O número de procedimentos cirúrgicos realizados em todo o mundo anualmente é de cerca de 230 milhões de intervenções 1, sendo a taxa global de mortalidade hospitalar de 0,4 a 0,8 % e cifrando-se o risco de complicações importantes entre 3 e 17 % 2,3. Como é sabido, dez em cada cem internamentos hospitalares complicam-se por um qualquer erro 4, pelo que não nos surpreende que os erros ocorridos em torno da prestação de cuidados cirúrgicos assumam uma particular relevância. Com efeito, cerca de 48 % de todos os eventos adversos estão relacionados com a cirurgia e a anestesiologia, ocorrendo em blocos operatórios, e afectando 2 % de todos os internamentos hospitalares. Estes eventos seriam evitáveis em 30 a 50 % dos casos 5. Os tipos de erros possíveis são diversos, desde a simples perturbação do fluxo operatório, sem consequências para o doente, até às mais graves complicações, com produção de danos irreversíveis ou mesmo de morte, abrangendo a actividade cirúrgica propriamente dita, a actividade anestésica e as complicações directas de ambas. Neste artigo de revisão abordaremos os eventos adversos mais comuns relacionados com a cirurgia, os seus mecanismos de ocorrência, bem como as formas de os evitar ou, de minimizar as suas consequências.
A actividade num Bloco Operatório é uma prática complexa, interdisciplinar, com forte dependência da actuação individual (human technical skills), exercida no seio de organizações complexas, onde os factores de equipa (human non technical skills) e os factores organizacionais (system) desempenham um papel fundamental, numa constante interacção entre humanos, máquinas e equipamentos. A actividade envolve tarefas complexas, plenas de variação e de incerteza, exercidas em condições ambienciais dominadas pela pressão e pelo stress 6,7.
A determinação de um qualquer resultado médico ou cirúrgico é função da complexidade da tarefa a realizar (dificuldade técnica, idade, co-morbilidade, tipo da doença, estádio de avanço, factores técnicos anatómicos ou outros factores de dificuldade). Também depende da performance (desempenho) individual, da equipa e da instituição, esta última envolve factores técnicos humanos (human — technical)7,8 e factores de equipa (human — non technical) 8,9 e factores da organização ou sistema (equipamentos, protocolos, cultura local de segurança, volume de casos e experiência, etc...). Depende ainda das condições locais de trabalho — recursos, staff, urgência, etc... 6,9-11, finalmente, depende ainda de um factor de variação aleatória — o acaso. O acaso é determinado pela natureza relacional de complexidade dos actos médicos em equipas muito interligadas, confere um factor inesperado ao resultado, mesmo quando tudo se fez bem. O acaso produz-se, assim, a partir das relações interdependentes do fenómeno biológico, da interacção com as pessoas e os sistemas. Todos estes determinantes actuam num Bloco Operatório e produzem um maior ou menor grau de ocorrência de eventos, conforme o nível ou ambiente local da cultura segurança. Cultura de segurança será, não só a percepção, como os comportamentos individuais e organizacionais sobre as matérias de segurança que envolvem os doentes 12.
Dividiremos os eventos no Bloco Operatório nas categorias que se seguem, tomando embora em consideração que nos Blocos Cirúrgicos poderão também ocorrer erros, de outras categorias, nomeadamente relacionados com fármacos, com fluidos de transfusão e com a utilização de dispositivos médicos, e serão ainda gerados erros de diagnóstico, por má etiquetagem ou extravio de produtos para análise, entre outros.
— Erros relacionados com a Anestesiologia
Pratica anestésica directa;
Fármacos e transfusões;
Equipamentos.
— Erros relacionados com o acto cirúrgico
Cirurgias no lado errado, no órgão errado ou no doente errado;
Corpos estranhos retidos durante uma cirurgia;
Erros de transição — envio de specimens para o laboratório, transferências para a Unidade de Recobro ou de Cuidados Intensivos.
— Complicações Cirúrgicas
Infecção Cirúrgica;
Tromboembolismo Venoso.
