Abordar a associação entre insegurança alimentar e nutricional e fatores de risco cardiometabólicos na infância e adolescência.
Fontes de dadosOs artigos foram selecionados pelas bases de dados Medline, Lilacs e SciELO, sem limite de data de publicação. Envolveram crianças e adolescentes e foram usados os descritores: segurança alimentar e nutricional, diabetes melito, hipertensão, síndrome metabólica, estresse e dislipidemia. Os termos foram usados em português, inglês e espanhol. A busca foi feita de forma sistemática e independente por dois revisores.
Síntese dos dadosA exposição à insegurança alimentar no período da infância e adolescência variou de 3,3% a 82% nas publicações selecionadas. A exposição à insegurança alimentar esteve associada a estresse, ansiedade, maiores chances de internações hospitalares, deficiências nutricionais, excesso de peso e consumo de dietas inadequadas com ingestão reduzida de frutas e hortaliças e aumento do consumo de carboidratos refinados e gorduras.
ConclusõesA insegurança alimentar e nutricional esteve associada à presença de fatores de risco cardiometabólicos nas publicações avaliadas. A infância e adolescência constituem uma fase da vida vulnerável às consequências da insegurança alimentar, o que torna de extrema importância a garantia do acesso regular e permanente aos alimentos. Por ser essa associação complexa, algumas dificuldades são encontradas, tais como a sinergia existente entre os próprios fatores de risco, a avaliação de grupos heterogêneos e a extrapolação dos dados para outras populações, além da influência dos fatores ambientais.
To address the association between food and nutrition insecurity and cardiometabolic risk factors in childhood and adolescence.
Data sourceArticles were selected from the Medline, Lilacs and SciELO databases with no publication date limit, involving children and adolescents, using the descriptors: food and nutrition security, diabetes mellitus, hypertension, metabolic syndrome, stress and dyslipidemia. The terms were used in Portuguese, English and Spanish. The search was carried out systematically and independently by two reviewers.
Data synthesisExposure to food insecurity during childhood and adolescence ranged from 3.3% to 82% in the selected publications. Exposure to food insecurity was associated with stress, anxiety, greater chance of hospitalization, nutritional deficiencies, excess weight and inadequate diets with reduced intake of fruits and vegetables and increased consumption of refined carbohydrates and fats.
ConclusionsFood and nutrition insecurity was associated with the presence of cardiometabolic risk factors in the assessed publications. Childhood and adolescence constitute a period of life that is vulnerable to food insecurity consequences, making it extremely important to ensure the regular and permanent access to food. Because this is a complex association, some difficulties are found, such as the synergy between risk factors, the assessment of heterogeneous groups and extrapolation of data to other populations, in addition to the influence of environmental factors.
A abordagem da insegurança alimentar e nutricional (InSan) tem ganhado destaque nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. O conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) foi estabelecido por meio da Segunda Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional realizada em 2004 no Brasil e consiste no direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, econômica e socialmente sustentáveis.1 Situações em que há violação de qualquer um dos itens caracterizam a InSan.
Pode‐se observar a relação da InSan não apenas no contexto do baixo peso e/ou da presença de doenças carências, como amplamente debatido pelos pesquisadores, mas abordando uma “nova” associação do tema com a presença de fatores de risco cardiometabólicos desenvolvidos ainda no período da infância e adolescência, tais como obesidade, resistência à insulina, diabete tipo II, hipertensão arterial sistêmica, dislipidemias e inflamações.2‐4
Tais fatores de risco podem ser classificados em tradicionais (modificáveis ou não) e não tradicionais. Os fatores tradicionais não modificáveis contemplam idade, sexo e história familiar precoce para doenças cardiovasculares, enquanto os modificáveis englobam dislipidemias, hipertensão arterial, diabete tipo II, tabagismo, sedentarismo e excesso de peso. Os denominados não tradicionais abordam a avaliação de alguns marcadores de risco cardiometabólicos, tais como citocinas inflamatórias, proteína C‐reativa, interleucina‐6, leptina e adiponectina.5
Alguns estudos têm demonstrado associações positivas entre a presença de InSan e pior estado de saúde em crianças e adolescentes.6‐8 Dentre esses desfechos, destacam‐se problemas comportamentais, psicossociais, no desenvolvimento e maior acometimento por doenças agudas e crônicas.9 No entanto, não se conhece o mecanismo preciso pelo qual a InSan afeta negativamente a saúde desse grupo.10
Nessa perspectiva, após verificada a escassez de estudos brasileiros sobre o tema, foi feita uma revisão sistemática para avaliar se a insegurança alimentar e nutricional está associada à presença de fatores de risco cardiometabólicos na infância e adolescência, com o objetivo de fornecer subsídios para intervenções na saúde pública. Os principais elementos a serem modificados nessa problemática poderão auxiliar no planejamento de futuros estudos de intervenções voltados para crianças e adolescentes em situação de InSan.
