O vírus da imunodeficiência humana/síndrome da imunodeficiência adquirida (VIH/Sida) e uma das principais ameaças à vida humana, sendo que a vulnerabilidade da mulher é incontestável, principalmente em contextos desfavorecidos. Na África subsaariana as mulheres são as mais afetadas pelo VIH/Sida, numa proporção de infeção 4 vezes maior do que nos homens. Assim, é necessário aumentar o conhecimento dos fatores psicossociais e sociocognitivos ligados ao género, cultura e biologia que colocam a mulher em maior risco para o VIH/Sida. A literatura sugere que fatores como a vitimização, características da relação, problemas de saúde mental, história de cárcere e prostituição, nível de conhecimentos sobre a doença, crenças e competências relacionadas com a prática do sexo seguro, e a autoeficácia exercem influência sobre os comportamentos sexuais de risco para a infeção pelo VIH. A compreensão e análise destes fatores são essenciais no planeamento de estratégias interventivas mais realistas. O presente artigo apresenta uma revisão da literatura acerca dos fatores psicossociais e sociocognitivos que vulnerabilizam a mulher para o VIH/Sida, particularmente a mulher africana. São também levantadas questões de investigação que decorrem da análise da literatura neste domínio.
HIV/AIDS is a major threat to human life and the vulnerability of women is undeniable, especially in disadvantaged settings. In sub‐Saharan Africa, women are the most affected by HIV/AIDS, in a proportion of infection four times higher than men. Therefore, it is of the utmost importance to increase knowledge of which psychosocial and socio‐cognitive factors may be related to gender, culture and biology thus placing women at greater risk for HIV/AIDS. The literature suggests that factors such as victimization, characteristics of the relationship, mental health problems, history of prison and prostitution; knowledge about HIV, beliefs and skills related to safe sex practices, and self‐efficacy influence sexual risk behaviors linked to HIV infection. Examining these factors is essential to plan more realistic intervention strategies. This paper presents a literature review on the psychosocial and socio‐cognitive factors that contribute to women's vulnerability to HIV/AIDS, particularly African women. The paper also addresses research questions that stem from the review of the literature in this field.
A vulnerabilidade da mulher para o vírus da imunodeficiência humana/síndrome da imunodeficiência adquirida (VIH/Sida) é hoje incontestável1,2. Este facto é especialmente visível em África, sobretudo na África subsaariana. Os últimos dados oficiais da UNAIDS revelam que, em 2012, na África subsaariana, o número total de jovens e adultos infetados (com mais de 15 anos) era de, aproximadamente, 23 milhões, sendo que as mulheres correspondem a quase 13 milhões, o que se traduz em 60% dos casos2. Esta é a única região do mundo onde as taxas de prevalência de VIH/Sida são mais elevadas nas mulheres do que nos homens3. Para além da maior suscetibilidade fisiológica para a infeção pelo VIH, as mulheres são especialmente vulneráveis devido às suas desvantagens em termos sociais, legais e económicos4.
Devido à multiplicidade de fatores que a influenciam, cada vez mais a infeção pelo VIH/Sida tem sido estudada por uma grande diversidade de áreas científicas da saúde5. Pela sua componente comportamental, a psicologia, sobretudo a psicologia da saúde, tem dado especial relevo aos fatores de risco de ordem psicossocial e sociocognitiva5–8. No seguimento de vários estudos realizados no âmbito da psicologia, tem sido possível constatar‐se que há uma série de determinantes e condições que influenciam fortemente a vulnerabilidade da mulher para a infeção pelo VIH/Sida, nomeadamente, os papéis sociais de género dentro da relação e o limitado acesso a informação correta e atualizada sobre a doença2,4, os baixos níveis de autoeficácia que impedem uma adequada negociação do sexo seguro9, os problemas de saúde mental10, entre outros. Quando isto ocorre é muito difícil atingir a mudança comportamental e a manutenção dessas mudanças nas interações quotidianas. Assim, considera‐se essencial e urgente planear estratégias interventivas realistas e adequadas aos contextos, com vista à proteção psicossexual das mulheres4, especialmente, daquelas mais desfavorecidas a vários níveis, como é o caso da mulher africana2. No entanto, estas estratégias só podem ser criadas e desenhadas conhecendo os fatores de risco para a infeção, de forma a ser possível incorporá‐los e contrariá‐los nas intervenções preventivas11. Adicionalmente, sabe‐se que, para uma doença em que não existe cura como é a Sida, a intervenção comportamental preventiva continua a ser o meio mais eficaz de combate12. Assim, é inegável a importância das ciências comportamental e psicológica na luta contra o VIH/Sida. Neste seguimento, é objetivo deste artigo realizar uma revisão da literatura acerca dos fatores psicossociais e sociocognitivos que vulnerabilizam a mulher para o VIH/Sida (com especial enfoque na mulher da África subsaariana), como forma de apresentar os contributos teóricos da psicologia (sobretudo da saúde) a uma área tão prioritária da saúde pública, como é o conhecimento aprofundado e o combate ao VIH/Sida.
MétodoO presente artigo é relativo a um estudo descritivo de revisão da literatura. Utilizou‐se como fonte de obtenção de dados trabalhos científicos acerca da vulnerabilidade psicossocial e sociocognitiva feminina para a infeção pelo VIH/Sida, através de consulta de livros e de vários artigos científicos de bases de dados em saúde provenientes da Biblioteca Científica Online (B‐on). Os artigos científicos recolhidos datam do período entre 1997‐2012. No entanto, há a referência a alguns artigos e livros publicados na década de 80, pois são considerados basilares para o tema em questão. Os dados epidemiológicos foram retirados de relatórios científicos e teses mais recentes, datados de 2012 e 2013. Na pesquisa eletrónica, como palavra‐chave, incluíram‐se os termos «fatores psicológicos de risco para o VIH», «fatores sociais de risco para o VIH», «fatores cognitivos de risco para o VIH», «prevenção do VIH na mulher» e «prevenção do VIH na mulher africana» para todas as fontes no título, tendo sido localizados cerca de 350 estudos. Posteriormente, filtraram‐se os trabalhos, tendo este exercício resultado em 110 documentos analisados que compõe o presente artigo. Estes artigos foram filtrados e selecionados tendo como método a leitura dos resumos e dos principais resultados das investigações. Foi critério de inclusão a referência aos fatores psicológicos de vulnerabilidade para o VIH/Sida na mulher. A exploração do material selecionado permitiu a construção e discussão de 2 eixos de análise principais: (1) fatores de risco psicossociais e (2) fatores de risco sociocognitivos para a vulnerabilidade feminina, especialmente no que se refere às mulheres da África subsaariana e austral, face ao VIH/Sida.