Erros relacionados com a Anestesiologia
A primeira reunião sobre segurança da anestesia deu-se nos EUA em 1984 e daí em diante nunca mais a prática deixou de ser regulada e melhorada. Algumas medidas foram verdadeiramente seminais para essa melhoria e levaram a Anestesiologia a ser a mais segura prática médica:
— Uso de Oxigenador de pulso em todos os doentes sedados ou anestesiados;
— Capnografia em todos os doentes ventilados;
— Melhoria na segurança de ventiladores e máquinas de anestesia — circuitos, alarmes, etc...);
— Treino de staff e programas de residência, conferências de mortalidade e morbilidade anestésica;
— Adopção de "guidelines" e protocolos, divulgados pelas mais importantes sociedades profissionais, constituem hoje um importante referencial para os profissionais e garantem procedimentos mais seguros.
Menos divulgados na aplicação e com impacto menos certo, foram os sistemas de reporte de erros, tal como existem hoje na Suíça e na Austrália, e que permitem o registo voluntário de eventos adversos relacionados com a anestesia, enquanto nos EUA ganha posição o reporte compulsivo para eventos mais graves e tidos como menos aceitáveis. No entanto, a Anestesiologia é, sem dúvida, a área mais segura da Medicina, com uma taxa de mortes directas para o risco anestésico ASA mais baixo (ASA I e II) de uma morte por 250 a 300 mil anestesias. Mas estes números nem sempre foram assim, nos anos setenta ocorriam com frequência acidentes (1 morte por 5.000 anestesias), estes invariavelmente associados a erros com equipamento. A visibilidade pública pela divulgação de inúmeras acções médico-legais, relacionadas com a má prática anestésica colocaria uma enorme pressão sobre a especialidade. O entendimento que a maior parte dos erros se devia a uma má estandardização de procedimentos e de equipamentos, conduziria a melhorias de sistema, que por sua vez condicionariam a prática, tornando-a progressivamente mais segura. As causas mais frequentes para os Erros em Anestesiologia, segundo a Australian Incident Monitoring13 estão indicadas abaixo (fig. 1). Como se vê, 65 % dos casos ocorrem na indução anestésica e cerca de 45 % na fase da manutenção da anestesia.
Figura 1 - Causas para os erros em anestesia
As soluções adoptadas pela anestesia foram, inicialmente, Soluções Tecnológicas, envolvendo o desenho, a estandardização e as interfaces humanas dos equipamentos e anestesia — tomemos, por exemplo, as cores das rampas de gases e as conexões, que só permitem a realização de ligações adequadas (fig. 2). Mais ainda, estabeleceu-se o Reporte de Eventos, facilitado pela criação da "Anesthesia Patient Safety Foundation" nos EUA, no início dos anos 80, seguida da adopção generalizada de Protocolos e de Guidelines de actuação.
Figura 2 - Rampas de gases anestésicos
Na vertente do Ensino e do Treino, nomeadamente para cenários de crise, seriam introduzidos, já na segunda metade dos anos noventa, os Simuladores na prática da Anestesiologia 14,15.
Seguiram-se os aspectos das dinâmicas da Equipa (factores humanos não técnicos), incidindo sobre perfis de Liderança, definição das Tarefas, técnicas de Comunicação, Supervisão e Coordenação 9. Aspectos tão simples, como a fácil etiquetagem de medicamentos, as diluições standardizadas, a gestão de stocks e a distribuição, ou a ainda mais simples avaliação prévia e marcação de doentes, fazem a diferença no dia-a-dia. Recordemos, como exemplo, o cálculo automático e computorizado das dosagens e diluições farmacológicas usado para cirurgia pediátrica, no Hospital de Santa Marta do CHLC, que representa um enorme ganho de segurança, por disponibilizar automaticamente doses, diluições e concentrações, com base na entrada dos parâmetros antropométricos das crianças, antes do início de cada anestesia.
A Anestesiologia é um bom exemplo da necessidade de investir, em simultâneo, na dimensão "Sistema" e na vertente dos Factores Humanos e da Equipa para a promoção da Segurança, nessa perspectiva indicamos as medidas práticas fundamentais a adoptar para a promoção da segurança anestésica num qualquer Bloco Operatório.
— Sistema e Equipamentos
Estandardização de processos;
Redução da variabilidade de aparelhos num mesmo local;
Verificação de bom funcionamento por manutenção regular e por verificação prévia a qualquer acto anestésico;
Conhecimento, preparação e treino para funcionar com equipamento recentemente introduzido na prática;
Utilização de detectores automáticos (PA, Saturação, Capnografia, etc..) e de alarmes;
Segurança com Medicamentos — conhecimento de fármacos, registo de alergias, diluições, fármacos perigosos afastados, antídotos à mão;
Conferência de medicamentos e análises para cada doente e sua dupla verificação.
