secções de isolamento respiratório, medidas de engenharia para controlo ambiental e material de proteção individual; plano de libertação coordenado com entidades de saúde comunitárias locais; e avaliações programáticas regulares em colaboração com os programas de controlo nacionais72.
Não obstante, a medida mais primordial passará, antes de mais, pelo melhoramento geral das condições prisionais2. Os Ministérios da Justiça deverão desencadear reformas prisionais focadas na resolução do problema da sobrelotação, no melhoramento de condições higieno‐sanitárias e das infraestruturas dos serviços de saúde prisionais, assim como incentivar o recrutamento de profissionais de saúde para a carreira prisional. Reconhecendo a pouca sensibilidade governativa para as carências de saúde da população reclusa, desde 1998 que o Conselho Europeu de Ministros recomendou o fortalecimento do papel do Ministério da Saúde na área da saúde prisional72, ainda que somente um grupo minoritário de países tenha procedido à transferência tutelar dos cuidados de saúde prisionais.
Genericamente, a deteção de casos de TB numa prisão pode fazer‐se de forma trimodal: por deteção à entrada através de rastreio, por investigação de reclusos doentes reportadamente sintomáticos e por meio de rastreio ativo periódico. O rastreio sistemático à admissão desempenha um importante papel na deteção precoce de casos2,73. Num estudo europeu14, cerca de 90% dos 22 países participantes afirmavam efetuar rastreio ativo dos reclusos à entrada nas suas prisões, ao passo que 81,8% executavam investigações de contactos.
Relativamente à escolha metodológica há autores que defendem que o tipo de rastreio deve depender da incidência local, exequibilidade e nível de custo‐efetividade74. A OMS preconiza atualmente a deteção contínua de prisioneiros sintomáticos através de rastreio à entrada e em intervalos regulares, utilizando inquérito clínico, radiografia de tórax e microscopia da expectoração4. Já as recomendações do CDC71 fazem depender a metodologia de rastreio à entrada do nível de risco do estabelecimento prisional ser considerado «mínimo»/«não mínimo» (casos no ano anterior, proporção de reclusos com fatores de risco e de reclusos imigrantes de países endémicos). No primeiro caso, todos os novos reclusos devem ser inquiridos sobre sintomas – tosse superior a 3 semanas, hemoptise, febre com duração superior a um mês, perda ponderal no último trimestre, sudorese noturna – e antecedentes de TB ativa. A presença de um destes deve conduzir à alocação do recluso numa unidade de isolamento respiratório até posterior investigação com intradermorreação (IDR) ou QuantiFERON®, microscopia da expetoração e radiografia de tórax40. Por seu lado, em prisões de risco «não‐mínimo», todos os reclusos assintomáticos devem, além do inquérito clínico‐anamnésico, efetuar IDR, QuantiFERON® ou radiografia de tórax24,70. Em infetados VIH deve ser sempre salvaguardada a realização de radiografia71.
Muito debate decorreu relativamente à melhor metodologia a associar ao inquérito clínico. Foi reconhecida a utilidade metodológica e custo‐efetividade da radiografia de tórax em ambientes prisionais de alta incidência4,75,76. Esta consegue aumentar a deteção de casos de TP, porém, isoladamente não permite identificar sujeitos com TB latente. A sua utilização deve ter lugar em instituições prisionais que albergam grande número de indivíduos por períodos curtos de tempo e com grande expressão de fatores de risco4. Contudo, a sua aplicabilidade é condicionada pela disponibilidade de meios técnicos na instituição, tempo de permanência dos reclusos e grau de prontidão na leitura radiográfica. Todos os reclusos com alterações sugestivas devem ser alvo de exames micobacteriológicos de expetoração.
Relativamente aos reclusos infetados por VIH, dada a alta taxa de falso negativos da IDR e a possibilidade de radiografia negativa, devem sempre submeter expetoração para baciloscopia72. Contrariamente, se a IDR ou o QuantiFERON® forem escolhidos como método associado ao inquérito clínico, todo o indivíduo assintomático com resultado positivo deve realizar radiograma de tórax e submissão de expectoração71.