Fatores de risco psicossociaisMais do que nunca, sabe‐se que o VIH é produto de um conjunto de fatores de risco de ordem psicossocial que geram forças de desigualdade entre os géneros, que se refletem na sexualidade e na saúde13. Alguns desses fatores são a vitimização, as características da relação, os problemas de saúde mental e a história de cárcere e de prostituição. Passaremos a descrever a influência de cada um destes fatores nos comportamentos de risco para o VIH na mulher, sobretudo a africana.
VitimizaçãoA violência exercida sobre a mulher incrementa vulnerabilidade na transmissão do VIH/Sida14–17. Esta constatação é preocupante, pois há estudos que indicam que 10‐ 58% das mulheres em todo o mundo já passaram por situações de violência nas suas vidas, sobretudo praticadas pelo parceiro. As mulheres agredidas vivem frequentemente com medo, trauma mental e físico, depressão, ansiedade e perturbação de stress pós‐traumático (PTSD)18. Várias investigações demonstram que estas experiências traumáticas podem ter efeitos imediatos e/ou a longo prazo na saúde física e psicológica18–22. As mulheres vítimas de agressão raramente procuram tratamento para o seu trauma agudo18 e frequentemente desenvolvem sintomas de PTSD23. O trauma pode repercutir‐se em comportamentos não saudáveis, nomeadamente, comportamentos sexuais de risco para o VIH/Sida14,20,24.
Estudos sobre comportamentos de risco para o VIH sugerem que pessoas com história de abuso e trauma estão em alto risco25,26, verificando‐se história de abuso físico, sexual27–29 e de violência doméstica27,30 entre pessoas que demonstram ter comportamentos de risco para o VIH/Sida. Simoni, Sehgal e Walters17 desenvolveram uma investigação onde constataram que um elevado número de mulheres (91% da amostra), com elevadas taxas de trauma físico e sexual já tiveram, pelo menos, um comportamento sexual de risco no decorrer das suas vidas. Outros estudos constataram que a elevada exposição a algum tipo de violência é um dos melhores preditores de comportamentos de risco para a infeção por VIH/Sida31.
A violência limita a autonomia sexual e reprodutiva da mulher18 e aumenta as probabilidades de convívio com um parceiro que recusa usar o preservativo e com o qual é difícil negociar a sua utilização18,32. Uma investigação desenvolvida por Zablotska et al.33, com mulheres jovens (15‐24 anos) ugandesas (n=3.422), revelou que 26,9% das mulheres relatou ter sofrido violência física e 13,4% tinha vivido abuso sexual antes de ter relações sexuais, durante o ano anterior. O consumo de álcool antes das relações estava associado a uma maior probabilidade de violência física e sexual. Também Dantas‐Berger e Giffin34, após o desenvolvimento de uma investigação qualitativa, em contexto brasileiro, com mulheres adultas, vítimas de violência dentro da relação marital, constataram que, num ambiente de violência, é frequente a mulher acabar por ceder a relações sexuais não consentidas, por temerem a agressão física, a perda de apoio financeiro ou acusações de infidelidade. Este mesmo estudo evidenciou que a própria sugestão da contraceção e a tentativa de negociação do uso de contracetivos pode ser a causa da prática de violência sobre a mulher. Os resultados de uma investigação desenvolvida por Fanslow et al.35, com uma amostra de mulheres neozelandesas (n=2.790) também sugerem que as discussões acerca da contraceção e segurança sexual são motivo de episódios de violência por parte do parceiro. Estes estudos sugerem que a mulher fica intimidada e abdica do sexo seguro devido ao receio que tem de ser agredida pelo parceiro.
Em África, cerca de 36% das raparigas e 29% dos rapazes foram vítimas de violência sexual em idade precoce16. Investigações acerca destas questões no continente africano, nomeadamente na Tanzânia, demonstram que 28% das mulheres neste país tiveram a sua primeira relação sexual de forma forçada18. O trauma e a violência na infância são, por si só, fortes preditores para comportamentos sexuais de risco na idade adulta, na medida em que pode promover fatores precipitantes como a psicopatologia, o abuso de álcool e drogas e condutas sexuais de risco, como se poderá observar adiante nas explicações de Miller36. Adicionalmente, o abuso na infância também incrementa vulnerabilidade na medida em que a literatura tem sugerido que experiências sexuais precoces são um preditor para práticas sexuais de risco37.
Também o abuso da esposa é frequentemente documentado como sendo comum e impune, sendo que em algumas sociedades africanas, nomeadamente na África do Sul, a honra social protege os homens de serem punidos pelos seus atos de violência, e a violência doméstica é geralmente considerada como uma questão interna da família, mesmo nos casos em que há ferimentos graves38. Uma investigação desenvolvida por Anderson et al.39, com jovens estudantes sul‐africanos (n=269.705), de ambos os sexos, provenientes de 1.418 escolas, com idades compreendidas entre os 10 e os 19 anos, revelou que mesmo em idade tão tenra, 11% dos rapazes admitiu já ter forçado alguém a ter relações sexuais e 71% das raparigas relatou já ter sido forçada a ter relações sexuais. Estas constatações são preocupantes, na medida em que, como já foi referido, vários estudos têm demonstrado que o abuso sexual está associado ao desenvolvimento de alguns quadros psicopatológicos como a depressão e PTSD, e comportamentos autodestrutivos como o abuso de drogas e comportamentos sexuais de risco, nomeadamente, para o VIH/Sida40. Organizações a trabalhar no contexto da África austral, como a UNFPA, descrevem que a violência limita a autonomia sexual e reprodutiva da mulher. As mulheres vitimadas sexualmente têm mais probabilidade de usar métodos contracetivos de forma clandestina, de interromper a anticoncepção por imposição do parceiro que se recusa a utilizar o preservativo e de adotar comportamentos sexuais de alto risco, do que aquelas que não viveram nenhuma situação de abuso18.
Na zona da África austral há uma forte relação entre vários tipos de violência contra a mulher e a disseminação do VIH/Sida. Dentro da família, onde os homens são, por norma, dominantes, a mulher encontra‐se muito limitada para discutir questões de ordem sexual ou reprodutiva. Em domicílios onde existe ameaça de violência contra a mulher verifica‐se um baixo nível de informação acerca do VIH/Sida, assim como a ausência de adoção de comportamentos preventivos (uso do preservativo). A violência reduz a possibilidade da mulher negociar o sexo seguro e aumenta o risco da existência de sexo forçado. As meninas adolescentes em situação de violência familiar estão mais expostas ao risco de abuso sexual por parte de membros mais velhos da família, parentes próximos e vizinhos do que aquelas que não vivem neste tipo de contexto adverso38.
