Há precisamente 130 anos, em 1885, Ricardo Jorge (Porto, 1858‐Lisboa, 1939) reunia em livro um conjunto de quatro conferências que um ano antes tinha proferido na sequência do debate sobre a polémica questão dos cemitérios públicos que dividia muita gente em todo o país (e não apenas no norte), incluindo a profissão médica e a desprestigiada e inoperante Junta Consultiva de Saúde Pública. As conferências versaram sobre: (i) a evolução da legislação e das políticas de saúde pública (“higiene”) em Portugal; (ii) a evolução das sepulturas; (iii) inumação e cemitérios; e (iv) cremação. O livro tem um título sugestivo: “Higiene Social Aplicada à Nação Portuguesa”1.
Considerado o “founding father” do nosso moderno sistema da saúde pública (1899‐1901), criado “sob o aguilhão da peste”, Ricardo Jorge começava, aos 26 anos, o seu “apostolado” das novas ideias e conceitos sanitaristas, à luz do positivismo da época. Trocava assim a neurologia, de que fora um dos precursores em Portugal, pela saúde pública como área principal de interesse científico e profissional.
Na primeira dessas conferências, proferida em 3/8/1884, o autor faz uma demolidora crítica ao sistema de saúde pública, herdado da reforma de 1868, e assume‐se, desde logo, como um espírito humanista, lúcido, combativo e corajoso, zurzindo forte e feio na nossa tacanhez intelectual e cultural, fruto do analfabetismo da grande maioria e da iliteracia científica da elite dirigente. Eis como ele descreve, no seu estilo contundente, mordaz, inconfundível, o regime de administração sanitária, aprovado pelo decreto de 3 de dezembro de 1868, sob o governo de Alves Martins, considerado como um retrocesso em termos do incipiente desenvolvimento das estruturas de saúde pública do liberalismo: “Filho de danado coito burocrático, em sacrilégio aberto com a ciência – a única mãe legítima, cujo ventre fecundo e seio ubérrimo ignobilmente repeliu – nasceu acéfala, ápode e vazia, como um odre soprado”1(op.cit.,p.25).
Estamos, então, a assistir na Europa e em Portugal à emergência da profissão médica que só na alvorada do séc. XX é que verdadeiramente se unifica e se impõe, com o apoio das elites dirigentes e graças à crença positivista na ciência, na ordem e no progresso.
Em “Higiene Social Aplicada à Nação Portuguesa” há já algumas das ideias‐chave do “making of” da reforma da saúde pública de 1889‐1901, protagonizada por Ricardo Jorge e inspirada nos melhores modelos estrangeiros, e nomeadamente o inglês e o alemão: (i) a autoridade de saúde a nível distrital; (ii) a centralização das funções executivas; (iii) a profissionalização do pessoal sanitário, com protagonismo para os médicos.
Curiosamente, a expressão “higiene social” acabou por ser preterida por outras, e nomeadamente por “saúde pública” ou “public health”. Nos EUA, a expressão “social hygiene” tinha uma definição ao mesmo tempo mais ampla e mais redutora do que no continente europeu, surgindo nos finais do séc. XIX, princípios do séc. XX. Por um lado, está associada às medidas de proteção e promoção da família enquanto instituição social; por outro, designa um campo mais específico, o dos princípios e práticas de prevenção e combate contra a turberculose, as doenças venéreas e a prostituição.
Em França, era sinónimo de saúde pública, mas também tinha uma aceção próxima da higiene mental e da “fisiologia moral”2. Por sua vez, Jules Rochard (1819‐1896), médico, inspetor do serviço de saúde da marinha francesa, publicava em 1888 o “Traité de hygiène sociale”3.