Relativamente ao rastreio periódico sistemático, foi provada a sua custo‐efetividade em prisões altamente endémicas, conseguindo nestes cenários decréscimos mais rápidos da taxa de incidência24,72. Estudos de modelação matemática mostraram que a associação de rastreio radiológico à entrada associado a rastreio radiológico anual em massa surte impacto positivo na taxa de prevalência prevista de TB devendo, como tal, ser considerada em prisões altamente endémicas72. Todavia, dada a sua difícil generalização4,24, este rastreio deve realizar‐se com uma regularidade a definir localmente consoante os meios técnicos e nível endémico existentes71.
Outra importante componente assenta na estratégia de investigação de contactos. Esta visa interromper a cadeia de transmissão, através da identificação, isolamento e tratamento de reclusos com TB ativa ou TB latente, contagiados a partir de um caso índice71. Deve ser iniciada perante casos suspeitos/confirmados de TP, laríngea ou pleural com baciloscopia positiva, nas quais se decidiu iniciar terapêutica antibacilar. Os contactos identificados devem ser estratificados em patamares de duração/intensidade da exposição, iniciando‐se a investigação pelos indivíduos em maior risco e todos os VIH seropositivos recorrendo‐se a entrevista sintomática e IDR, suspendendo‐se a expansão da investigação quando um grupo manifestar ausência de infeção71. Todos os reclusos sintomáticos ou com QuantiFERON® ou IDR positiva devem realizar radiografia. A averiguação de contactos pode ser agilizada pela colocação imediata dos casos suspeitos em isolamento respiratório, colheita imediata de expetoração com resultado da baciloscopia em 24h, recurso a testes de amplificação de ADN em todas as expetorações positivas, uso de meios de cultura de crescimento rápido e início pronto de investigação em camadas de risco14. Apesar das recomendações, as atividades de rastreio e investigação de contactos continuam a não ser aplicadas em prisões de países de menores recursos77, assim como na generalidade dos centros de detenção temporária devido à carência de efetivos e ao alto turnover da população reclusa4.
As equipas de saúde prisionais devem ter acesso universal a uma rede de laboratórios que assegurem microscopia de qualidade certificada4. Contudo, em muitos locais a baciloscopia não é efetuada ou então é executada com má qualidade. Foi recomendada a criação de uma rede de unidades com valência técnica para microscopia da expetoração no interior das prisões centrais, garantindo cobertura a prisões regionais. Em alternativa, poderão empreender‐se programas de colaboração entre laboratórios civis e as equipas de saúde prisionais. Todo o processo de submissão de expetoração deve ser observado e supervisionado2,4,40 em quarto de isolamento respiratório ou ao ar livre71.
A atuação terapêutica deve ser regida por profissionais de saúde adequadamente formados, em estrita uniformidade com as orientações internacionais2. Ao contrário da terapêutica universal da TB ativa, o tratamento de todos os reclusos com TB latente é considerado uma estratégia inexequível em meios de alta prevalência. Contudo, é invariavelmente preconizado para grupos de risco principais como infetados VIH, contactos de casos bacilíferos e filhos de reclusas infetadas2,38.
Relativamente à completude do tratamento, sabe‐se que reclusos não sentenciados têm um tempo de custódia variável. Ocasionalmente poderá ser demasiado curto para que seja completado o tratamento, devendo as autoridades assegurar que este é cumprido quer o sujeito seja libertado ou sentenciado2,34. De outra forma, se estiver em causa uma transferência de penitenciária, é fulcral que pelo menos a fase inicial de tratamento seja completada antes de o recluso ser transferido34.