Há várias hipóteses que explicam a ligação entre a violência e o risco para o VIH/Sida, na mulher em geral e na mulher sul‐africana em particular. A primeira dessas hipóteses refere que o abuso sexual pode aumentar o risco de infeção pelo VIH diretamente, na medida em que a natureza violenta da violação cria um risco mais elevado de lesão genital e de sangramento, aumentando o risco de transmissão do VIH; nos casos de estupro coletivo a exposição a múltiplos agressores aumenta a exposição ao risco de transmissão. Outra hipótese defende que os relacionamentos abusivos (incluindo outras formas de violência que não apenas a física) limitam completamente a possibilidade das mulheres negociarem o sexo seguro. Como já foi referido, as mulheres que têm relacionamentos violentos e abusivos correm um maior risco de serem seropositivas, porque eventualmente têm mais medo de negociar o preservativo com os parceiros e poderão ser maltratadas quando discutem o uso do mesmo. Numa relação de natureza violenta também é menos provável que as mulheres consigam controlar o número de parceiras sexuais que o seu parceiro possa ter. Uma última hipótese explicativa defende que as mulheres que sofreram abuso na infância tendem a adotar um comportamento sexual mais arriscado e desprotegido na adolescência e idade adulta, aumentando assim o risco de infeção pelo VIH41.
No âmbito da compreensão da relação entre a história de abuso e o risco para o VIH/Sida, Miller36 desenvolveu um modelo que tenta explicar a interação entre estas variáveis. De acordo com este modelo, a relação trauma‐risco é regulada por 3 canais: psicopatologia resultante do trauma (e. g.: depressão, dissociação, PTSD); uso de drogas, como forma de lidar com a negatividade resultante da experiência de abuso sexual; e problemas ao nível de ajustamento sexual relacionados com a adoção de comportamentos sexuais de risco. Estes canais ou vias que medeiam a relação abuso sexual/risco VIH são orientadas por mecanismos que impulsionam os comportamentos de risco para o VIH/Sida, tais como, recorrência a drogas para automedicação, prática de comportamentos autodestrutivos; e uso de dissociação como estratégia de proteção. De acordo com este modelo, as mulheres abusadas envolvem‐se em práticas sexuais de risco devido aos comportamentos e crenças sobre a sexualidade que desenvolveram em resposta ao abuso. Também Zierler e Krieger42, em resultado de um estudo de revisão acerca dos fatores que vulnerabilizam a mulher para a infeção pelo VIH/Sida, defendem que as mulheres abusadas tendem a envolver‐se em comportamentos de risco para o VIH, como o consumo de drogas ou práticas sexuais de risco, estando estes comportamentos ligados ao trauma com que ficaram devido a estas experiências adversas.
De acordo com os estudos revistos e segundo a opinião de organizações como a UNFPA, UNIFEM e OSAGI38, as mulheres africanas têm muitas questões a enfrentar e desafios a ultrapassar em termos de afirmação da sua integridade global. Estes constrangimentos vão desde limitado poder na tomada de decisões, aumento da exposição ao risco (devido à precariedade económica, social e laboral), falta de acesso a recursos, violência não reconhecida (e. g.: bater na esposa não é considerada uma forma de violência), persistência e prevalência das leis de costume, até sub‐representação das mulheres nas estruturas políticas. Tal como já se verificou, estas questões que agravam e impedem a possibilidade de resolução de várias situações de violência colocam a mulher africana em elevado risco para a infeção pelo VIH.
Concluindo, vários investigadores consideram importante examinar aprofundadamente o impacto do abuso na capacidade de utilizar competências de resolução/negociação de conflito, pois o medo de negociar práticas sexuais seguras sem ameaçar a confiança ou arriscar violência tem sido visto como um dos maiores impedimentos para as mulheres adotarem práticas sexuais seguras38,43–45. Isto é particularmente importante em contextos desfavorecidos, como a África subsaariana, onde o poder de defesa da mulher contra a violência se encontra diminuído, aumentando assim a sua vulnerabilidade para o VIH/Sida.
Contexto relacionalA rigidez de papéis e de comportamentos nas relações de género é apontada como outro dos fatores de vulnerabilidade para a infeção pelo VIH/Sida46,47. As desigualdades de género incrementam vulnerabilidade para a infeção pelo VIH na mulher através de crenças ou tabus que emergem do contexto relacional. Por exemplo, uma mulher pode sentir‐se impedida de negociar o uso do preservativo porque receia perder apoio financeiro a nível pessoal e com os filhos (quando depende do marido a este nível), porque acredita que não deve fazer exigências sexuais ao homem ou porque receia que o parceiro responda com violência42. A desigualdade de género gera desigualdade no acesso aos recursos, agindo como um enorme obstáculo à participação das mulheres na sua própria prevenção face ao VIH/Sida13. Estudos efetuados entre a população afro‐americana indicam que os tradicionais papéis de género, caracterizados pelo aumento de liberdade sexual para o homem e perceções sociais desfavoráveis dos mesmos papéis em relação à mulher, assim como a falta de comunicação entre os parceiros colocam as mulheres em estado de vulnerabilidade psicossocial e psicossexual48.
A desconfiança e a falta de comunicação entre parceiros no que respeita a questões sexuais limitam a capacidade das mulheres praticarem o sexo seguro49. Um estudo desenvolvido por Wingood e DiClemente, com população feminina afro‐americana, demonstrou que, numa amostra de 128 mulheres, 45,3% evidenciou não utilizar preservativo nas relações sexuais, estando esta prática fortemente associada à perceção que as mulheres têm de que negociar a utilização do preservativo pode deixar implícita a ideia de infidelidade ou instabilidade na relação45.
Em vários países da África subsaariana é notória a desvalorização da mulher em relação ao homem. Estudos desenvolvidos na zona da África austral (e. g.: Zimbabué) referem que este facto se verifica no próprio momento da decisão de casar, em que, em muitos contextos, o homem escolhe a mulher com quem quer casar, não sendo dada nenhuma oportunidade à mulher para decidir se isso é o que deseja ou não. Dentro da relação marital a mulher é vista como um ser inferior ao homem e, neste âmbito, aí vigoram uma série de normas, atitudes e valores baseados num poder totalmente patriarcal. Assim sendo, a mulher tem pouca ou nenhuma oportunidade de decidir sobre a sua vida, especialmente no que se refere a uma esfera tão sensível como é a sua vida sexual50. Em Moçambique, o VIH/Sida é considerado cada vez mais jovem e feminino e, neste contexto, há argumentos de que isto se deve, sobretudo, às desigualdades de género dentro da relação. Por exemplo, os modelos de educação e a influência religiosa determinam que a jovem não esteja preparada, quando adulta, para negociar com o parceiro o exercício da sexualidade, tanto na reprodução como no prazer. Nesta situação as mulheres estão, por um lado, sujeitas à contaminação de doenças sexualmente transmissíveis (DST), sem que para isso tenham a oportunidade ou a possibilidade de se precaverem, e, por outro lado, não têm direito de escolha sobre o seu corpo51. Ou seja, denota‐se assim uma clara desvalorização da mulher em relação ao homem na sociedade, na relação conjugal e sexual e no domínio do próprio corpo.