MétodoA estratégia de busca dos artigos incluiu pesquisas em bases eletrônicas. Usaram‐se as bases eletrônicas Medline (National Library of Medicine, Estados Unidos) via PubMed, Lilacs (Literatura Latino‐americana e do Caribe em Ciências da Saúde) e SciELO (Scientific Eletronic Library Online). A identificação e a seleção dos artigos em todas as bases de dados pesquisadas foram feitas simultaneamente por dois pesquisadores em um mês, entre agosto e setembro de 2014.
As palavras usadas como descritores foram: segurança alimentar e nutricional, diabetes melito, hipertensão, síndrome metabólica, estresse e dislipidemia. Todos os descritores foram usados em português, de acordo com os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), e em inglês, de acordo com Medical Subject Headings (MeSH). Os termos também foram usados em espanhol para contemplar um maior número de estudos publicados na área. O descritor segurança alimentar e nutricional foi combinado aos outros descritores com o uso dos operadores booleanos representados pelos termos conectores AND, OR e NOT. Dessa forma, foram usadas as seguintes combinações: segurança alimentar e nutricional AND diabetes melito, segurança alimentar e nutricional OR diabetes melito e segurança alimentar e nutricional NOT diabetes melito. Essas combinações foram usadas sempre associando o descritor segurança alimentar e nutricional aos demais.
Os fatores de risco para doenças cardiometabólicas (diabetes melito, hipertensão, síndrome metabólica, estresse e dislipidemia) foram usados como descritores, uma vez que as doenças crônicas geralmente não estão instaladas em crianças e adolescentes. Entretanto, pode ser encontrada a presença de fatores de risco que levam ao desenvolvimento dessas doenças.
A revisão buscou estudos que avaliaram crianças e adolescentes, por ser esse um dos períodos de maior vulnerabilidade a privações dos alimentos e ocorrência de distúrbios referentes ao crescimento e desenvolvimento fisiológico e que podem cursar com prejuízos à saúde.11,12 Dessa forma, foram incluídos os artigos que associaram a InSan a pelo menos um fator de risco cardiometabólico em crianças e/ou adolescentes.
Como critérios de exclusão, destacam‐se estudos feitos com adultos, idosos, gestantes, grupos de crianças/adolescentes com baixo peso ao nascer, que apresentavam doenças congênitas assim como os artigos de revisão de literatura e/ou revisão sistemática, dissertações, teses, consensos e documentos de organizações nacionais e internacionais, repetidos em bases de dados diferentes e publicados em idiomas diferente de português, inglês e espanhol.
A identificação e a seleção dos artigos nas bases de dados foram feitas por dois pesquisadores de forma independente e sistemática, que fizeram a seleção inicial pelos títulos das publicações levantadas pelos descritores e, posteriormente, pelos resumos obtidos por busca eletrônica. Após a seleção das publicações pelos títulos e resumos, uma nova análise foi feita pelos dois pesquisadores, que determinaram de forma consensual os estudos a serem lidos na íntegra e incluídos na revisão. Foram rastreadas as referências dos artigos selecionados, com vistas à inclusão de outras pesquisas de potencial interesse.
A avaliação da situação de insegurança alimentar e nutricional nos artigos selecionados foi considerada a partir de dados obtidos por questionários e/ou perguntas estruturadas, aplicados para as crianças, adolescentes ou pais/responsáveis e/ou a partir de dados sociais e econômicos das famílias avaliadas. A InSan foi identificada pela leitura das publicações por situações que contemplassem a presença da sensação física de fome e/ou insuficiência alimentar por motivos relacionados a renda e/ou ruptura nos padrões de alimentação, resultante da falta de alimentos e/ou avaliação do consumo alimentar.