— Factores Humanos
Conhecimento e preparação técnica individual;
Treino para lidar com situações de crise;
Capacidade de antecipação de acidentes ("awareness");
Capacidade ou treino para reconhecer e remediar erros;
Consciência de que a fadiga afecta o desempenho e percepção da mesma.
— Equipa
Liderança correcta e gradientes adequados de hierarquia;
Boa comunicação — idealmente escrita e sempre com dupla confirmação;
Distribuição de tarefas;
Supervisão adequada de juniores;
Treino em Equipa e para situações de crise — uso de check-lists e guidelines. Se possível por cenários reais ou simuladores;
Adopção de "briefings" e de "de-briefings";
Cultura ou ambiente local de antecipação e de segurança: Reporte não culpabilizado de erros e aprendizagem com estes mesmos.
Erros relacionados com o acto cirúrgico
O ambiente do bloco operatório é propenso à ocorrência de acidentes. De facto, todos os ingredientes aí estão presentes: ambiente de stress excessivo, ocorrências inesperadas (vertente diagnóstica, dificuldade técnica, impreparação, equipamento, falhas técnicas), interface humanos-equipamentos muito variadas e nem sempre ergonómicas, dinâmica de equipa com as suas disfunções usuais, falhas da organização, falhas técnicas por avaria e claro,... o erro humano! Em termos reais uma equipa cirúrgica é um grupo de pessoas altamente treinadas, que se reúnem para realizar uma tarefa específica, potencialmente arriscada, a qual requer um nível máximo de interacção e de responsabilidade partilhada entre os seus membros — esta actividade tem coreografia própria, levada a cabo por cirurgiões, anestesistas, ajudantes, enfermeiros, técnicos e auxiliares (para só falarmos dos elementos em cena) onde, com facilidade, ocorrem problemas de comunicação e surgem conflitos, conduzindo a eventos indesejáveis. Sem dúvida que os factores organizacionais e técnicos são importantes, como referia com alguma ironia Donald Berwick, presidente do prestigiado Institute for Healthcare Improvement dos EUA — "Every System is Perfectly Designed to Achieve the Results it Gets" — mas os factores humanos assumem hoje um papel preponderante em todos os quadrantes da Saúde e, muito em especial, nos blocos cirúrgicos.
— Por factores humanos entende-se toda a interface humana da actividade, desde decisão e actuação individual ao comportamento em equipa, terminando na relação entre seres humanos e equipamentos. Sob este vasto chapéu dos factores humanos deveremos analisar com mais detalhe, pela maior relevância, os que abaixo se indicam, até porque as questões de segurança ergonómica e da interface homem-máquina estão hoje dominantemente acauteladas (não sei se resolvidas!) pela engenharia hospitalar e pelo design de equipamentos e de instrumentos cirúrgicos modernos:
Capacidades individuais — dizem respeito às capacidades individuais de conhecimento e de destreza, à capacidade de decidir, à consciência de erro ou à capacidade de recuperar trajectórias de risco 10;
Capacidades sociais e de equipa — dizem respeito a outras dimensões, que se prendem com a dinâmica da equipa — comunicação, coordenação, percepção de fadiga, lidar com conflitos e perfil de liderança 10.
Consideraremos assim, e no que concerne aos factores humanos no cenário do bloco operatório, quatro áreas que nos parecem fundamentais: Comunicação, Trabalho em Equipa e Cooperação, Proactividade e Solução de Problemas e Liderança14,15.