Outro tipo de desigualdade entre homens e mulheres é o poder económico, o que acarreta consequências a vários níveis, nomeadamente, em termos sexuais. Uma mulher que dependa financeiramente do seu companheiro está mais propensa a cumprir as ordens e os desejos sexuais do parceiro, sem tentar discutir ou negociar, por medo de abandono emocional ou financeiro, do que uma mulher que não dependa financeira e materialmente do parceiro48. Nestas circunstâncias, a solicitação do preservativo pode ser arriscada, na medida em que mulheres subjugadas às ordens dos parceiros mais facilmente temem o conflito, a raiva e a violência por parte destes45.
As mulheres têm mais probabilidade de serem mais pobres e terem menos educação do que os homens, pois socialmente acredita‐se que num clima de privação os homens têm prioridade no acesso a estes bens e serviços. A pobreza, mais visível nas mulheres do que nos homens em contexto moçambicano, dificulta o acesso a cuidados de saúde e educação, elementos tão necessários para o combate ao VIH/Sida. Este nível de pobreza desigual entre géneros tem contribuído para o agravamento das desigualdades de género no domínio da sexualidade52. Os resultados de uma investigação desenvolvida por Macia e Langa53 demonstraram que, em Moçambique, a mulher reconhece e valida que a decisão de utilizar ou não o preservativo depende exclusivamente da vontade do homem. Os autores descrevem o relato de uma das participantes que refere que quem deve decidir sobre o uso do preservativo é o homem, porque é ele que tem a autoridade sobre a mulher. Na sua opinião, este processo está correto, pois foi assim que a educaram, a ser submissa e fiel ao homem. Bunnel et al. 54 desenvolveram um estudo qualitativo, no Uganda, com casais (n=24) em que um dos membros é seropositivo e apresentam o relato de mulheres que vivem situações de vida muito stressantes, devido ao facto dos maridos, mesmo infetados, considerarem que não devem usar o preservativo. Estas referem que a recusa ou a tentativa de negociação tende a acabar em violência, pois os maridos sentem‐se desautorizados perante a tentativa de negociação do sexo seguro por parte das esposas.
Uma investigação desenvolvida no Botswana, por Greig e Koopman55, com mulheres sexualmente ativas (n=71), tentou verificar até que ponto o empowerment das mulheres influencia a prevenção do VIH/Sida. Verificou‐se que possuir competências de negociação e estar numa situação de independência económica face aos parceiros são os fatores mais relacionados com o uso do preservativo. Os 2 fatores «competências de negociação» e «independência económica» também se encontravam altamente correlacionados entre si. Langen56, num estudo com mulheres naturais da África do Sul e do Botswana (n=2.658), procurou analisar a influência das desigualdades no poder de género, na capacidade de negociação do preservativo por parte das mulheres e resposta dos parceiros a tal solicitação. As mulheres muito mais novas do que os parceiros (10 anos ou mais), as mulheres com histórias de maus‐tratos, as mulheres que vivem em relações cujo nível de comunicação sobre o VIH é baixo e as mulheres economicamente dependentes do parceiro apresentaram‐se como menos propensas a sugerir o uso do preservativo aos seus parceiros. O que é mais inquietante, na opinião desta autora, é o facto de serem os parceiros que possuem outras parceiras sexuais que mais se recusavam à utilização do preservativo.
Concluindo, não há dúvidas de que o papel de género e as características do parceiro e da relação influenciam o comportamento sexual, nomeadamente, o processo de negociação. Por tudo isto, considera‐se que as respostas à epidemia do VIH/Sida devem fundamentar‐se no conhecimento das expectativas e das necessidades relacionadas com o género, devendo desafiar estas normas adversas57. A luta da mulher contra o VIH deve passar primeiramente pelo empowerment da própria condição feminina13. Em termos de controlo da sexualidade, o preservativo feminino poderá ser uma opção. No entanto, este ainda é basicamente restrito a camadas de mulheres mais favorecidas economicamente e que dispõem de um acesso facilitado à informação. Nos países em vias de desenvolvimento as desigualdades de género estão ainda muito presentes, verificando‐se uma marcada dependência económica das mulheres relativamente aos homens58. Combater o VIH/Sida na mulher passa por alterar muitos destes constructos sociais, sendo o empowerment nas mulheres a peça fundamental para reverter a epidemia do VIH13,59. Em África, particularmente, combater as desigualdades de género é fundamental para a resposta ao VIH/Sida, porque o desequilíbrio nas relações de poder entre homens e mulheres influencia fortemente a propagação do VIH nas relações heterossexuais60.
Problemas de saúde mentalAlguns estudos têm evidenciado que o estado de saúde mental influencia os comportamentos sexuais, nomeadamente aumentando o risco de infeção pelo VIH61. Problemas de saúde mental como o abuso de álcool e drogas, depressão, trauma, entre outros, têm vindo a ser associados a comportamentos de risco para o VIH/Sida.
A história de trauma tem vindo a ser fortemente associada a comportamentos de risco para o VIH. A literatura tem sugerido que o trauma físico e psicológico está relacionado com a decisão que as mulheres tomam relativamente a comportamentos de risco para o VIH, nomeadamente no que se refere à escolha dos parceiros e à capacidade de negociar o sexo seguro62. Estes riscos são ainda maiores em mulheres provenientes de minorias étnicas e de grupos socioeconómicos desfavorecidos. Gwandure63, num estudo realizado com população com e sem história de abuso (n=80), constatou que o grupo com história de abuso, quando comparado com o grupo de controlo, evidenciou elevados níveis de PTSD, depressão, ideação suicida, baixa autoestima e baixo locus de controle interno. Por sua vez, verificou‐se que estes fatores estavam relacionados com comportamentos de risco para o VIH/Sida, tais como, mais uso de drogas e álcool antes das relações sexuais e mais relações sexuais com parceiros que possuem múltiplos parceiros. Simoni et al.17 desenvolveram um estudo que evidenciou que um elevado número de mulheres com trauma físico e sexual (91%) já tiveram, pelo menos, um comportamento sexual de risco nas suas vidas.
No que se refere à mulher africana em particular, os estudos que analisam a relação entre o trauma e os comportamentos de risco nesta população são escassos ou inexistentes. O que se sabe é que estas estão em risco, na medida em que, tal como já se referiu, o trauma vulnerabiliza a mulher para a infeção; sabe‐se também que no continente africano são muitos os abusos e atos de violência que se cometem contra a mulher16,38.