Um dos pilares da extensão DOTS passa pela promoção de programas de colaboração para tratamento da sindemia TB/VIH. Além da disponibilização universal de testes de deteção, devem ser implementadas medidas como: sessões educativas, oferta ininterrupta de preservativos, disponibilização e renovação de kits de higiene pessoal, programas de troca de seringas e recrutamento para programas de desintoxicação com terapêuticas de substituição supervisionadas2,38.
Ao nível do controlo ambiental do risco para TB preconiza‐se a implementação de um pacote de medidas. Administrativamente, passam pelo diagnóstico precoce e isolamento dos casos infeciosos em condições de isolamento respiratório4 ou transferência para unidade com essa dotação71. Existem atualmente publicações técnicas77 para implementação de medidas de controlo ambiental assentes em soluções de engenharia e planificação estrutural. A ventilação deve ser concebida de forma a renovar e controlar fluxos de ar dos quartos direcionando‐os da entrada dos corredores para os quartos e destes para o exterior, através de sistemas de pressão negativa que devem ser testados regularmente através de testes de fumo. A depuração aérea de espaços infeciosos deve reger‐se por critérios técnicos publicados e recorrer a filtros de ar particulado de alta eficiência ou a irradiação germicida com ultravioletas71. Na enfermaria do hospital prisional devem existir janelas grandes com boa exposição solar e nos quartos para colheita de expetoração e laboratórios as portas devem ser mantidas fechadas e as janelas abertas2. Por último, as medidas de proteção individual como luvas, batas e máscaras faciais com e sem viseira e com filtro de ar particulado (modelo P1) devem ser usadas quando as medidas anteriores não alcancem uma redução aceitável do risco infecioso78. As máscaras faciais cirúrgicas (modelo N95/P2), reduzindo apenas parcialmente o risco de contaminação, na carência de melhor solução devem ser utilizadas em todos os casos suspeitos/confirmados de TB para qualquer deslocação intraprisional ou exterior2.
Todos os casos intraprisionais de TB‐MR devem ser corretamente identificados e tratados de acordo com as orientações da OMS, com medicação aportada do Comité de Luz Verde e dos Ministérios da Saúde. Sabe‐se, no entanto, que em muitas partes do mundo este tipo de medicação é utilizado por critério prescritivo pessoal fora dos planos nacionais de TB2,4,79.
O sucesso da continuidade de cuidados passa incontornavelmente pela cooperação com as entidades locais de saúde pública. A complementaridade entre programas é, desde logo, facilitada por um sistema eficaz de notificação dos casos prisionais para o Programa de Controlo Nacional, e uma base de registo comum com o setor civil4. Tal evitaria os falíveis e retardatários canais de comunicação da administração prisional central para o Ministério da Saúde e agilizaria a investigação de contactos na comunidade71. Indispensavelmente, os EP devem desenvolver planos de libertação de casos confirmados ou suspeitos de TB, assim como de casos de infeção latente com alto risco de progressão para doença. Objetando ao sucesso da reinserção, tais planos devem albergar componentes como: programas de desintoxicação, diagnóstico/tratamento de doença mental, formação profissional e prevenção de reincidência, informação pessoal detalhada, prática da TOD, calendarização de consultas de atendimento na comunidade com eventual atribuição de incentivos ou subsídios, e o envio dos registos clínicos para o clínico que seguirá o doente na comunidade4,71,79.
Por último, o recrutamento de profissionais de saúde seria facilitado pelo melhoramento salarial, atribuição de subsídios educacionais, salvaguarda de tempo para dedicação ao ensino, programas de cuidado infantil, flexibilidade de horário e desmistificação da ideia de sujeição permanente a risco de integridade física34. Para fazer face à tendencial rejeição das carreiras em saúde prisional, as escolas médicas deveriam ser envolvidas em experiências educacionais na saúde prisional e deveriam ser implementados estágios no âmbito do internato médico de algumas especialidades visando uma maior atratividade pelo trabalho em saúde prisional75.
