A Fundação para a Saúde – Serviço Nacional de Saúde (FSNS) realizou nos dias 27 e 28 de setembro de 2013 o 1.° Congresso do Serviço Nacional de Saúde – SNS: património de todos. A iniciativa teve lugar na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa e foi, a todos os títulos, um acontecimento notável.
Foram recolhidos e organizados contributos para pensar o SNS do futuro, enquanto instituição portuguesa capaz de se constituir como uma referência europeia e global.
O congresso foi antecedido por várias iniciativas preparatórias e será seguido por outras que irão aprofundar as reflexões e debates iniciados. Após 34 anos de vida, é como se o SNS estivesse a renascer agora buscando identidade, unidade de corpo e uma cultura organizacional próprias, partilhadas por todas as suas instituições e profissionais.
Intriga-me o facto de não existir um único impresso, tabuleta, imagem logótipo com a designação do SNS, seja a nível nacional, regional ou local. Apenas em 2 momentos, tanto quanto me lembro, se tentou alterar tal situação. A primeira foi em 1982, quando chegou a ser publicado o Boletim do Serviço Nacional de Saúde, que traduzia o início da construção de identidade e unidade – um pouco à semelhança do que acontece com o serviço nacional de saúde britânico (NHS). Este projeto não durou mais do que alguns meses. Mais tarde, em 2001, Carmen Pignatelli, então Secretária de Estado Adjunta do Ministro da Saúde, iniciou um projeto para que todos os hospitais e centros de saúde se sentissem parte de uma mesma cultura organizacional com valores comuns. Pertença a um todo. E que todos os cidadãos reconhecessem e sentissem o SNS como seu. Foi lançado um concurso público para o arranque daquele projeto. Com a mudança de Governo o projeto foi abandonado e os documentos evaporaram-se. Vinham a caminho os hospitais S.A.
Na minha perspetiva, desde o seu nascimento, em 1979, o SNS tem estado submetido a tensões contraditórias e oscilantes entre um polo mercantilista, em que a saúde é vista como mercadoria e área de negócio, e um polo centrado no bem comum, no interesse público, na solidariedade e na coesão social. Paralelamente, prevalece uma inapropriada governamentalização do SNS, agora patente nas novas receitas de medicamentos, encimadas pelo logótipo «Governo de Portugal».
O SNS necessita ter um estatuto renovado, que o autonomize do poder político e da administração pública comum. Deve ser participado e controlado pelos cidadãos o mais possível. Não pode continuar a acontecer que, de cada vez que muda o Governo, um serviço tão complexo como este, com uma elevada componente técnico-científica, esteja à mercê de caprichos partidários. Isto aconteceu dezenas de vezes nas 3 décadas de vida do SNS. Estes caprichos incluem mudanças frequentes de rumo e de centenas de dirigentes nacionais, regionais e locais, alguns deles sem conhecimento do que está verdadeiramente em causa, nem a experiência e as competências que os serviços do SNS e todos os cidadãos mereceriam.
Identidade, cultura organizacional explícita e um dispositivo de governação estratégica próprio e estável são requisitos para renovar e desenvolver o SNS e para lhe preservar a memória e a inteligência. O pior que pode acontecer a um organismo vivo ou social é perder memória e inteligência. E isso parece estar a acontecer com o SNS. Daí a importância deste Congresso.
Para projetar o futuro do SNS e para o projetar no futuro parece-me necessário repensar o desenho, o estatuto e a governação do SNS. Explorar novos caminhos. A saúde não pode ser vista como há 20 ou 30 anos, porque tudo mudou entretanto. O SNS não deve estar sujeito a encontrões de momento. É certo que os sistemas sociais têm uma evolução própria, um ADN e um contexto que, em certa medida, lhes determinam as possibilidades evolutivas e lhes conferem proteção. Mas isso não basta. Há um trabalho de jardinagem que tem de ser feito continuadamente e isso é responsabilidade de todos, e do Governo também.
O SNS português é um exemplo a nível internacional, com resultados que nos devem deixar orgulhosos. Vários dos indicadores de saúde comummente utilizados atingiram valores ao nível dos melhores do mundo e mesmo os gastos per capita são baixos relativamente à média da OCDE. Devemos, indubitavelmente, estar orgulhosos e celebrar esses sucessos e, também, aprender com os erros e omissões e corrigi-los. Por isso, um dos objetivos deste 1.° Congresso foi o de desenvolver um discurso e uma visão próprios de um SNS para o século XXI, uma instituição portuguesa que contribui para um país empreendedor e próspero, atento ao bem-estar de todos.