O consumo e abuso de substâncias como o álcool e outras drogas também têm vindo a ser associados a comportamentos de risco para o VIH na mulher. A avaliação de comportamentos de risco para o VIH e outras infeções transmitidas por relações sexuais desprotegidas e contaminação sanguínea, e a sua eventual relação com o uso de álcool e drogas, tem vindo a constituir um grande desafio no âmbito da prevenção e tratamento dos usuários de drogas, assim como das populações vulneráveis a DST (entre as quais o VIH/Sida)64. Um estudo desenvolvido por Mccurdy et al. 65, na Tanzânia, demonstrou que os consumos ilícitos nas grandes cidades deste país africano são hábitos correntes. Os resultados deste estudo qualitativo, desenvolvido com consumidores de drogas (n=51), de ambos os sexos, evidenciaram que a partilha de seringas é algo habitual entre os participantes, mesmo sabendo que este é um comportamento de elevado risco para a infeção pelo VIH. De acordo com o relato dos participantes, as relações sexuais entre membros do grupo eram habituais e a maioria das mulheres frequentemente praticava relações sexuais com vários membros do «gueto» em troca de dinheiro ou drogas. Houve ainda participantes que referiram que, após se drogarem, muitas mulheres eram vítimas de relações sexuais não consentidas, que decorriam enquanto estas se encontravam inconscientes devido ao abuso de drogas. Apesar de este ser um cenário cada vez mais visível em vários países africanos, a verdade é que os estudos acerca do consumo de drogas e sua influência nos comportamentos de risco para o VIH na mulher ainda escasseiam.
Nos EUA, os estudos efetuados exclusivamente com população oriunda de África são abundantes. A título de exemplo, Miller et al.66 desenvolveram uma investigação com um grupo de mulheres afro‐americanas, consumidoras de drogas (n=180), onde constataram que 22% da amostra já se encontrava em estado de seroprevalência, 27% tinham injetado drogas nos últimos 30 dias e 55% relatou ter‐se prostituído em algum momento da sua vida. A prática da prostituição foi significativamente associada à infeção pelo VIH. Em média, nos últimos 30 dias, estas mulheres tiveram 3,9 parceiros sexuais e 33% relatou ter tido pelo menos 2 parceiros sexuais nesse período. Mais uma vez confirmou‐se uma elevada prevalência de infeção pelo VIH e de comportamentos de risco para o VIH entre a população feminina consumidora de drogas.
A depressão também tem sido apontada como uma variável de risco para a infeção pelo VIH em mulheres. DiClemente et al.67 desenvolveram uma investigação onde analisaram a relação entre a depressão em mulheres adolescentes e os seus comportamentos e atitudes face às DST e ao VIH. Os resultados deste estudo demonstraram que as adolescentes com depressão significativa no pré‐teste, no seguimento de 6 meses, tinham 2 vezes maior probabilidade de estarem grávidas, 2,1 vezes maior probabilidade de terem tido relações sexuais vaginais desprotegidas, 1,5 vezes maior probabilidade de não usarem qualquer forma de contraceção, 2,2 vezes maior probabilidade de perceberem mais barreiras face ao uso do preservativo, 1,7 vezes maior probabilidade de terem parceiros sexuais masculinos não monogâmicos, 2 vezes maior probabilidade de perceber menor controlo nas suas relações, 2,4 vezes maior probabilidade de terem experienciado violência nos encontros amorosos, 2 vezes maior probabilidade de terem medo das consequências adversas de negociar o uso do preservativo, 1,6 vezes maior probabilidade de se sentirem menos eficazes em negociarem o uso do preservativo com um novo parceiro sexual e, finalmente, 1,7 vezes maior probabilidade de terem normas incongruentes com uma relação sexual saudável. Estes resultados indicam que a depressão é preditiva de uma série de fatores de risco para a infeção pelo VIH/Sida. No que se refere à mulher africana, não são encontrados estudos que analisem o impacto da depressão nos comportamentos de risco para o VIH, havendo a necessidade de se desenvolverem estudos aprofundados sobre esta temática.
História de cárcere e prostituiçãoA história de cárcere é outro fator que tem vindo a ser associado ao risco para a infeção pelo VIH/Sida. Mulheres encarceradas constituem um grupo particularmente vulnerável a infeções, principalmente as transmitidas sexualmente, na medida em que há muitos contextos prisionais onde não existem programas de diagnóstico precoce, tratamento e prevenção, o que contribui para o aumento da incidência e prevalência de DST68. Nos países africanos a prostituição é uma prática corrente que contribui em grande escala para a vulnerabilidade da mulher face ao VIH/Sida. Por exemplo, em termos oficiais, em Moçambique, estima‐se que existam 30.000 trabalhadoras do sexo69, embora este número possa estar subestimado, sabendo‐se que há muita prática ilegal e não declarada.
Gune70 desenvolveu uma investigação de cariz qualitativo, que visou compreender as dinâmicas e os significados associados ao uso do preservativo com população africana (n=12), de ambos os sexos, na qual se encontrava um grupo de prostitutas. No que se refere ao grupo de prostitutas, verificou‐se que estas facilmente dispensavam o uso do preservativo quando os clientes assim o solicitavam. Esta cedência acontece sobretudo quando as prostitutas se encontram em situação de grande precariedade económica, quando «uma jornada foi pouco ou nada rentável e há uma grande necessidade de dinheiro». Outros estudos em contexto africano, tais como o de Karim et al.71 e de Needle et al.72 confirmam a influência da prática da prostituição para a infeção pelo VIH/Sida, sobretudo devido ao medo que estas mulheres sentem em negociar o preservativo com os clientes, ou, pelo contrário, porque têm benefícios em termos de pagamento se não utilizarem o preservativo.
Em suma, a literatura tem vindo a cimentar a constatação de que possuir história de cárcere e prostituição é mais um fator de risco e vulnerabilidade para a infeção pelo VIH/Sida nas mulheres, quer pelo seu risco direto através da partilha de seringas e contaminação sanguínea quer indireto, pelo efeito negativo que exerce em termos de controlo do comportamento sexual. Os resultados destes estudos fundamentam a necessidade de intervenções específicas junto de mulheres que se encontram envolvidas pela prática da prostituição.
Fatores de risco sociocognitivosTambém os fatores sociocognitivos, tais como o nível de conhecimentos acerca do VIH/Sida, as crenças e competências relacionadas com a prática do sexo seguro e a autoeficácia parecem ter influência na forma como a mulher africana se protege face ao VIH/Sida. Assim, passaremos a descrever cada um deles.
Nível de conhecimentos sobre o vírus da imunodeficiência humanaO nível de conhecimentos acerca do VIH/Sida é um fator de natureza sociocognitiva que influencia o percurso sexual das mulheres e, consequentemente, o seu nível de exposição à infeção pelo VIH. A literatura sugere que grande parte da população mundial permanece vulnerável ao VIH/Sida porque desconhece os conceitos básicos da doença e da sua transmissão73. A prevenção das DST e do VIH depende da consciência do risco e de um real conhecimento da doença e das formas de contágio e proteção. Assim, é necessário haver uma autoperceção adequada para se conseguir evitar comportamentos e situações de risco, o que só é possível com um adequado nível de conhecimentos acerca da doença4. Neste âmbito, o estudo de Hobfoll et al.74 permitiu constatar que mulheres grávidas solteiras (n=289) norte‐americanas tinham um baixo nível de conhecimento relativamente ao VIH/Sida e que o seu comportamento sexual, caracterizado pela ausência do preservativo, colocava‐as em risco face à infeção pelo VIH.