A realidade portuguesaA taxa de incidência nacional foi de 21,6x105 habitantes em 2012, mantendo‐se Portugal como o único país de incidência intermédia na Europa Ocidental. A prevalência de coinfecção por VIH mantém‐se como uma das mais elevadas da União Europeia (14,5%)80.
No final de 2012 o parque prisional português era constituído por 13.614 reclusos73, dos quais 19,1% eram imigrantes sobretudo de Cabo Verde, Brasil, Angola e Guiné‐Bissau. É globalmente uma população masculina (94%), maioritariamente pertencente ao escalão etário dos 19‐39 anos (14,5%)81, com uma taxa de analfabetismo global de 3,6%. A prevalência global de VIH era de 10,2% em 200682,83 e tem vindo a diminuir84,85. Em 2003, aproximadamente 46% dos reclusos eram usuários ativos de drogas61.
A lotação geral do parque prisional foi em 2012 de 112,7%, tendo a sobrelotação atingido 40% dos estabelecimentos centrais e 74% dos estabelecimentos regionais. Os mais destacados eram o EP de Setúbal (taxa de ocupação de 243%) e o de Viana do Castelo (207%)86. O parque penitenciário português foi já considerado como não tendo «unidades em número e lotação suficientes, comportando alguns edifícios muito degradados e sem condições adequadas de higiene e salubridade»87. Apesar da obrigatoriedade legal (Decreto‐Lei n.° 265/79) do regime de celas individuais, bem como a proibição de superlotação, desde 1985 que a taxa de ocupação ultrapassou os 100%88. Segundo Boaventura Sousa Santos, «os estados não têm entendido, como essencial, a renovação e o melhoramento dos EP, mantendo em funcionamento estabelecimentos desenhados e projetados para otimizar o desempenho da vertente de encarceramento»89.
Em 2002 e 2006, a taxa de notificação de TB na população prisional foi de 275/105 e 864/105, respetivamente14,82. O último valor representou um risco 20 vezes superior ao observado a nível nacional nesse ano. Em 2012, os 65 casos verificados de TB na população reclusa traduziram uma subida acentuada face a anos anteriores (fig. 2) e correspondem a uma taxa de incidência prisional de 477x105, 22 vezes superior à da população geral80.
Evolução dos casos de TB notificados em meio prisional.
Fonte: Programa Nacional de Luta Contra a Tuberculose. Ponto de Situação Epidemiológica e Desempenho 2013. Direção Geral de Saúde81.
Genericamente, a prestação de cuidados de saúde é assegurada pelo Hospital Prisional S. João Deus (HPSJD) e pelas unidades de saúde existentes nos EP, existindo enfermarias em 7 EP conferindo alguma cobertura regional. O acesso ao SNS ocorre apenas em última instância. Relativamente à capacidade de isolamento respiratório, só recentemente e apenas no HPSJD foram instalados quartos com pressão negativa90. Todos os EP têm assistência de clínica geral e enfermagem, apesar do apoio médico ser feito por vezes em 2 períodos semanais. Em regra, a equipa médica não integra a carreira prisional, sendo contratada por intermediação de empresa de trabalho temporário91. Esta forma de paliação da carência de profissionais conduz à menor probabilidade de serem promovidas reformas nesses serviços e a problemas a nível dos pagamentos, não promovendo a vinculação em continuidade ou níveis motivacionais positivos59. Conhecendo‐se a necessidade de maior número de médicos e enfermeiros92, foi já proposta a criação de uma forma de medicina prisional como especialidade médica distinta59.
Relativamente à dimensão higieno‐sanitária, foi paradigmático que o recurso ao balde higiénico no sistema prisional português apenas foi abolido em setembro de 200992. Um outro aspeto já reprobatoriamente salientado prende‐se com o facto de, em alguns locais, a medicação ser ainda distribuída pelos guardas prisionais ou outros elementos não pertencentes às equipas de saúde prisionais61,92, o que pode comprometer a efetividade terapêutica dos programas de TB. É também preocupante que haja EP em que são os guardas de ala a vistoriarem a toma da medicação e a escrutinarem as queixas de saúde dos reclusos numa forma de «pré‐triagem»59,92.