O défice de comunicação foi recentemente eleito pela Joint Comission for the Accreditation of Hospital Organizations (JCAHO), como estando na base dos eventos sentinela da Saúde em cerca de 70 % dos casos 16. As falhas de comunicação podem ocorrer no bloco e segundo Lingard17 a diferentes níveis e em diferentes momentos; assim em 46 % dos casos a ocasião é inapropriada — momento errado — (exemplo: a meio da operação o cirurgião pergunta ao anestesista se deu a profilaxia antibiótica). Em 36 % dos casos o conteúdo é inapropriado — (exemplo: no início do caso o interno de anestesia pergunta ao cirurgião se providenciou uma cama na UCI. Este responde que a cama não será, provavelmente, precisa e certamente não haverá vagas, por isso o melhor é prosseguir com o caso). Em 24 % dos casos o propósito é desacertado, o assunto não fica resolvido (exemplo: durante um TR de dador vivo duas enfermeiras discutem se será preciso gelo na bacia de colheita. Nenhuma tem informação sobre tal, não estava previsto, a discussão é inútil). Noutros casos, não raros (21 %) a audiência está em causa pois as pessoas interessadas não estão presentes (exemplo: as enfermeiras e o anestesista discutem qual a melhor posição para o doente, sem a presença do cirurgião).
Mas as falhas de comunicação não se resumem às definidas acima, resultam também de um formato deficiente. Por outro lado, uma pirâmide hierárquica excessivamente alta pode impedir a comunicação de baixo para cima, nomeadamente em momentos de crise ou situação fora da rotina, como sucedeu e esteve na base do acidente aéreo histórico em Tenerife.
O Trabalho em Equipa e a Cooperação é fundamental para a eficiência e, sobretudo, para a segurança no bloco operatório e o seu défice é responsável por cerca de metade das falhas verificadas. A comunicação é o fluído vital do funcionamento numa equipa, mas para que se funcione realmente em equipa é muito importante que exista a capacidade de partilha sinérgica de tarefas e, sobretudo a capacidade de cooperar para um dado fim — o que se chama de coordenação relacional. Esta atitude tem, forçosamente, mais do que ser gerida, de ser liderada. Um meio de agilizar este funcionamento em equipa é a utilização de "briefings" no bloco operatório. Herdados da aviação civil, os briefings permitem sintonizar toda a equipa para uma dada tarefa e têm sido crescentemente utilizados no bloco operatório, com vantagens acrescidas para a segurança 17.
A OMS recomendou recentemente a sua utilização em todo o mundo na iniciativa — "safe surgery saves lifes" 16.
A recente introdução da metodologia de briefings no Bloco Operatório de Cirurgia Cardiotorácica, em Santa Marta seguiu o seguinte formato:
— Apresentação dos membros da equipa (todos na sala) antes do início do caso;
— Identificação do doente, lado da operação e tipo de procedimento;
— Revisão do plano operatório previsto, com a anestesia, instrumentação e ajudantes;
— Conferência do material que se necessita e que se prevê vir a ser preciso durante a intervenção — material, fármacos, sangue, contactos, etc...;
— Discussão breve de complicações possíveis e planos técnicos e materiais de contingência;
— Perguntar se alguém (todos) está desconfortável com algum aspecto do procedimento, ou não percebeu algum dos passos;
— Convidar cada um dos da equipa a manifestar-se a qualquer momento se se aperceber de algo que considere errado.
O uso regular deste tipo de "briefing" na cirurgia cardíaca tem provavelmente melhorado o nível de segurança no bloco mas com maior certeza ainda tem permitido cimentar a imprescindível dinâmica de equipa, antecipando muitas das possíveis crises. Este tipo de "briefings" fazem parte do que, na aviação civil, se tem denominado de "CRM" — crisis resource management, e que visa preparar toda uma equipa para cenários de possível crise. Para Fletcher 19 as componentes desta CRM são a Comunicação/ Cooperação (espírito de equipa), a Gestão/ Liderança (plano, coordenação e autoridade), a Proactividade (antecipação de eventos) e a Decisão (diagnóstico de problemas e actuação).
Do mesmo modo, a realização de de-briefings, após procedimentos de rotina e, especialmente se houve complicações, tem permitido corrigir muitas das falhas verificadas, contribuindo para que se não repitam e funcionando assim como metodologia de aprendizagem contínua e indutora de melhorias organizacionais.
A existência de check-lists é fundamental para tarefas de complexidade e repetição reconhecida — por exemplo, as condições necessárias para a entrada de um doente no bloco, a conferência de equipamento e fármacos anestésicos, ou a montagem do circuito de circulação extra-corporal. Vide em anexo o check list usado pelo sector de perfusão cardiovascular no bloco da cirurgia cardiotorácica, em Santa Marta, sempre e antes do início de qualquer caso de cirurgia cardíaca aberta (fig. 3).
