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Vol. Tematico. Núm. 10.
Páginas 81-88 (noviembre 2010)
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Vol. Tematico. Núm. 10.
Páginas 81-88 (noviembre 2010)
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Perspectivas do Direito da Saúde em Segurança do Doente com base na experiência norte-americana
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Paula Lobato de Fariaa
a Professora Associada de Direito da Saúde e Biodireito da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa
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As questões da segurança do doente e da gestão de risco começam a ser uma área de actividade crescente a nível mundial para advogados, gestores de saúde, médicos, enfermeiros e outros profissionais que trabalham no sector dos cuidados de saúde. No âmbito de uma perspectiva de Direito da Saúde, este artigo tenta analisar as lições da história e a experiência dos Estados Unidos do América, país onde em 1999 o relatório To err is human — Building a safer health system do American Institute of Medicine (IOM) revelou de forma dramática a existência de 44.000-99.000 mortes por ano causadas por "erros médicos" (eventos adversos preveníveis em cuidados de saúde), identificando-os como a 8.ª causa principal de morte no país, superando as mortes por acidentes de trânsito (44.458), cancro da mama (42.297) ou SIDA (16.516) e onde em estudos recentes se tem questionado a eficácia das abordagens regulamentares e das estratégias que têm sido implementadas nos últimos 10 anos, na sequência das recomendações formuladas no referido relatório. Apesar de os "eventos adversos" não serem na sua maioria resultado de negligência, como demonstrado pelo famoso estudo Harvard Medical Practice Study III (1991), quando causa de danos, podem sempre dar origem a uma acção em tribunal contra os profissionais de saúde e/ou a instituição, situação que eventualmente resultará numa obrigação por parte destes em indemnizar a(s) vítima(s). Assim, desde há algum tempo que as questões da segurança do paciente e da gestão de riscos para a prevenção de "erros médicos" nas unidades de saúde passaram a ser objecto regular de análise na área académica do Direito da Saúde nos EUA, pelo que aqui tentaremos expor os tópicos mais relevantes desta análise e as suas principais conclusões, tentando, na parte final, apresentar, à luz da experiência norte-americana, recomendações que visam ajudar a tentar encontrar os instrumentos legais e regulamentares idóneos para alcançar o objectivo de prevenir eficazmente o "evento adverso" nas unidades de saúde em Portugal. No entanto, é convicção básica neste artigo, a ideia de que a construção de uma verdadeira "cultura de segurança" não depende apenas da existência de um quadro legal adequado, mas de um esforço de natureza multidisciplinar e da criação de um ambiente de não-culpabilização dos profissionais de saúde, pois o risco é inerente ao sector de cuidados de saúde, subsistindo mesmo perante um pleno cumprimento das leges artis e das normas de segurança.
Palavras-chave:
Segurança do doente
Gestão do risco
Unidades de saúde
Direito da saúde
Estados Unidos da América
The issues of patient safety and risk management are now beginning to be worldwide growing concerns for lawyers, health managers, physicians, nurses and other professionals who work in the health care sector. This article aims to present the issue of risk management and safety in health from a legal perspective, trying to learn from the history and experience of the United States of America, country where the 1999 report "To err is human — Building a safer health system" of the American Institute of Medicine" (IOM) dramatically revealed a number of 44.000 to 99.000 deaths per year caused by "medical errors" (preventable adverse events in health care), identifying them as the 8th leading cause of death in that country, surpassing deaths from road traffic accidents (44.458), breast cancer (42.297) or AIDS (16.516) and where recent studies have questioned the effectiveness of the regulatory approaches and strategies that have been implemented in the last 10 years, as the result of the recommendations made in the aforementioned report. Although "adverse events" are not usually the result of negligence, as the famous Harvard Medical Practice Study III (1991) showed, when they are harmful, they can always give rise to an action in court against the health professional and / or the institution, situation which may eventually lead into an obligation on their part to indemnify the victim(s). Hence, since recently, the issues of patient safety and risk management for the prevention of "medical errors" in health care units have also turned to be regular subjects of analysis in the academic area of Health Law in the US. In this article we try to show the highlights of this analysis and its main conclusions, trying at the end of the article to make, at the light of the North-American experience, recommendations which aim to help to find the correct legal and regulatory instruments to achieve the objective of effectively preventing the "adverse event" in health care units in Portugal. We have the conviction that a true "safety culture" does not depend entirely on a binding regulatory framework, but on a multidisciplinary effort and on a non-fault environment for today's health professionals, bearing in mind that in the health care sector risk is inherent, even when there is a strict adherence to the leges artis and safety standards.
Keywords:
Patient safety
Risk management
Health care units
Health law
United States
Texto completo

Introdução

" (...) improving safety requires a multidimensional approach."