Para avaliação metodológica das publicações, buscou‐se responder à pergunta “A insegurança alimentar e nutricional estaria associada à presença de fatores de risco cardiometabólicos em crianças e adolescentes?” Diante da indagação, foram exploradas todas as associações entre a situação de InSan e estado nutricional, parâmetros bioquímicos, estado geral de saúde e consumo alimentar, abordados pelos estudos identificados.
ResultadosA busca pelos descritores resultou na identificação de 352 artigos na área de interesse. Foram excluídas 342 publicações (158 publicações não estavam relacionadas ao tema, não respondiam ao objetivo do trabalho, não avaliavam crianças nem adolescentes, 88 eram artigos de revisão, teses ou dissertações, 54 artigos repetidos em bases de dados diferentes, 42 referentes a consensos, comentários de especialistas ou documentos de organismos governamentais). Apenas 10 artigos atenderam aos critérios estabelecidos, três deles obtidos por meio da busca nas referências bibliográficas das publicações pré‐selecionadas (fig. 1).
Dos estudos avaliados, oito artigos tinham o delineamento transversal e todos apresentavam amostras internacionais provenientes da América do Norte, Europa e Ásia. Por meio da busca pelos descritores, nenhum artigo nacional que avaliasse o tema pretendido foi identificado.
A abordagem da InSan associada a algum fator de risco cardiometabólico é relativamente nova na área científica. Pode ser notado o interesse dos pesquisadores na temática da InSan relacionada às alterações crônicas do estado de saúde no período da infância e adolescência após 200213 (tabela 1). Nenhum estudo abordou a relação existente entre a presença de InSan e fatores de risco cardiometabólicos não tradicionais (citocinas inflamatórias, proteína C‐reativa, interleucina‐6, leptina e adiponectina).
Avaliação das publicações sobre insegurança alimentar e nutricional e fatores de risco cardiometabólicos na infância e adolescência
Autor/ano | Delineamento | Amostra | Idade | Variáveis nutricionais | Classificação do estado nutricional | Instrumento para avaliar segurança alimentar e nutricional |
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Weinreb et al., 200213 | Transversal | 408 pré‐escolares, crianças e adolescentes | 2,5 a 17 anos | Não avalia | Não fazem | Community Childhood Hunger Identification Project e perguntas diretas para crianças acima de 9 anos |
Cook et al., 20047 | Coorte com corte transversal. | 11.539 cuidadores de crianças | Crianças <36 meses. | Peso e altura | Não relatam | U.S. Household Food Security Scale (U.S. HFSS) |
Molcho et al., 200617 | Transversal | 8.424 crianças em idade escolar | 10 a 17 anos | Não avalia | Não fazem | Insegurança alimentar e nutricional definida por meio de duas perguntas estruturadas |
Martin et al., 200715 | Transversal | 212 crianças e 200 pais ou responsáveis | Crianças de 2 a 12 anos | Peso e altura | Curvas do Centers for Disease Control and Prevention | USDA Food Security Module |
Jiménez‐Cruz et al. 200716 | Transversal | Grupo em 2001: 1.200 crianças. Grupo em 2003: 1.452 crianças | Crianças de 6 a 11 anos | Índice de massa corporal e perímetro da cintura | Curvas do Centers for Disease Control and Prevention | Community Childhood Hunger Identification Project, adaptada para as crianças mexicanas |
Gundersen et al. 20086 | Transversal | 841 crianças e adolescentes | 3 a 17 anos | Peso, altura, Índice de massa corporal, estresse | Curvas do Centers for Disease Control and Prevention | USDA Core Food Security Module (CFSM) |
Chen et al., 200918 | Longitudinal | 764.526 crianças | Crianças nascidas entre 1997 e 1999 | Baixo peso ao nascer referida | Não relatam | Insegurança alimentar e nutricional imputada por meio de dados do baixo peso ao nascer, status econômico, estado nutricional materno e renda familiar |
Kirkpatrick et al., 201010 | Longitudinal | 5.809 crianças e 3.333 adolescentes | 1° grupo: 10 a 15 anos e 2° grupo: 16 a 21 anos | Não avalia | Não fazem | Insegurança alimentar e nutricional avaliada por perguntas administradas à pessoa mais experiente |
Marjerrison et al., 201120 | Transversal | 183 famílias com crianças e adolescentes | <18 anos Média: 11,8±3,99 anos | Índice de massa corporal e hemoglobina A1c | Não relatam | Household Food Security Survey Module do Canadian Community Health Survey |
Sharkey et al., 201214 | Transversal | 50 mães e 50 crianças | 6 a 11 anos | Peso, altura e Índice de massa corporal | Curvas do Centers for Disease Control and Prevention | Instrumento desenvolvido por Connell et al.,24 (2004)a |
O instrumento desenvolvido por Connell et al. (2004)24 conta com nove questões direcionadas para a criança responder.