A falta de informação também influencia a decisão de fazer ou não o teste para o VIH. Um estudo desenvolvido por Campbell e Bernhardt75 permitiu verificar que a falta de informação acerca do VIH é um dos constrangimentos para a aceitação do teste pré‐natal face ao VIH por parte de algumas mulheres. Haile et al.76, no desenvolvimento de uma investigação em contexto sul‐africano, com uma amostra mista (n=429), constataram que um maior nível de conhecimentos acerca do VIH encontrava‐se associado a uma diminuição do preconceito em relação à realização do teste para o VIH.
Na literatura surgem diversas referências que apontam para elevados défices de informação acerca do tratamento, cura e origem do VIH/Sida, que influenciam o comportamento sexual de forma negativa. Em relação à cura, em países africanos, há crenças de que ter relações sexuais com uma jovem virgem elimina o vírus38. Por exemplo, em Moçambique encontram‐se relatos de que a Sida não é fatal e de que é possível identificar uma pessoa infetada apenas pela aparência53. De acordo com Monteiro77, muitos moçambicanos percebem o VIH como uma doença muito antiga que foi trazida pelos estrangeiros e transmitida, inicialmente, às mulheres, tratando‐se de uma doença que sempre foi e continua a ser curável de forma tradicional (nos curandeiros), dependendo do estádio em que se encontra.
Ainda em relação ao continente africano, Smith et al.78 compararam os conhecimentos, atitudes e comportamentos de estudantes australianos (n=920) e sul‐africanos (n=228), tendo concluído que os jovens sul‐africanos possuíam consideravelmente menores conhecimentos acerca do VIH, atitudes mais negativas face ao sexo seguro e maiores práticas sexuais de risco do que os seus homólogos australianos. Os sul‐africanos também se evidenciaram mais preconceituosos em relação a portadores do vírus VIH. A percentagem de mulheres africanas jovens (dos 15 aos 24 anos) que possuem conhecimentos adequados e suficientes acerca do VIH/Sida é muito baixa. São raríssimos os países africanos cuja percentagem de mulheres que têm um bom nível de conhecimentos acerca do VIH/Sida atinge os 40%69. Esta constatação é preocupante sabendo‐se que a África é a zona do globo mais atingida pela doença. Estes dados sugerem que sem um bom nível de conhecimentos acerca da doença não é possível atacá‐la e preveni‐la eficazmente.
O desconhecimento acerca do VIH/Sida é um dos fatores que continua a contribuir para a aceleração da doença em alguns países africanos77. No que respeita a alguns indicadores comportamentais e de conhecimento, podemos verificar que, em Moçambique, apenas 20% da população feminina consegue reconhecer as medidas de prevenção do VIH/Sida, comparativamente a 33% da população masculina; 37% da população feminina e 84% da população masculina referem ter tido relações sexuais com parceiros ocasionais nos últimos 12 meses; 27% das mulheres referem ter iniciado a sua vida sexual antes dos 15 anos (não existem dados quanto aos homens neste estudo, no entanto, outras investigações revelam que entre jovens moçambicanos do sexo masculino o início da atividade sexual antes dos 15 anos é menos frequente do que nas jovens do sexo feminino79); e 29% das mulheres e 33% dos homens moçambicanos referem não ter usado preservativo na sua última relação sexual1. Denota‐se assim um desfavorecimento da mulher no que se refere ao nível de conhecimentos sobre o VIH/Sida e comportamento preventivo. O fator «desconhecimento» continua a ser um dos responsáveis pela falta de ação imediata face ao VIH/Sida em Moçambique77.
Embora seja uma peça fundamental para a mudança comportamental, é um dado estabelecido que o conhecimento acerca da doença, por si só, não opera essa mudança8. Os resultados de um estudo desenvolvido por Monteiro e Vasconcelos‐Raposo80 com jovens estudantes portugueses, de ambos os sexos (n=5.890), demonstraram que há um desfasamento entre os conhecimentos acerca da doença e aquilo que expressam nos comportamentos sexuais: os jovens que demonstraram usar menos métodos de contraceção e evidenciaram maior multiplicidade de parceiros foram aqueles que, em média, tinham mais conhecimentos acerca do VIH/Sida. Os autores referem que o nível de conhecimentos acerca da doença pode propiciar um forte sentimento de controlo e confiança e, desta forma, minimizar a perceção de risco. O fornecimento de informação é uma peça fundamental a incluir nas estratégias de prevenção face ao VIH, mas esta tem que ser trabalhada juntamente com componentes motivacionais e um reportório de competências comportamentais81. Para se observar mudança comportamental é necessário integrar uma série de variáveis cognitivas, tais como conhecimentos de risco face ao VIH, atitudes face ao uso do preservativo, perceção de risco, intenção de mudança comportamental e autoeficácia percebida82. Mesmo quando se constata que existe informação suficiente sobre comportamentos de risco para o VIH/Sida, esta não é congruente com o comportamento sexual efetivo. No seguimento dos resultados do estudo desenvolvido por Vavrus83, é legítimo considerar que, mesmo reconhecendo que há uma forte relação entre o nível educacional e os conhecimentos acerca do Sida, a informação e formação direcionada para a prevenção do Sida tem que ir para além das intervenções educativas. Em África, particularmente, a formação em termos de VIH/Sida tem que ir para além da educação geral em termos de saúde. É necessário combinar o conhecimento em termos de prevenção com a aprendizagem de competências para a negociação de comportamentos sexuais seguros, adaptados ao contexto social local. Vavrus83 defende que há várias atividades que devem ser desenvolvidas no contexto africano e que devem ser sensíveis às especificidades culturais, sendo que algumas delas passariam por desenvolver ações de pares nas comunidades locais, onde as mulheres fossem envolvidas na aprendizagem de competências relacionais e de negociação. Por exemplo, de acordo com a UNFPA18, muitas mulheres apreciam a oportunidade de discutir as suas experiências e histórias de violência. Esta oportunidade pode ser encontrada no decorrer de intervenções mais elaboradas e estendidas no tempo, que treinam competências interpessoais. Por outro lado, as intervenções dirigidas à promoção do uso do preservativo devem também ter em linha de conta as normas sociais da população a que se dirigem84. É de extrema importância que os programas de prevenção do VIH dirigidos à redução do risco na mulher foquem os aspetos sociais que continuam a colocá‐las numa situação de desigualdade em relação aos homens29. A integração destes ingredientes de forma planeada e consistente só é possível em intervenções com múltiplas sessões e que se dediquem ao treino e aquisição de competências, pois oferecem tempo e espaço para a abordagem a estas questões tão elaboradas e complexas.
É indiscutível a importância que um nível de conhecimento elevado sobre a doença, vias de contágio, formas de prevenção, entre outras, assume na prevenção da doença e promoção da saúde sexual das mulheres. O poder do conhecimento na mudança comportamental depende de uma série de fatores como a classe social, o género, a etnia, o poder económico, etc.85. Ou seja, numa sociedade desigual o nível de conhecimentos que a mulher possui e o que opera com ele depende de muitos outros fatores individuais e sociais que medeiam a relação com as variáveis de resultado, o que faz com que o conhecimento, por si só, não seja sinónimo de comportamentos sexuais seguros efetivos.