Relativamente ao rastreio de TB, apesar das melhorias verificadas nos últimos anos, constata‐se que o rastreio admissional é por vezes protelado até 3 semanas após admissão93 e que o rastreio sistemático é realizado com periodicidade não‐uniforme e, por vezes, dirigido somente a grupos de risco61.
À semelhança de outros países, a existência de hierarquias não‐oficiais detentoras de poder assinalável no interior do sistema prisional português foi já assumida por algumas autoridades, entre as quais a DGSP93,94, sendo que o poder informal entre os reclusos parece encontrar‐se adstrito a criminosos profissionais com ligações ao narcotráfico95.
Recentemente, o grupo de trabalho para o Plano de Ação Nacional para Combate à Propagação de Doenças Infecto‐Contagiosas em Meio Prisional constatou existirem programas de intervenção para toxicodependentes e disponibilização de preservativos em todos os EP, embora geralmente a pedido. Igualmente, a distribuição de lixívia para desinfeção de material para práticas de risco ocorre em 92% dos EP. Sessões educativas sobre doenças infeciosas e toxicodependência são empreendidas ocasionalmente, porém, o material informativo é escasso e desadaptado ao meio prisional. Este grupo de trabalho renovou recomendações para que se possibilite um acesso constitucional equitativo à saúde, uma melhor dotação dos serviços de saúde prisionais e uma definição de centros extraprisionais regionais de referência para encaminhamento facilitado dos reclusos quando necessário. Foi igualmente sublinhada a necessidade de formação contínua das equipes clínicas, de implementação contínua de medidas de redução de risco infecioso, do acesso a informação independente referente à situação sanitária em meio prisional e a necessidade também de assegurar sempre o diagnóstico precoce e tratamento da TB96.
O processo de intenção para a transferência da responsabilidade dos serviços de saúde prisionais para a alçada do Ministério da Saúde até 2010 foi anteriormente assumido pelas autoridades competentes, porém, sem reflexo prático até à data. Tal medida seria imprescindível para o reenquadramento dos reclusos no SNS92.
O estudo do espaço prisional português tem percorrido recentemente os primeiros degraus, propulsionado pela opinião pública contestatária face ao reconhecimento dos constrangimentos da vida prisional e à iniquidade no acesso à saúde. O primeiro porta‐voz institucional foi o Provedor de Justiça através da publicação de 3 relatórios sobre o sistema prisional61,97,98. A Comissão de Estudo e Debate da Reforma do Sistema Prisional (CEDERSP) defendeu que «o problema do nosso sistema prisional continua a não ser, no essencial, um problema de má legislação, mas antes um problema de falta de visão global da estratégia adequada à execução das leis elaboradas, falta de vontade político‐administrativa, falta de organização e de meios humanos, técnicos e financeiros, mas também falta de empenhamento da própria sociedade no seu conjunto»87.
ConclusãoÉ urgente garantirem‐se melhores serviços de saúde prisionais. Em vastas regiões do mundo a saúde prisional é vista ainda como uma concessão da administração penitenciária. A promoção da saúde, particularmente a luta contra a TB nas prisões, implica uma reflexão conjunta dos atores sobre estratégias adaptadas às especificidades inerentes a um meio altamente estigmatizante.
O aperfeiçoamento dos programas prisionais de controlo da TB deve focar obrigatoriamente todos os aspetos da vida em prisão e merecem ser acompanhados de uma reforma geral prisional59,61,87 e de um reenquadramento programático na esfera da clínica geral e saúde pública37,71. Medidas fulcrais passam pelo necessário reforço do financiamento, melhoria das condições de encarceramento, melhores planos de coordenação com os serviços de saúde comunitários, uma aproximação às escolas médicas e mais estudos epidemiológicos de intervenção sobre a TB na população prisional4,19,37,71,74.