A prevalência de InSan encontrada nos domicílios com crianças e adolescentes variou de 3,3% a 82%10,14 (tabela 2). Diversas metodologias foram empregadas para identificar a situação de InSan. Os estudos usaram instrumentos específicos voltados para a família,6,7,13,15,16 instrumentos desenvolvidos para respostas obtidas pelas crianças e/ou adolescentes14 e perguntas específicas estruturadas sobre a questão alimentar.10,13,17 No artigo de Chen et al.,18 a insegurança alimentar foi imputada por meio de algumas variáveis, como o status do peso ao nascer, poder econômico e período do ano. Entendeu‐se que as famílias que viviam em situação de pobreza teriam maior possibilidade de apresentar InSan.
Resultados encontrados nos artigos sobre insegurança alimentar e nutricional e fatores de risco cardiometabólicos na infância e adolescência
Autor/ano | Associação dos resultados | Etnias | Prevalência de insegurança alimentar e nutricional | Limitações |
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Weinreb et al., 200213 | Crianças em idade pré‐escolar: insegurança alimentar e nutricional e pior condição de saúde (OR:2,8), eventos da vida (OR:8,5), tamanho da família (OR: 3,2), baixo peso (OR:1,42). Crianças em idade escolar: insegurança alimentar e nutricional e baixo peso ao nascer (OR:1,35), condições de saúde (OR:3,4), eventos da vida (OR:8,8) | Sim | Pré‐escolares: 59,2% de insegurança alimentar e nutricional Escolares: 66% | Sim |
Cook et al., 20047 | Insegurança alimentar e nutricional e estado de saúde relatado como “Justo/pobre” (OR=1,90; IC95%: 1,66‐2,18). Insegurança alimentar e nutricional e hospitalizações desde o nascimento (OR=1.31; IC95%: 1,16‐1,48). Não houve associação entre insegurança alimentar e nutricional e variáveis de risco de crescimento (OR=1,09; IC95%: 0,94‐1,25) | Sim | 21,4% dos domicílios com insegurança alimentar e nutricional | Sim |
Molcho et al., 200617 | Insegurança alimentar e nutricional e menor ingestão de frutas (OR: 0,66; IC95%: 045‐0,87), hortaliças (OR: 0,68; IC95%: 0,49‐0,87), pão integral (OR: 0,66; IC95%: 0,42‐0,90), maior consumo de batatas fritas entre as meninas e meninos (OR: 1,62; IC95%: 1,39‐1,85 e OR:1,33; IC95%: 1,05‐1,61 respectivamente). Insegurança alimentar e nutricional e sintomas mentais, somáticos (OR: 2,42; IC95%: 2,06‐2,78) e sintomas emocionais (IC95%: 1,47; IC95%: 1,47‐1,23) | Não | Classes sociais baixas: 15,3% Classe média: 15,9% Classes sociais elevadas: 14,8% | Sim |
Martin et al., 200715 | Não houve associação entre excesso de peso e insegurança alimentar e nutricional (OR: 1,41; IC95%: 0,67‐2,99). Renda insuficiente e obesidade (OR: 0,4; IC95%: 0,18‐0,92). Risco de sobrepeso e insegurança alimentar e nutricional (OR:1,34; IC95%: 0,53‐3,36) | Sim | 51,4% dos domicílios em insegurança alimentar e nutricional | Sim |
Jiménez‐Cruz et al. 200716 | Insegurança alimentar e nutricional maior entre crianças de pais com etnia indígena (68%; p<0,001) | Sim | 46% no grupo de 2001 | Não |
Insegurança alimentar e nutricional foi maior entre as crianças menores de 9 anos (71%; p<0,001) | 58% no grupo de 2003 | |||
Crianças sem obesidade abdominal e maior prevalência de insegurança alimentar e nutricional (78%, p<0,001) | ||||