Figura 3 - "Check list" do Bloco Operatório do Hospital de Santa Marta
A Proactividade e Antecipação de Problemas são peças integrais da cultura de segurança em qualquer organização, bem como o reconhecer da sua vulnerabilidade aos erros. Só assim se poderá estar preparado para lidar com eventuais trajectórias de acidente e recuperá-las, de modo a impedir acidentes mais graves, fazendo-os evoluir para "near-miss" ou levando a minimizar as suas consequências.
Para além da consciência de vulnerabilidade ao erro é fundamental que exista proactividade, e que se perceba no bloco que a recuperação de um erro dependerá sempre do funcionamento correcto do sistema (defesas próprias, alarmes, avisos) e das pessoas, pela sua capacidade inteligente de recuperar e... improvisar. Assim sendo, deverá ser mantida a atenção e vigilância e criado o ambiente que permita a cada um, independentemente da posição e hierarquia, falar sempre que note algo diferente da rotina ou do esperado. Depois, todos os alarmes estarão ligados e cada um estará no seu posto, sendo as interrupções e as falhas de atenção limitadas ao mínimo. Com efeito, as interrupções cirúrgicas (telemóveis, conversas paralelas, intromissões externas...) foram recentemente correlacionadas com erros cirúrgicos 20. Uma vez detectados os erros, importa estar preparado para os corrigir: tal requer conhecimento — experiência, mas capacidade de decisão individual. No entanto, requer não menos treino para manejo de situações de crise e em equipe, tal como na aviação civil, onde os cenários possíveis de acidente se ensaiam, com toda a equipa, em simuladores. Por isso e na fase em que nos encontramos os "briefings" se tornam tão importantes, ao facultarem essas antecipações de crise e a listagem do que cada um terá de fazer, se vierem a ocorrer.
Em termos de actuação individual e face à detecção de um erro ou algo inesperado, cada um de nós actuará com uma mistura balanceada em proporções que dependem de cada um de nós e... da sorte de cada doente..., dos seguintes ingredientes: exploração de novas hipóteses & utilização de conhecimentos existentes. Claro que uma atitude balanceada será a que convirá adoptar.
Finalmente a Liderança correcta desempenha um papel fundamental. Como dizia um conhecido cirurgião americano H SHAPIRO — "willingness to accept the risk of failure is one of the costs of leadership and, therefore, the price of all success" — afirmação que é verdadeira, sobretudo na dimensão da equipa. Confunde-se, com facilidade, a tarefa da cheia com a dimensão da liderança, sendo que ambas são necessárias, mas necessariamente diferentes 21. No Bloco Operatório a chefia é fundamental, mas só a correcta liderança permitirá zelar pela cultura de segurança, pela dinâmica de comunicação e de cooperação em equipa, de modo a assegurá-la em cada dia mas a projectá-la como valor futuro.
Os factores humanos, à luz da teoria multifactorial de Reason ("swiss cheese") 22 compreendem diversos níveis ou camadas, onde podem ocorrer orifícios ou buracos de segurança, cujo alinhamento, por ordem, conduzirá à oportunidade para ocorrência de acidentes (fig. 4) 13:
Figura 4 - Modelo de Reason
— Influências Organizacionais;
— Cultura local de segurança;
— Gestão recursos humanos e materiais;
— Supervisão;
— Distribuição de tarefas com suporte de competência;
— Predisposição para Actos Pouco Seguros;
— Ambiente — equipamento, ergonomia, check-lists;
— Estado Mental Adverso — fadiga, baixa moral, preparação mental para a Acção;
— Estado Físico Adverso — doença, má visão, má audição, dores;
— Factores Equipa — má coordenação, má comunicação;
— Cometimento de Actos Inseguros;
— Erros de Decisão — má aplicação de regras e decisão elaborada;
— Erros baseados em Destreza — automáticos, erros de técnica;
— Erros de Percepção — por deficiente informação ou percepção;
— Erros por Violação Esporádica de Regras — comportamentos negligentes ocasionais;
— Erros por Violação Habitual de Regras — comportamentos habituais inseguros, por quebra sistemática de normas (comportamentos negligentes habituais).