Já como diretor geral de saúde, Ricardo Jorge, ao tempo da República, vai‐se interessar pelos temas do alcoolismo, das doenças venéreas e da prostituição. Na Conferência Sanitária dos Países Aliados, em 1920, ainda no rescaldo da I Grande Guerra, Ricardo Jorge defende a militarização da higiene, propondo uma “higiene militante” (sic), de paredes meias com os projetos musculados de “totalitarismo sanitário” que irão surgir em breve na Europa entre as duas guerras, e fazendo a sua proclamação de fé, inquebrantável, na ciência, perante os seus pares da Organização Internacional da Higiene Pública, na esteira de Spencer: “Maintenant, (…) l’hygiène ne peut pas être envisagée sous l’angle strict de la medicine préventif: elle est, elle sera de plus en plus une science sociale, visant l’ homme collectif dans son intégrité physique. Le corp saint doit s’allier à l’esprit sain (…)” 4(p.7).
Com a reforma de 1899‐1901, consagram‐se os conceitos do moderno sanitarismo, o de 1ª geração, os quais começam lentamente a influenciar não só a legislação, como a política e a administração de saúde em Portugal, além do próprio ensino e investigação no campo das ciências da saúde (com a criação, logo em 1899, do Instituto Central de Higiene e, ainda antes, do Real Instituto Bacteriológico, em 1892, a par do Hospital Colonial e da Escola de Medicina Tropical, em 1902).
Têm, os portugueses de hoje, uma dívida de gratidão a Ricardo Jorge por ter sido o arquiteto do nosso moderno sistema de saúde pública. Muitas vezes visto, de uma perspetiva iatrocêntrica e hagiográfica, como um homem “genial” e “providencial”, “o nosso maior higienista de todos os tempos”, temido e admirado por muitos dos seus contemporâneos, incensado no Estado Novo, hoje esquecido (apesar de ser o patrono do Instituto Nacional de Saúde, herdeiro do pioneiro Instituto Central de Higiene), devemos ver o seu contributo, ao nível legislativo, organizativo e concetual, com mais objetividade, rigor e distanciamento crítico.
A reforma da saúde pública vai surgir num contexto político altamente desfavorável, o da desagregação da monarquia constitucional. Por outro lado, Ricardo Jorge nunca terá morrido de amores pela República (até pelas suas más relações pessoais com homens como Afonso Costa e Teófilo Braga), apesar dos relevantes serviços prestados nesse período ao país (v.g., direção‐geral de saúde, finalmente separada da assistência pública; apoio médico ao corpo expedicionário português na I grande guerra; combate à gripe pneumónica de 1918‐19). Política e ideologicamente era um independente, se não mesmo um conservador, com sensibilidade social e uma vasta cultura humanística. Em boa verdade, ao longo de quase três décadas, Ricardo Jorge serve a “coisa pública”, sob três regimes políticos: a monarquia constitucional, a república, e a ditadura militar/Estado Novo. Não menos verdade, pouco se conhece do seu pensamento político como cidadão e homem público (já que o tratamento e a divulgação da sua vasta correspondência estão por fazer).
Provavelmente o mais importante desta reforma (que, em grande parte, ficou no papel, apesar dos “acrescentos”, de 9/2/1911 e 12/10/1926) vai ser a criação do Instituto Central de Higiene, mais tarde Instituto Superior de Higiene, que iria desempenhar, na 1ª metade do séc. XX, um importante papel na educação, formação e investigação em saúde pública, formando um corpo qualificado de médicos e engenheiros sanitários, apesar da crónica escassez de recursos (humanos, técnicos, financeiros, logísticos): a partir de 1903, começam a funcionar regularmente os primeiros cursos de medicina sanitária (ou saúde pública) e de engenharia sanitária. E em 1912, Ricardo Jorge cria os Arquivos do Instituto Central de Higiene. Em 26/11/1962, a Câmara Corporativa dá parecer favorável à proposta de projeto lei n° 519/VII sobre a criação da Escola Nacional Saúde Pública. Quatro anos depois, através do Decreto‐Lei n° 47102, de 16 de julho, em plena guerra colonial, o governo optou pela criação da Escola Nacional de Saúde Pública e de Medicina Tropical, com funções de ensino, investigação e divulgação em saúde pública e em medicina tropical.