Crenças e competências relacionadas com a prática do sexo seguroAs crenças que as próprias mulheres e a comunidade onde se inserem possuem acerca da sexualidade e do VIH/Sida podem colocá‐las em risco para a infeção e transmissão da doença. Estas crenças vão desde perceções negativas e conceitos deturpados acerca da eficácia do preservativo73,86, crenças acerca da relação e dedução de infidelidade por parte do parceiro aquando da solicitação do preservativo70,87–89, crenças comunitárias acerca da subjugação da mulher no que se refere à sexualidade38, até crenças erróneas acerca das causas, transmissão e cura do VIH38,53,54,90,91.
Gune70 e Wingood e DiClemente30 desenvolveram investigações com populações africana e afro‐americana, respetivamente, tendo verificado que o fator «confiança» é um dos maiores constrangimentos à utilização consistente do preservativo, tendo verificado que o preservativo se torna dispensável quando as relações sexuais envolvem parceiros habituais em quem confiam e que a simples solicitação do preservativo pode ser assumida pelos parceiros como um indicador de infidelidade.
Em algumas culturas africanas há ainda a crença de que a prática de sexo com raparigas virgens mantém os homens jovens e evita ou cura a infeção pelo VIH. Estas crenças têm contribuído para encorajar o casamento de meninas quase na infância e a disseminação do VIH entre mulheres muito jovens38,90,91. As crenças relacionadas com a medicina tradicional também influenciam os comportamentos e atitudes em relação à proteção sexual. Os resultados de uma investigação desenvolvida por Plummer et al.92 na Tanzânia demonstraram que há pessoas que procuram explicação e cura para o VIH na medicina tradicional, ou seja, nos curandeiros, onde a causa do VIH/Sida é atribuída a «bruxarias» e questões sobrenaturais, acreditando‐se que esta doença também pode ter cura. Esta é uma constatação alarmante, na medida em que se diminui a perceção de gravidade da doença e a responsabilidade pessoal, acreditando‐se que ela tem cura e fácil. Conclui‐se assim que a ausência de conhecimentos corretos acerca do VIH/Sida e suas formas de prevenção, frequentemente, dá lugar a uma série de crenças que vão sendo assumidas e validadas socialmente.
Quando se aborda a questão das influências psicossociais nos comportamentos de risco para o VIH/Sida na mulher não se podem descurar uma série de componentes sociocognitivas, tais como, (1) a perceção de risco, (2) a perceção da eficácia da resposta, (3) a perceção de custos da prática sexual segura e (4) a autoeficácia. Neste sentido, a literatura tem vindo a sugerir que as mulheres que relatam envolvimento em comportamentos sexuais de risco tendem a não se percecionarem como estando em risco82,93,94, o que realça a importância da perceção de risco ou de suscetibilidade face ao VIH neste tipo de abordagem.
A baixa perceção de risco apresenta‐se como um fator de risco para o VIH. Hobfoll et al.93 verificaram que mulheres grávidas solteiras não se percecionavam como estando em risco para o VIH, embora considerassem que os heterossexuais em geral estavam. Kibombo et al.95, num estudo com adolescentes de ambos os sexos (n=5.112), do Uganda, revelaram que a perceção de risco destes jovens para o VIH está fortemente associada aos comportamentos sexuais. No caso dos homens, há uma forte associação entre a elevada perceção de risco e o aumento dos comportamentos protetores (abstinência, fidelidade total e uso do preservativo). No que se refere às mulheres, esta associação não é tão significativa. Os autores defendem esta diferença a partir de fatores económicos e sociais que influenciam esta relação. Na sua opinião, independentemente do seu comportamento sexual, as mulheres sentem‐se altamente vulneráveis ao VIH. No entanto, há constrangimentos de ordem social (e. g. dependência económica) que impedem a efetivação de comportamentos sexuais mais seguros.
No que se refere à perceção da eficácia na resposta, a literatura sugere que as mulheres que acreditam na eficácia de métodos protetores são aquelas que tendem a usá‐los efectivamente89,90,93,96. Por exemplo, um estudo de Anderson et al.90 revela que as mulheres que relataram que acreditavam que os preservativos e os espermicidas as protegiam contra as DST, possuíam 2 vezes mais probabilidade de utilizarem sempre ou quase sempre o preservativo no decorrer das relações sexuais. Em relação a esta questão há estudos que demonstram que, quando sujeitas a intervenções que desmistificam a natureza e uso do preservativo, as mulheres aumentam a crença na sua eficácia96, facto que encoraja a criação de espaços que treinem competências para o uso do preservativo como forma de o desmistificar e este ser percebido como uma medida de proteção sexual verdadeiramente eficaz.
Quanto à perceção de custos na utilização do preservativo, a literatura sugere que a mudança comportamental em relação ao comportamento sexual, nomeadamente o uso do preservativo, dá‐se tendo por base, entre outros aspetos, a avaliação dos inconvenientes que esta modificação pode causar97. As barreiras prendem‐se essencialmente com questões ligadas às dificuldades práticas com os preservativos. Nos homens, os custos encontram‐se associados, sobretudo, a questões ligadas à interferência na ativação sexual e a questões relacionadas com a perda de confiança98. Neste seguimento, Anderson et al.90 referem que as atitudes acerca dos preservativos e a efetiva utilização dos mesmos encontram‐se associadas, na medida em que verificaram que aqueles que os usam desenvolvem atitudes mais positivas em relação aos mesmos.
Em relação à autoeficácia, são vários os estudos que confirmam a importância desta variável na prática de comportamentos sexuais seguros, tal como se descreverá de seguida.
AutoeficáciaA auto‐eficácia é um constructo que define que as pessoas tendem a evitar as situações que julgam exceder as suas capacidades e a enfrentar aquelas que se julgam capazes de gerir. Assim, quanto maior for a perceção de eficácia, mais persistente é o esforço face a um dado comportamento99.
São vários os estudos desenvolvidos com amostras de população feminina e mista que têm evidenciado a importância de elevados níveis de autoeficácia na efetivação de comportamentos sexuais seguros. Giles et al.100 desenvolveram uma investigação com 152 jovens (48% do sexo masculino e 52% do sexo feminino) com o objetivo de identificar os determinantes individuais e de grupo que predizem o uso do preservativo. Demonstrou‐se que a autoeficácia, juntamente com as normas subjetivas, foram as variáveis que melhor predisseram a intenção do uso do preservativo neste grupo de jovens. Uma outra investigação desenvolvida por Muñoz‐Silva et al.101, com uma amostra de jovens, neste caso estudantes universitários portugueses e espanhóis (n=603), de ambos os sexos (345 mulheres e 258 homens), demonstraram que a autoeficácia, juntamente com as atitudes e as normas subjetivas, foram os melhores preditores para a intenção do uso do preservativo nesta mostra. Pallonen et al.102 estudaram uma amostra afro‐americana, heterossexual e consumidora de crack e constataram que a autoeficácia, juntamente com a responsabilidade pessoal, se encontrava associada à mudança no sentido de comportamentos sexuais mais seguros.