O que pode correr mal no Bloco Operatório em matéria de segurança? Podem ocorrer três graus de eventos:
Perturbação do Fluxo Cirúrgico — a interrupção do decorrer de uma intervenção, por exemplo, a queda de um ferro, uma interrupção verbal, uma pergunta, cujas consequências são o atraso e o potencial para falhas de atenção e erros. Existe uma correlação estreita das perturbações e fluxo e a ocorrência de erros 20. As perturbações de fluxo devem-se, por ordem de frequência, a Disfunções de Equipa (comunicar, coordenar), Perturbações Exteriores (interrupções), Equipamento (falhas, queda ferros...), Falta de Recursos (materiais ou humanos), Falta de Supervisão (gestão pessoal, tutela de juniores...).
Eventos Minor, ou seja, eventos sem consequências graves, que podendo causar danos, não colocam em risco a vida nem carecem de compensações sérias (caso da abertura involuntária de uma cavidade pleural ao abrir o pericárdio). Estes eventos representam a maioria (75 %) dos acontecimentos inesperados nas cirurgias de alta tecnologia 9 e são raramente compensados, pela pouca monta e baixo risco aparente. Contudo correlacionam-se estreitamente com a possibilidade de eventos fatais. Como que medem a "temperatura" da insegurança do Bloco.
Eventos Major, ou seja eventos que se não forem compensados causam danos graves ou a morte (caso de uma laceração da aorta que requer uma solução eficaz). Estes eventos ocorrem em menos de 25 % dos casos e não causam (paradoxalmente) consequências graves, por serem prontamente reconhecidos e compensados (se existe expertise humana acessível). Curiosamente apresentam correlação fraca com o nível de insegurança de um Bloco.
Estes eventos representam erros, incidentes, acidentes e near-miss (se os conseguirmos recuperar) e seriam evitáveis em cerca de 50 % dos casos.
Os erros mais típicos no Bloco Operatório são a Cirurgia no Doente Errado ou no Lado Errado e o Esquecimento de Corpos Estranhos nos doentes. Estes eventos são hoje considerados como "never events" (eventos que não devem, pela sua gravidade, existir nunca!). Estes eventos não são, contudo, tão raros quanto se pensa, por exemplo, o esquecimento de corpos estranhos durante a cirurgia podem ocorrer em cerca de 1 por 10.000 intervenções.
A Joint Comission for the Accreditation of Hospital Organizations (JCAHO) sugeriu recentemente um protocolo para reduzir a prevalência da "Cirurgia no Lado Errado", incluindo um processo de comunicação ao chegar ao Bloco, sobre a identificação do doente, o tipo, o lado e o nível da operação, seguido da marcação, com tinta estável, do local da operação prevista, finalmente, o chamado "time-out", que é um verdadeiro "briefing" entre os membros da equipa, onde todo o procedimento é prospectivamente introduzido e revisitado. Em todo este processo, a marcação dos doentes com pulseira de identificação é um passo fundamental 16,23,24.
Para combater o esquecimento de instrumentos e compressas estes são hoje portadores de marcadores radiopacos para controle radiológico fácil em caso de dúvida. Actualmente, as compressas e pequenos instrumentos e, nalguns locais, mesmo as agulhas, são contados antes de encerrar o doente, mesmo assim, e em presença de contagens concordantes, acontece por vezes ficarem corpos estranhos esquecidos. A resposta a este problema é a realização, por rotina, de um RX em todos os doentes antes da saída do bloco, prática que se torna pesada de generalizar mas que se poderá eleger para os casos de urgência ou cirurgias atribuladas onde o descontrole é mais provável (fig. 5).
Figura 5 - Compressa deixada numa cirurgia (Rx)
Finalmente, e em termos globais, como poderemos promover mais segurança no Bloco Operatório? Por um conjunto de medidas multifactoriais e a níveis múltiplos, que envolvem:
— Check lists de material;
— Check lists de procedimentos — protocolos;
— Briefings pré — operatórios (Treino Equipa, Comunicação Proactiva, "time-out");
— Perfis de Liderança (Hierarquias do tipo "flat — team");
— Monitorização de Eventos (nível de má performance);
— Análise retroactiva — RCA (root cause analysis);
— Análise proactiva de trajectórias de risco — HFMEA (health failure and effect mode analysis) 25.
A World Health Organization e a World Alliance for Patient Safety produziram em 2008 a iniciativa "Safe Surgery Saves Lifes", na qual se consagra o check list cirúrgico como meio de prever a maioria dos erros cirúrgicos 24, permitindo, para já, uma redução de cerca de 50 % nos eventos adversos cirúrgicos.