A grande paixão de Ricardo Jorge era a saúde pública, tal como ele a via implantada nos “países civilizados” (sic). Tinha como divisa de vida, o provérbio latino, adaptado de poeta e dramaturgo romano Públio Terêncio Afro (c. 185‐c.159) “Medicus sum, nihil a me alienum puto” [sou médico e como tal nada me é estranho]. Não foi, porém, capaz de a articular com um sistema de proteção social da população trabalhadora, o que só viria a acontecer com a República e a sua tentativa (de resto, falhada) de criar as bases do Estado Providência, assente nos seguros sociais obrigatórios, incluindo um verdadeiro sistema de saúde integrado como aquele que só muito tardiamente, com a reforma de Gonçalves Ferreira de 1971, e os centros de saúde de 1ª geração, irá dar origem, em 1979, ao sistema nacional de saúde.
De facto, só nos finais do Estado Novo, em pleno consulado de Marcelo Caetano, é que seria reconhecido, explicitamente, o direito à saúde e a consequente responsabilização do Estado, na sequência da nova lei orgânica do Ministério da Saúde e Assistência (Decreto‐Lei n° 413/71, 27 de setembro), e se começa, timidamente, a criar uma rede de cuidados de saúde primários. Davam‐se então, finalmente, alguns passos decisivos para a universalização dos cuidados de saúde, com um atraso de décadas em relação à generalidade dos países europeus ocidentais.
Ricardo Jorge pode não ter sido um visionário (até pelas circunstâncias históricas em que viveu, numa época em que ainda estávamos longe da transição demográfica e epidemiológica, com um modelo de desenvolvimento económico, capitalista, periférico e atípico, sofrendo sucessivos fatores de bloqueio). Mas foi um reformador e, seguramente, um grande patriota. Pela sua ação e pelo seu exemplo (a par da sua obra científica e literária, que é imensa) torna‐se credor da nossa admiração, e deve ser lembrado ao lado de grandes figuras da medicina e da saúde pública portuguesas, como Sanches Ribeiro (Penamacor, 1699 – Paris, 1783), autor, entre outros, do “Tratado da conservação da saúde dos povos” 5), ou mais recentemente F. A. Gonçalves Ferreira (Aguiar da Beira, 1912‐Lisboa, 1994) de que a Fundação Calouste Gulbenkian (com prefácio, nota biográfica e apresentação de António Correia de Campos) acaba de editar três grossos volumes, num total de cerca de 4 mil páginas, com algumas das suas obras que vão ficar para a história da saúde pública (incluindo o seu seminal tratado sobre a “nutrição humana”).
Sanches Ribeiro, por seu turno, era, para Ricardo Jorge, um autor de culto: o seu pioneiríssimo “Tratado da Conservação da Saúde dos Povos” (“escrito em português e para os portugueses”, em 1757) era apresentado, por ele, em 1906, como “o primeiro livro em que a medicina pública e preventiva se constituía em arte social e em princípio do governo popular” 6.
Ricardo Jorge conheceria, como é sabido, sucessivos “obstáculos e desilusões” na realização dos seus planos de desenvolvimento da saúde pública. Um das grandes críticas que lhe fazem (e que é de resto aplicável a muitos dos nossos reformadores nacionais), foi a da ingenuidade de querer mudar por decreto ou por simples voluntarismo, ignorando ou escamoteando a complexidade do contexto societal e as vicissitudes do processo de mudança. E aqui vale a pena citar J.C. Sournia7(p.375) médico e antigo diretor geral de saúde francês, que escreve, nas conclusões do seu livro sobre a História da Medicina: “O último meio século de história da medicina é rico em avanços consideráveis em todos os ramos da arte de curar. Não há, no entanto, motivo para nos orgulharmos”. Primeiro,“os médicos não são os únicos artesãos deste progresso” e, depois, “os nossos sucessos são precários”. Apesar da sua entusiástica crença no positivismo, também Ricardo Jorge, hoje, se fosse vivo, subscreveria a tese de que o desenvolvimento sanitário de um país está longe de ser o resultado do progresso imparável das ciências e técnicas médicas. Evocar a história e a memória da saúde pública, é também lembrar a velha máxima: Quem não sabe de onde vem, também dificilmente saberá para onde vai.