Wachter, 2004, p.537 1

As questões da segurança do doente e da gestão do risco são hoje problemas candentes na actividade dos juristas, gestores de unidades de saúde, médicos, enfermeiros e outros profissionais que se dedicam aos cuidados de saúde em todo o mundo (1).

(1) "Today's health-care context is highly complex. Care is often delivered in a pressurized and fast-moving environment, involving a vast array of technology and, daily, many individual decisions and judgments by health-care professional staff. In such circumstances things can and do go wrong. Sometimes unintentional harm comes to a patient during a clinical procedure or as a result of a clinical decision. Errors in the process of care can result in injury. Sometimes the harm that patients experience is serious and sometimes people die". 2

O presente artigo pretende apresentar a questão da gestão do risco e da segurança em saúde sob a perspectiva legal, tentando aprender com a história e a experiência dos Estados Unidos da América, país onde o relatório "To err is human — Building a safer health system", do Institute of Medicine (IOM) 3 revelou dramaticamente um número de 44.000 a 99.000 mortes por ano (2) provenientes de "erros médicos" (eventos adversos evitáveis em unidades de saúde), identificando-os como a 8.ª causa de morte naquele país, ultrapassando as mortes por acidentes de viação (44.458), cancro da mama (42.297) ou SIDA (16.516) e onde estudos recentes (por ex. Safe Patient Project, 2009) têm posto em causa a eficácia das abordagens e estratégias normativas que se implementaram nos últimos 10 anos, fruto das recomendações apresentadas no já citado relatório do IOM.

(2) Em Portugal não se fez ainda nenhum estudo passível de nos dar os números exactos, pelo que não há dados oficiais disponíveis, no entanto, será possível estimar entre 1.300 a 2.900 mortes anuais por "eventos adversos evitáveis", por extrapolação dos números norte-americanos aos do nosso país. 4

O tema é muito complexo, exigindo uma abordagem "multidimensional", pelo que neste artigo não nos limitamos às questões puramente jurídicas ou legais, tentando analisar as questões sob o olhar mais abrangente da Saúde Pública.

É importante notar, à partida, que a expressão "erro médico" ou "erro em medicina", tradução literal da expressão medical error utilizada nomeadamente em 1994, no famoso estudo de Lucian L. Leape 5 tem sido amplamente contestada pela carga negativa que contém em relação à profissão médica, pelo que se tem recentemente tentado substituí-la por outras designações mais pró-activas e abrangentes, tais como "erro em cuidados de saúde", "risco iatrogénico" ou mesmo "segurança do doente" (3). Neste artigo optámos por utilizar o termo abreviado "evento adverso" 6,7 como sinónimo de "evento adverso evitável em unidades de saúde", o qual preferimos ao termo redutor comummente utilizado de "erro médico".

(3) Nota do autor: Nenhuma destas expressões tem uma aceitação consensual, sendo que a comunidade médica prefere falar de "risco clínico" ou "risco iatrogénico", enquanto os profissionais da saúde pública preferem a expressão "gestão do risco clínico" ou "segurança do doente". Não existe literatura específica sobre esta ainda recente discussão terminológica, mas nos próximos anos espera-se, pelo menos, abolir a expressão "erro médico" que se apresenta indubitavelmente errónea e refutável.

Mesmo não sendo habitualmente fruto de negligência (4), como o demonstrou o famoso relatório Harvard Medical Practice Study III 8, os "eventos adversos", sobretudo quando danosos (5), podem sempre vir a dar origem a uma acção em tribunal contra o profissional de saúde e/ou a instituição, o que poderá culminar eventualmente, numa obrigação por parte destes em indemnizar o(s) doente(s) lesado(s). Daí que a questão da segurança do doente e da gestão do risco em unidades de saúde para a prevenção dos "erros médicos" passou, também, a partir de 2000 a ser um dos temas de debate obrigatório na área do Direito da Saúde naquele país 6,9,10.

(4) Termo jurídico que significa a existência de um elemento de culpa no erro, ou seja, o aditamento do elemento negligência traduz um "erro culposo".