Complicações cirúrgicasSão, naturalmente, muitas mas as mais estereotipadas em termos de segurança são a infecção do local cirúrgico e o tromboembolismo venoso.
A infecção no local cirúrgico agrava os resultados, no que concerne a mortalidade e aos custos hospitalares 26 e a sua incidência varia conforme os locais, entre 2 e 26 % 4 mas o valor de 10 % corresponde à mediana. As causas para estas infecções, sejam no local cirúrgico, sejam sistémicas, são múltiplas — má higiene local, má técnica cirúrgica 26, deficiente profilaxia antibiótica 27,28, sendo contudo certo que as infecções podem ser altamente reduzidas, se, por exemplo a profilaxia antibiótica for correcta — agentes adequados, ministrados até 60 minutos antes da incisão e nunca utilizados por mais de 24 a 48 horas 4,27-29. Outras medidas, tais como a assepsia local, a técnica cirúrgica adequada, a manutenção da temperatura dos doentes e o controle homeostásico da glicemia, bem como a correcta preparação da pele e o uso de tricotomia, o mais próximo da cirurgia possível, e sem recurso a lâmina, contribuem definitivamente para a queda da taxa de infecção cirúrgica 27-29. Modernamente vem-se tornando inaceitável a ocorrência de uma qualquer complicação infecciosa após um acto cirúrgico e, nos EUA, alguns sistemas de saúde não reembolsam hoje as despesas adicionais decorrentes de uma infecção, esta, assim, implicitamente aceites como actos de má prática médica. Métodos práticos para prever a infecção no local cirúrgico são:
— Preparação pré operatória da pele — anti-sépticos, tricotomia próxima do acto e sem recurso a lâmina;
— Profilaxia antibiótica adequada ministrada até 60 minutos antes da incisão e não mantida por mais de 48 horas;
— Homeostasia intra operatória com manutenção de normoglicémia e normotermia;
— Técnica cirúrgica correcta;
— Standard de assepsia e disciplina no Bloco Operatório, manejo de vias centrais.
Tromboembolismo venoso
A ocorrência de uma trombose venosa e/ou de uma embolia pulmonar após cirurgia, contribui significativamente para a mortalidade e morbilidade cirúrgicas. Alguns tipos de cirurgia, como a ortopédica, estão mais atreitos a esta complicação 30,31, que é mesma a causa mais comum de mortalidade na cirurgia do colo do fémur. As causas predisponentes são múltiplas e, não raro, cumulativas. A incidência de tromboembolismo venoso é 10 a 40 % para a cirurgia geral e de 40 a 60 % para a cirurgia ortopédica 30-32 e pode ser drasticamente reduzida mediante o uso de profilaxia correcta 32,33. A prevenção, por anticoagulantes (heparinas fraccionadas), a mobilização precoce e a compressão mecânica (por meias elásticas) é efectiva e deve, sem qualquer margem para dúvidas, ser utilizada como rotina. Não parece hoje aceitável que ocorram acidentes de tromboembolismo venoso pós operatórios por falta de profilaxia adequada.
Como se avaliam os erros no Bloco Operatório?
Poderá existir um sistema de relato de eventos (idealmente voluntário, anónimo ou não), poderá, ainda coexistir um sistema compulsivo, para os eventos mais graves (never events ou eventos sentinela) ou, pode, ainda, e copiando a metodologia de há muito usada na aviação civil, utilizar-se o método da observação externa de comportamentos humanos em equipa, no palco dos blocos operatórios. Neste caso avaliam-se as dimensões humanas técnicas e não técnicas no decurso de intervenções, recorrendo a técnicos analisadores de comportamentos humanos. A avaliação não técnica incide sobre a equipa, focando-se na "liderança e gestão", "trabalho de equipa e cooperação", "solução de problemas e decisão" e "percepção de situações", classificadas, semiquantitativamente em quatro níveis 8. Estas avaliações mostraram-se coerentes com a ocorrência de falhas e foram diferentes conforme as especialidades, por exemplo, comparando a ortopedia com a cirurgia cardíaca infantil.