A relação entre a autoeficácia e o comportamento sexual não é linear. A literatura sugere que as características da relação medeiam a relação entre os níveis de autoeficácia e os comportamentos sexuais da mulher. Uma investigação desenvolvida por Zhao et al.103 com uma amostra de prostitutas chinesas (n=309) revelou que elevados níveis de autoeficácia encontravam‐se positivamente correlacionados com competências de negociação e com a intenção para o uso do preservativo com os clientes. No entanto, quando se tratava dos parceiros estáveis, os resultados não se confirmavam. Estes dados sugerem que a ideia de confiança e fidelidade assumidas nas relações estáveis criam um falso sentido de segurança que constitui uma barreira ao sexo seguro87,104.
No que se refere a estudos acerca da importância da autoeficácia nos comportamentos de risco na mulher africana, estes, mais uma vez, escasseiam. No entanto, é possível atender aos resultados de alguns estudos efetuados com mulheres africanas a residir noutros países. Por exemplo, O‘Leary et al.105 estudaram mulheres afro‐americanas em risco para o VIH (n=564), cujo objetivo principal foi avaliar a eficácia de uma intervenção designada de «Sister‐to‐Sister». Os autores verificaram que a autoeficácia foi um dos mais importantes preditores para o sexo seguro nestas mulheres. Também um estudo comparativo, entre mulheres portuguesas e cabo‐verdianas, desenvolvido por Rogado e Leal106, com o objetivo de avaliar a autoeficácia, crenças e comportamentos sexuais de risco entre os 2 grupos confirmou a importância da autoeficácia como preditor de comportamentos sexuais protegidos. Nesta investigação, o grupo de mulheres cabo‐verdianas foi aquele que evidenciou menores níveis de autoeficácia e maiores níveis de crenças negativas face ao uso do preservativo e, consequentemente, mais práticas sexuais desprotegidas. As mulheres portuguesas, em termos de crenças e autoeficácia, posicionaram‐se de forma clara no sentido de crenças favoráveis face ao uso do preservativo e de um bom nível de autoeficácia. Aqui a idade do parceiro mostrou estar correlacionada negativamente com a autoeficácia, o que confirma a ideia de que, sendo mais velhos, os homens têm mais experiência no campo sexual, podendo com maior facilidade impor as suas ideias, dando origem a que a parceira se coloque num plano inferior, o que diminui os seus níveis de autoeficácia face ao uso do preservativo. Este estudo permitiu ainda clarificar a ideia de que os níveis de autoeficácia, frequentemente, estão associados a questões culturais. Na opinião das autoras, sendo a autoeficácia face ao uso do preservativo influenciada por uma série de fatores, tais como a capacidade de comunicação acerca da sexualidade e capacidade de negociar com o parceiro, pode‐se tornar mais difícil para as mulheres cabo‐verdianas atingir os mesmos níveis de autoeficácia do que as mulheres portuguesas, na medida em que, culturalmente, é mais difícil para as primeiras falarem sobre sexualidade. Outra investigação desenvolvida por Williams et al.107, com uma amostra de homens e mulheres afro‐americanos (402 homens e 157 mulheres), evidenciou que a autoeficácia era uma importante variável para o uso do preservativo em ambos os sexos. No entanto, numa análise comparativa, os autores verificaram diferenças entre homens e mulheres, estando as mulheres mais influenciadas pela autoeficácia no uso do preservativo do que os homens. Nas mulheres, a autoeficácia juntamente com as normas pessoais e subjetivas apresentaram‐se como os melhores preditores para a intenção do uso do preservativo. Já nos homens, verificou‐se que as normas pessoais demonstraram ser a variável que melhor prediz a intenção para o uso do preservativo.
Concluindo, baixos níveis de autoeficácia no que se refere à utilização e negociação do preservativo colocam as mulheres em risco para o VIH/Sida. Assim, a abordagem da autoeficácia nas intervenções que visam a promoção da saúde sexual e prevenção do VIH é da maior importância. Como já se verificou, por vezes, os parceiros são a própria barreira à utilização do preservativo, o que obriga a uma capacidade de avaliação de eficácia destas mulheres108.
ConclusãoA revisão da literatura aqui apresentada revela que há fatores de risco de natureza psicossocial e sociocognitiva que contribuem para a vulnerabilidade da mulher face ao VIH/Sida, particularmente aquelas que se encontram em situações conjunturais mais desfavoráveis, como é o caso das mulheres africanas. Será legítimo considerar que as circunstâncias de vida desfavoráveis destas mulheres influenciam o risco em que se encontram e dificultam qualquer esforço de mudança. Variáveis pessoais, como as competências de negociação do sexo seguro no contexto relacional, assim como a autoestima e a autoeficácia, são também fatores importantes na proteção da mulher face ao VIH/Sida. Estes dados têm implicações ao nível das estratégias de prevenção na população feminina. Considera‐se essencial planear e concretizar intervenções que visem a promoção da saúde sexual e prevenção do VIH/Sida na mulher em geral e na mulher africana em particular, que integrem uma compreensão dos fatores psicossociais e cognitivos aqui revistos e que possam estar a constranger os esforços de prevenção. Esforços globais de intervenção com mulheres e seus parceiros e agentes de saúde tradicionais e não tradicionais são muito importantes para a mudança cultural e do contexto em que os comportamentos sexuais se desenrolam. No entanto, vários fatores psicossociais identificados nesta revisão da literatura são maleáveis à mudança através de intervenções educativas e cognitivo‐comportamentais que podem ser dispensadas em pequeno grupo ou individualmente7,8,107‐110.
Vários estudos demonstram que fatores como a vitimização, o contexto relacional, o nível de conhecimentos acerca do VIH/Sida, as crenças e competências relacionadas com a prática do sexo seguro devem ser integrados como estratégia essencial no desenvolvimento de programas de intervenção adaptados e eficazes na prevenção do VIH/Sida na mulher. Neste âmbito, considera‐se muito pertinente atender às características sociocognitivas e psicossociais particulares da mulher africana, na medida em que são aquelas que se encontram mais atingidas pelo VIH/Sida e em condições contextuais que agravam a sua vulnerabilidade.
O presente trabalho é parte de um projeto de doutoramento realizado na Escola de Psicologia da Universidade do Minho, apoiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia Portuguesa (referência SFRH/BD/37909/2007).
O presente trabalho é parte de um projeto de doutoramento, realizado na Escola de Psicologia da Universidade do Minho, apoiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia Portuguesa (referência SFRH/ BD/ 37909/ 2007).