(5) O "evento adverso" pode não provocar dano, ou seja, mesmo tendo existido um procedimento errado este pode não ter causado qualquer dano ao doente. Este facto impede uma acção em tribunal para pedido de indemnização por danos, no entanto, poderá sempre existir outro tipo de processo jurídico, por ex. um processo disciplinar contra o/os profissional/is envolvidos. Também existe uma realidade denominada em língua inglesa near miss que resulta da situação em que um "evento adverso" não chegou a ocorrer porque foi detectado a tempo. Todas estas situações têm consequências jurídicas de natureza diferente, pois quando não existiu dano não será possível accionar os mecanismos da responsabilidade civil e penal (salvo raras excepções). Será, contudo, possível accionar a responsabilidade disciplinar se o acto que levou ao near miss tiver sido causado por uma quebra de um imperativo deontológico ou das leges artis.

Para além dos custos financeiros e psicológicos de qualquer acção em tribunal, os eventos adversos que causam danos, podem ter ainda um ónus económico elevadíssimo na gestão de cuidados de saúde, pelo que a sua prevenção permitirá evitar o peso de tais despesas extra.

No final deste artigo fazem-se recomendações, indicando alguns instrumentos legais e jurídicos que poderão funcionar para alcançar o objectivo de prevenir eficazmente o "evento adverso" em unidades de saúde em Portugal, no entanto, chamamos a atenção para o facto de que há que ter em conta que uma verdadeira "cultura de segurança" não depende só das normas sectoriais que possam vir a ser aprovadas, mas de todo um ambiente envolvente que passa obrigatoriamente por uma justiça não condenatória dos profissionais que hoje prestam cuidados de saúde ou gerem unidades de saúde, pois este é um sector onde o risco é inerente (6), mesmo existindo um cumprimento rigoroso das leges artis e das normas de segurança.

(6) Num recente artigo nacional, cujos autores são médicos, torna-se muito evidente a importância do risco e da sua avaliação no exercício diário da medicina. Pensamos que este tipo de doutrina oriunda da prática profissional em saúde deveria ser de leitura obrigatória para os agentes jurídicos, nomeadamente os juízes e advogados envolvidos num qualquer processo de responsabilidade por danos clínicos 11.

O "evento (11) iatrogénico" é uma realidade incontornável em medicina, facto que deveria ter relevância no Direito, como por exemplo na adopção em Portugal de um sistema de responsabilidade objectiva (isto é, não baseado na culpa dos agentes) na compensação por danos em unidades de saúde, tal como existe já há várias décadas na Finlândia (desde 1987) 12,13 ou, pelo menos, de um sistema mais justo e menos penoso judicialmente para doentes e profissionais, tal como, aqui mais perto, o novo regime francês de compensação arbitral de alguns danos mais graves ocorridos em doentes (7).

(7) Este sistema, conhecido por ONIAM (Office National d'Indemnisation des Accidents Médicaux) foi criado pela Loi du 4 mars 2002 relative aux droits des malades et à la qualité du système de santé. 14

Existem, aliás, uma série de factores que indiciam que haverá certamente uma tendência para um crescimento das acções em tribunal por danos causados em unidades de saúde:

— O aumento crescente do número de doentes e de actos médicos, devido à evolução previsível da pirâmide demográfica (aumento do número de pessoas em idades avançadas mais carentes de cuidados de saúde);

— A existência permanente de tecnologias e medicamentos novos e muito diferenciados com efeitos não previsíveis por vezes ou com elevados riscos;

— A conjuntura de contenção de despesas a qual implicará factores de aumento de eventos adversos nas unidades de saúde provenientes dos cortes em recursos humanos e materiais, para além de criar mais stress nos profissionais, o que acresce aos factores de risco;

— O crescente poder reivindicativo das vítimas de dano médico, fruto não só de uma maior educação nestas áreas por parte dos utentes de unidades de saúde, mas, também, pela enorme mediatização que os casos de "eventos adversos danosos" têm, funcionando a comunicação social como um veículo de defesa imediato das vítimas deste tipo de ocorrências (8).

(8) Todos os casos em que um "evento adverso" numa unidade de cuidados gera danos graves a comunicação social dá-lhes cobertura de primeira página ou de abertura de tele (ou rádio) jornais. O exemplo mais recente e mais mediatizado foi o de um caso da troca de medicamentos no Hospital de Santa Maria que levou a danos nos olhos de 6 doentes 15.