Por outro lado, o registo de eventos deve ponderar o produto da gravidade pela frequência de ocorrência, usando uma simples escala de Lickert. Por exemplo, um evento de pouca gravidade (grau 1) ocorrendo raramente (grau 1) tem um impacto distinto de um evento grave (grau 4) ocorrendo frequentemente (grau 4) — ou seja um impacto 1 versus um impacto 16. Esta classificação também contempla os frequentes eventos de perturbação do fluxo, com gravidade baixa mas prevalência alta, em contraste com os mais raros eventos sentinela, estes com gravidade extrema, mas frequência muito rara.
Relações entre volume de casos e performance cirúrgica
Uma outra discussão tem a ver com a associação entre o volume de casos operados, a ocorrência de erros e a performance cirúrgica. Haverá relação entre o volume e a performance na área cirúrgica? Parece intuitivo que, quanto maior for o número de casos, maior a experiência, e mais favoráveis serão os resultados, no entanto existem práticas pequenas e nichos de patologias onde, independentemente do volume de casos, os resultados são excelentes e, por oposição, outras práticas de alto volume onde a qualidade é reduzida. Importa assim separar factores individuais, factores de equipe, condicionantes da organização e o tipo das intervenções, para compreender as delicadas relações entre o volume e a performance em cirurgia 34.
Cirurgiões experientes, equipas fixas e coesas, trabalhando em instituições de baixo volume podem produzir bons resultados, desde que os casos não impliquem um grande suporte multidisciplinar, nomeadamente de cuidados intensivos diferenciados, e onde a polivalência seja necessidade determinante. Por exemplo, substituir uma válvula aórtica, por um cirurgião experiente não é o mesmo, nem comporta o mesmo nível de exigências, que uma duodenopancreatectomia, esperando-se nesta última um maior nível de exigência organizacional e experiência colectiva, que só volumes elevados permitem 35. Actividades como a cirurgia cardíaca pediátrica, com marcada variabilidade de casos e uma grande dependência interdisciplinar apresentam uma grande dependência de resultados em função do volume de casos. Casuísticas inferiores a 125 casos por ano ou 250 casos por centro (para um número ideal de dois cirurgiões) parecem produzir resultados piores 36.
Um outro aspecto, prende-se com intervenções com elevado pendor tecnológico realizadas por staff sem experiência. Aqui a relação entre volume de casos (treino) e resultados é clara, como se demonstrou com a introdução da cirurgia laparoscópica, onde um volume inferior a 12 casos se associava a uma maior frequência de lesões na via biliar 37. Claramente, aqui, o treino é fundamental, seja pela realização de casuística, seja coadjuvado por simulação, pelo que o pessoal inexperiente produzirá sempre piores resultados em práticas de baixo volume cirúrgico. Importa separar, ainda, o contributo técnico individual (grau de experiência, número de casos, aprendizagem) do papel da organização (volume de casos na instituição — dimensão da "estrutura") e, nesta matéria, quanto maior for a dependência multidisciplinar, mais importante se torna o volume de casos na organização.
Alguns grupos, nos EUA, como o grupo Leapfrog, estabeleceram números mínimos individuais e institucionais, para referência electiva de doentes, baseada em qualidade e no conceito de "Centros de Excelência" 38. Assim, para cirurgia coronária, 100 casos por doente e 450 casos por instituição, para intervenção coronária percutânea 75 / 400 casos, substituição aórtica 22/100, cirurgia bariátrica 20/100, esofagectomia 2 /13, etc...
Em conclusão, o volume de casos cirúrgicos parece favorecer a qualidade e, naturalmente, também a segurança. Aspectos como o treino mínimo do staff com menos experiência e a dependência organizacional em procedimentos muito interligados suportam a necessidade de maiores volumes de produção, mas é muito difícil estabelecer números mínimos ou mesmo, fechar unidades cirúrgicas, exclusivamente com base em números reduzidos. A experiência individual e hospitalar têm pesos diferentes e variam com o tipo de cirurgias, seguramente, os métodos têm maior peso que os números, pelo que se recomendará sempre a avaliação caso a caso, baseada em resultados indexados ao risco.
Conflito de interesseO autor declara não haver conflito de interesse.
*Autor para correspondência.
Correio electrónico: jigfragata@gmail.com (J. I. G. Fragata)
INFORMAÇÃO SOBRE O ARTIGO
Historial do artigo:
Recebido em 1 de Julho de 2010
Aceite em 1 de Setembro de 2010