Por conseguinte, a procura das medidas legais adequadas e eficientes no combate ao flagelo do erro clínico surge como uma das preocupações mais prementes na área da governação em saúde (9).

(9) Veja-se por exemplo o trabalho feito em Portugal, liderado pela Direcção-Geral da Saúde, a qual através do Departamento da Qualidade criou um Grupo de Trabalho em 2008 sobre as questões legais ligadas à segurança do doente no sentido de elaborar normas relativas a um sistema de notificação obrigatória de eventos adversos nas unidades de saúde do Serviço Nacional de Saúde (ainda não publicadas).

O exemplo norte-americano

Da gestão do risco clínico defensivo ao Patient Safety Movement

1.ª Fase: da "malpractice crisis" ao relatório "To err is human"

Os programas de gestão do risco em unidades de saúde nasceram nos Estados Unidos da América nos anos 70, como resposta a uma explosão de acções em tribunal contra médicos ("malpractice crisis"), onde apenas em Nova Iorque houve um aumento de 564 (em 1970) para 1.200 novos casos/ano em 1974 12. O objectivo essencial destes programas clássicos de gestão do risco em unidades de saúde era essencialmente o de prevenir o risco financeiro para a organização (protecção do património), proveniente de acções em tribunal contra a mesma, através, quer de uma gestão reactiva em relação às acções já interpostas, quer de uma gestão preventiva no sentido de acautelar futuras acções em tribunal 10.

As características dos programas e dos departamentos clássicos de gestão de unidades de saúde eram as seguintes 10:

— Natureza base essencialmente jurídico-legal (o gestor do risco era sempre um jurista);

— Necessidade de cooperação estreita com departamentos/ serviços clínicos;

— Multidisciplinaridade, isto é, envolvendo toda a actividade da unidade de saúde: clínica (prestação de cuidados) e não clínica (edifícios, refeições, etc.).

Nesta primeira fase, é interessante assinalar o carácter primordialmente "repressivo" da gestão do risco ou da prevenção de eventos adversos nos EUA, o qual é patente na legislação federal de 1986 (com as alterações de 1998), o chamado Health Care Quality Improvement Act (10) onde podemos ler curiosamente dentro de um título dedicado à Saúde Pública e num capítulo sobre "encouraging good faith professional review activities" (no original), os seguintes considerandos do Congresso Americano:

(10) "The Health Care Quality Improvement Act of 1986, as amended 42 USC Sec. 11101 01/26/98" está inserido no "Title IV of Public Law 99-660, Title 42 - The Public Health and Welfare".

"(1) The increasing occurrence of medical malpractice and the need to improve the quality of medical care have become nationwide problems that warrant greater efforts than those that can be undertaken by any individual State.

(2) There is a national need to restrict the ability of incompetent physicians to move from State to State without disclosure or discovery of the physician's previous damaging or incompetent performance.

(3) This nationwide problem can be remedied through effective professional peer review.

(4) The threat of private money damage liability under Federal laws, including treble damage liability under Federal antitrust law, unreasonably discourages physicians from participating in effective professional peer review.

(5) There is an overriding national need to provide incentive and protection for physicians engaging in effective professional peer review."

Da leitura desta norma, inscrita numa lei federal norte-americana de 1986 (com alterações de 1998) podemos retirar algumas ilações interessantes que poderão servir de guia para quaisquer decisões legislativas para a promoção da segurança do doente em unidades de saúde em Portugal e as quais enunciaremos mais adiante neste artigo.

2.ª Fase: do relatório "To err is human" ao Patient Safety Movement Após a publicação do relatório "To Err is Human" podemos afirmar que houve nos EUA o despertar para uma "nova epidemia" 1,16 e que a gestão do risco em unidades de saúde entra numa 2.ª fase, de 2000 até aos nossos dias. A partir deste marco crucial, o impacto deu-se não só em factos históricos como a criação a nível internacional do Movimento da Segurança do Doente pela OMS em 2005, ou a inserção do problema da segurança do doente como um dos temas fundamentais da protecção da saúde pública na União Europeia 17 mas, sobretudo, o conceito de gestão do risco em unidades de saúde nos EUA passa a estar aliado ao conceito da gestão da qualidade (quality management) e do risco clínico (clinical risk management). Esta nova abordagem da gestão do risco em unidades de saúde passa a ter como objectivo essencial a segurança do doente (patient safety) e a prevenção do evento clínico adverso. No fundo, do objectivo clássico de evitar o risco financeiro das queixas em tribunal, passa-se para o objectivo de tornar o sistema de saúde mais seguro. O conceito de gestão do risco em unidades de saúde pode então hoje definir-se como: "Clinical and administrative activities that health care organizations undertake to identify, evaluate, and reduce the risk of injury and loss to patients, personnel, visitors, and the organization itself" 18.

O conceito de gestão do risco em unidades de saúde passa a concentrar-se mais no sub-conceito de gestão do risco clínico, ou seja, identificando-se essencialmente com a gestão do risco clínico/medicamentoso que levará à segurança do doente na fase de prestação dos cuidados de saúde, deixando de estar ligado apenas ao controlo do número de queixas em tribunal contra a instituição.

O sucesso da gestão do risco em unidades de saúde até ao virar do milénio apurava-se através do menor número de acções em tribunal contra aquelas instituições, pelo que tinha uma natureza essencialmente jurídico-legal. Hoje o principal eixo da gestão do risco nas unidades de saúde é a promoção da segurança clínica, através da qualidade dos cuidados prestados, exigindo-se, pois, novas e mais complexas formas de avaliação da sua eficácia.

Existe de facto hoje uma ligação intrínseca entre os conceitos de "gestão do risco" e "gestão da qualidade" nas unidades de saúde nos Estados Unidos com base na ideia de que "a qualidade dos cuidados é a pedra angular da prevenção do risco" 10.

No entanto, apesar destes dois conceitos terem tendência a esbater-se e a fundir-se actualmente, é interessante notar que a gestão do risco nos EUA está ainda associada às questões de gestão das queixas em tribunal, tendo um carácter jurídico-legal muito marcado que não encontramos nos programas de gestão da qualidade, pelo que, por norma, o "gestor do risco" é um jurista e o "gestor da qualidade" um profissional de saúde, havendo todo o interesse numa inter-colaboração intensa entre estas duas áreas 10.

The Patient Safety Movement

The National Patient Safety Goals

Outro importante corolário do relatório "To err is human" foi ter sido impulsionador da criação por parte da Joint Commission on Accreditation of Healthcare Organizations (JCAHO) de normas práticas para a segurança em unidades de saúde, as quais se denominam National Patient Safety Goals. Tendo sido pela primeira vez publicadas em 2004, estas metas são aperfeiçoadas e actualizadas todos os anos 19.

The Patient's Rights Advocate

Os autores Jay Healey e George J. Annas, baseados na evidência de que um doente acompanhado por alguém que possa ir observando os cuidados e medicamentos que lhe são administrados, fica mais protegido de erros clínicos ou medicamentosos, propõem como figura a criar nas unidades de saúde, o "patient's rights advocate" 9 (expressão que traduzimos aqui livremente por "defensor do doente"), o qual seria alguém da confiança do doente, por este indigitado ou contratado para tal (pelo doente ou pela própria instituição) que o acompanharia durante a sua permanência na unidade de saúde, ajudando-o e representando-o, de forma a tornar as suas escolhas verdadeiramente informadas, a exercer os seus direitos e a protegê-lo de erros clínicos, sobretudo no caso dos doentes mais fragilizados 9.

O caso Betsy Lehman (1997) 20

Betsy Lehman era jornalista do Boston Globe, tinha duas filhas e 37 anos. Em 1997, em tratamento de quimioterapia para um cancro da mama, foi-lhe administrada durante quatro dias, por engano, uma dose muito mais elevada do que a prescrita. Apesar das suas inúmeras e repetidas queixas de dores e mal-estar aos clínicos, ninguém avaliou a sua situação através de exames ou análises idóneos. O seu coração, entre outros órgãos estava já destruído e um electrocardiograma feito ao tempo das primeiras queixas teria mostrado que algo estava errado. O facto de ter falecido após ter telefonado a uma amiga a dizer que se sentia muito mal e de se ter apurado que desde este telefonema até ser encontrada morta mediaram 45 minutos em que ninguém a assistiu, tornou o caso Betsy Lehman no caso-estudo mais paradigmático da análise dos factos e eventos desencadeantes de um erro médico de enorme gravidade com consequências dramáticas 20.

Pelo facto de Betsy Lehman ser jornalista, casada com um médico (curiosamente do mesmo hospital onde ocorreu o seu tratamento e posterior falecimento) e viver perto de Harvard concorreu certamente para a mediatização deste caso.

Se sob o ponto de vista legal nunca houve um processo contra os médicos que assistiram Betsy Lehman e ninguém foi julgado ou condenado pelos erros fatais cometidos, o caso desta jornalista teve consequências directas não só para um incremento do estudo da segurança dos doentes mas também na concretização da criação em 2004 do Betsy Lehman Center for Patient Safety and Medical Error Reduction no Departamento de Saúde Pública do Estado do Massachusetts 9.

Ensinamentos do exemplo norte-americano no âmbito da gestão do risco/segurança do doente

Se 5 anos após o relatório "To err is human" as perspectivas nos EUA pareciam ser optimistas quanto à disseminação de uma cultura de qualidade e prevenção de erros no meio clínico 1,10 anos depois é dada uma nota negativa aos progressos obtidos em segurança do doente no mesmo país 21 e considera-se que o sector da saúde deveria realizar parcerias, nomeadamente com sectores como o da aviação onde se tem evoluído mais eficazmente em termos de segurança 22.

De facto, em 2004, na prestigiada revista Health Affairs, R. M. Wachter, identifica alguns dos problemas que ainda subsistem, impedindo que se possa dizer que se deram passos em frente na realização e implementação da segurança do doente em unidades de saúde, citando, contudo, alguns estudos em que se conclui por uma maioria de optimismo dos profissionais em relação a uma evolução de uma cultura de segurança. Os problemas que ainda subsistiriam segundo este autor, seriam (tradução livre da autora):

— A existência de um modelo mental desactualizado sobre erros médicos;

— A desatenção colectiva dada à segurança do doente;

— Um sistema de reembolso que não prevê incentivos para a segurança;

— A estrutura fragmentada das organizações de saúde.

Mais preocupante ainda, é o facto de este autor mencionar um "artigo recente no New York Times" em que se lamenta a situação de muitos hospitais nova-iorquinos não estarem a cumprir a lei que os obriga a relatar todos os eventos adversos ocorridos, não se sabendo, também, sobre o destino e utilidade dos relatórios de eventos adversos recebidos. O autor afirma mesmo que "Este é o calcanhar de Aquiles do sistema de relatório de erros: a noção errónea de que a comunicação tem valor intrínseco em si mesma" (tradução livre da autora) 1.

Quais seriam as soluções? O autor cita as recomendações do relatório do IOM, isto é, a necessidade de regulamentação; os sistemas de relatórios de erros; as tecnologias de informação; a identificação e punibilidade dos erros negligentes (malpractice) e outros mecanismos de accountability; bem como a necessidade de formação em trabalho em equipa.

Por outro lado, sob o ponto de vista estritamente jurídico não parece existir solução para os dilemas que se colocam nesta área, a saber, os principais desafios legais em segurança clínica 1.

— Promover uma cultura de "não culpabilização"ao mesmo tempo que se identifica e pune quem age com negligência grosseira e não respeita as regras;

— Compensar as vítimas de injúrias em saúde sem o peso da máquina judicial;

— Tornar as unidades de saúde responsáveis por reportarem os seus erros, evitando que isso se transforme numa imediata sentença condenatória por parte da imprensa e dos media ou numa acção em tribunal.

No fundo, Wachter não só põe em causa a idoneidade de certas medidas consideradas como essenciais para melhorar a segurança do doente (tal como os relatórios de eventos adversos), como alerta, também, para a existência de problemas jurídico-legais nesta área, cuja dificuldade de resolução poderá requerer uma análise mais aprofundada no sentido de se lhes conseguir dar uma resposta adequada 1.

Estas considerações parecem-nos de enorme relevo para ter em conta nas estratégias de qualidade e segurança clínicas em Portugal, dado que os "ensinamentos" dos Estados Unidos, tendo estes em relação ao nosso país vários anos de avanço no tratamento da questão da segurança do doente, poderão melhorar a abordagem que os nossos agentes decisores possam fazer nesta matéria, nomeadamente evitando medidas inúteis e promovendo a discussão das questões mais polémicas, antes de avançar com qualquer solução para as mesmas.

Situação em Portugal

Tudo por fazer? (11)

(11) Este capítulo baseia-se essencialmente em apresentações feitas pela autora sobretudo no Intensive Course on International Trends in Clinical Quality, Risk Management and Patient Safety: Proven Strategies, realizado em Lisboa, pela Escola Nacional de Saúde Pública em parceria com a Universidade de Harvard, nos dias 25 e 26 de Janeiro, com a colaboração da docente desta instituição, Sharon Kleefield. Todas as apresentações do curso se encontram num CD que foi distribuído aos seus participantes e depositado no Centro de Documentação e Informação da ENSP. 20

Tratar a questão da gestão do risco clínico ou medicamentoso ou a gestão da qualidade em unidades de saúde é falar de direitos fundamentais da pessoa humana enquanto doente ou utente de unidades de saúde, isto é, dos direitos mais importantes: o direito à vida e o direito à integridade física e mental da pessoa. Sabemos, porém, que este direito não está ainda acautelado nas unidades de saúde e que a prevenção do erro e a implementação de medidas eficazes de promoção da qualidade se encontram em fase embrionária no panorama dos serviços de saúde do nosso país.

Em Portugal não há uma tradição nem um número significativo de casos de responsabilidade civil e penal por danos causados por actos de cuidados de saúde que sejam conduzidos a tribunal, assim como são raras as condenações de profissionais de saúde. Daí que a gestão do risco e a prevenção dos eventos adversos deve concentrar-se no nosso país sobretudo no aumento da segurança do doente. "Gerir o risco" em Portugal deverá significar evitar o erro e não evitar a acção em tribunal contra a instituição.

O que deveria ser feito a nível legal para promover uma boa gestão do risco e promoção da segurança nas unidades de saúde do nosso país? Podemos citar algumas medidas como:

— Dar prioridade à segurança do doente como objectivo da gestão do risco em unidades de saúde;

— Elaborar uma lei-quadro de gestão do risco e implementação da qualidade em unidades de saúde;

— Considerar a segurança do doente uma prioridade de Saúde Pública;

— Publicar normas legais de segurança em unidades de saúde e mecanismos de avaliação do seu cumprimento;

— Criar mecanismos idóneos para o conhecimento por parte das instituições e doentes do nível de experiência e competência dos profissionais de saúde (por ex. podendo criar-se entidade análoga ao National Practicioner Data Bank norte-americano 23);

— Reforçar os direitos dos doentes através da instituição de uma figura semelhante ao "patients rights advocate";

— Criar um mecanismo eficaz e obrigatório de relatório de ocorrências anómalas;

— Garantir a confidencialidade sobre as informações prestadas, impedindo represálias para os seus autores; permitir o mero relatório oral destes factos;

— Criar incentivos para unidades de saúde com bons níveis de segurança e para implementação de sistemas informáticos eficazes.

A Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde

Pelo Despacho n.º 14.223/2009, publicado a 24 de Junho, no Diário da República (DR) n.º 120, Série II, foi aprovada a Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde 24,25.

Com o objectivo de garantir os direitos dos cidadãos na sua relação com o sistema de saúde, o Ministério da Saúde tem como uma das suas missões potenciar a sua coesão e a qualidade da prestação de cuidados de saúde (cfr. Preâmbulo do Despacho citado). Nesse sentido e de encontro ao Plano Nacional de Saúde, alinhado para o período 2004-2010, aponta como orientação estratégica a melhoria da qualidade organizacional dos serviços de saúde.

Como ponto de partida, que serviu de fundamento a esta estratégia, o Plano Nacional de Saúde identificou alguns elementos, que necessitam de melhoria como factores principais e contributos para a Qualidade na Saúde: escassa cultura da qualidade; défice organizacional dos serviços de saúde; falta de indicadores de desempenho e de apoio à decisão; insuficiente apoio estruturado às áreas de diagnóstico e decisão estratégica 26. Também no mesmo documento encontramos as orientações estratégicas e intervenções necessárias a ultrapassar esta situação, as quais seriam (em colaboração com a Ordem dos Médicos): aumentar a investigação e reflexão nesta área; incentivar o relato sistemático de erros e o desenvolvimento de um sistema de segurança dentro das organizações de saúde 25.

De acordo com o citado despacho, a acção do Departamento da Qualidade na Saúde (DQS) da Direcção-Geral da Saúde, reveste-se da maior importância para a implementação de uma verdadeira cultura de qualidade e segurança no sector da saúde, a qual tem na base as seguintes prioridades estratégicas de actuação 25:

1) Qualidade clínica e organizacional;

2) Informação transparente ao cidadão;

3) Segurança do doente;

4) Qualificação e acreditação nacional de unidades de saúde;

5) Gestão integrada da doença e inovação;

6) Gestão da mobilidade internacional de doentes;

7) Avaliação e orientação das reclamações e sugestões dos cidadãos utilizadores do Serviço Nacional da Saúde.

É ainda cedo para podermos avaliar o impacto destas medidas regulamentares estratégicas no panorama nacional da segurança do doente, mas tememos que haja necessidade de um instrumento normativo mais forte, sob o ponto de vista da hierarquia das leis, para que as medidas enunciadas tenham a eficácia desejada.

Conclusões

Portugal encontra-se nos primórdios da regulamentação da área da segurança e gestão do risco em unidades de saúde. Não há ainda verdadeiros estudos científicos que permitam avaliar a situação das mortes e incapacidades por "eventos adversos evitáveis" e a doutrina nacional neste domínio é quase inexistente.

Parece-nos, pois, que não será demais concluir que no nosso país haverá que começar por sedimentar ainda as premissas básicas de uma cultura de segurança do doente, com base na experiência mais testada e documentada dos EUA, as quais aqui recordamos como sendo as seguintes:

1. Prevenir o dano é sempre melhor e mais barato para as unidades de saúde e para os doentes do que uma acção em tribunal; uma moderna gestão do risco em unidades de saúde deve concentrar-se numa activa política de segurança e prevenção da ocorrência de danos e não no mero evitar de acções em tribunal;

2. Deve existir uma responsabilização cada vez maior da organização na área da prevenção de eventos adversos, através de um reforço dos deveres de:

— Velar pela segurança do doente;

— Controlar a qualidade dos cuidados e assistência prestados;

— Analisar e avaliar de forma idónea as credenciais e qualidade profissional do seu staff;

3. É necessário dar voz ao doente, ou seja, dando primazia ao princípio de que o doente tem sempre razão sobre o seu corpo até prova em contrário (por ex. caso Betsy Lehman);

4. A importância da existência de um defensor do doente (patient's advocate) para proteger e representar o doente;

5. O direito do doente a saber os níveis de experiência e competência de quem o trata;

6. Tornar os relatórios de ocorrência de erros ou situações anómalas (Error Reporting Systems) obrigatórios por lei, mas tendo em atenção que para que tal sistema resulte, haverá que:

— Educar os profissionais de saúde no sentido de cumprirem essa norma;

— Proteger os profissionais de represálias pelo relato de eventos adversos;

— Mostrar que os relatórios de erros servem para melhorar e corrigir falhas na prestação de cuidados aos doentes e que não vão amontoar-se numa gaveta;

7. Melhorar as Tecnologias de Informação (IT) ao nível das unidades de saúde, mas não se caindo no erro de pensar que as boas tecnologias de informação são sinónimo absoluto de segurança ao nível da prestação de cuidados, descurando outros factores importantes.

Para terminar diremos que em 2009, 10 anos depois de To err is human, foi publicado um relatório nos EUA, pela Consumers Union, sob o título To Err is Human — To Delay is Deadly: Ten years later, a million lives lost, billions of dollars wasted21 onde se dá uma nota de reprovação aos progressos na área da segurança do doente.

Dada a falência das medidas legais tradicionais para melhorar os níveis de segurança dos cuidados de saúde nos EUA, novos horizontes se abrem com a ideia de que a estratégia ideal para conseguir esta segurança será uma nova filosofia político-legal, isto é, a de que o financiamento das unidades de saúde e o pagamento dos "actos médicos" devem ter em conta o seu nível de qualidade (12).

(12) "Hospitals and physicians are paid the same regardless of the safety of the care they deliver." 27

Diversos estudos têm vindo a ser feitos, nomeadamente ao nível da OMS 28, no sentido de encontrar evidências no que funciona ou não na implementação de uma verdadeira cultura de segurança no sistema de saúde. Portugal deve acompanhar todo este movimento, no sentido de poder tomar as medidas mais científicas e testadas como eficazes, nesta difícil batalha contra as evitáveis mortes e incapacidades causadas pelo risco iatrogénico em unidades de saúde.

Conflito de interesse

A autora declara não haver conflito de interesse.


*Autor para correspondência.

Correio electrónico: pa.lobfaria@ensp.unl.pt (P. Lobato de Faria)

INFORMAÇÃO SOBRE O ARTIGO

Historial do artigo:

Recebido em 1 de Outubro de 2010

Aceite em 30 de Outubro de 2010

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