Gundersen et al. 20086 | Estresse e insegurança alimentar e nutricional em nível familiar (OR: 0,05; IC95%: −0,27‐0,37), insegurança alimentar e nutricional e estresse cumulativo (OR:0,02; IC95%: −0,01‐0,005) | Sim | 44,5% dos domicílios com insegurança alimentar e nutricional | Sim |
Chen et al., 200918 | Insegurança alimentar e nutricional e diabetes melito (OR:1,87), doenças hereditárias do metabolismo (OR:1,94), anemia por deficiência de ferro (OR:2,68) e sintomas mal definidos referentes à nutrição, metabolismo e desenvolvimento (OR:2,02) | Não | Não é apresentado o valor de insegurança alimentar e nutricional, o estudo associa renda à insegurança alimentar e nutricional | Sim |
Kirkpatrick et al., 201010 | Insegurança alimentar e nutricional e maiores chances para apresentar pior estado de saúde (OR=1,91; IC95%: 1,33‐2,74) | Não | 10 a 15 anos: 3,3% | Sim |
Insegurança alimentar e nutricional não se associou a condições crônicas de saúde diagnosticadas (OR=1,22; IC95%: 0,75‐1,99) | 16 a 21 anos: 3,9% | |||
Marjerrison et al., 201120 | Insegurança alimentar e nutricional e maior taxa de hospitalização (OR, 3.66; IC95%: 1.54‐8.66). A concentração média de hemoglobina A1c foi maior nas crianças com insegurança alimentar e nutricional | Não | 21,9% de insegurança alimentar e nutricional | Sim |
Sharkey et al., 201214 | Insegurança alimentar e nutricional maior consumo de energia total, cálcio, calorias proveniente de açúcar de adição (ß=4,8, erro padrão=2,2, p=0,032; ß=4,4, erro padrão=1,9, p=0,028 e ß=8,4, erro padrão=2,0, p<0,001) | Não | 82% das crianças com insegurança alimentar e nutricional | Sim |
Índice de massa corporal não esteve associado ao estado de InSaa |
As publicações foram heterogêneas em relação às faixas etárias avaliadas, que variaram de observações de InSan do nascimento até os 17 anos, bem como o tamanho das amostras estabelecidas, que foram desde 50 até 764.526 indivíduos.14‐16 Dos estudos que avaliaram as faixas etárias relativas à infância e à adolescência, nenhum considerou as observações feitas separadamente por grupos de crianças e adolescentes, visto que apresentam diferenças quanto ao estado de crescimento, desenvolvimento e maturação.19 Essas diferenças podem influenciar na presença dos fatores de risco cardiometabólicos.
Apenas seis estudos mencionaram o uso de variáveis antropométricas que contribuiriam para identificar o estado nutricional associado à situação de insegurança alimentar.6,7,14‐16,20 Dentre as variáveis antropométricas avaliadas, apenas peso, altura, índice de massa corporal (IMC) e perímetro da cintura foram citados. Martin et al. 15 usaram o peso das crianças associado ao peso dos pais para identificar os fatores de risco cardiometabólicos (excesso de peso), com vistas a observar se as crianças que têm pais obesos teriam maior probabilidade de apresentar excesso de peso e se essa associação seria definida por características familiares ou decorrente da exposição à InSan. Sharkei et al.14 observaram que o IMC das crianças e adolescentes não esteve associado a InSan. Em relação ao perímetro da cintura, Jimenénez‐Cruz et al.16 verificaram que as crianças sem obesidade abdominal tinham maior prevalência para InSan (78%) em comparação com as que apresentaram perímetro da cintura adequado (22%).
Metade dos estudos classificou a população avaliada em grupos étnicos.6,7,13,15,16 As etnias identificadas foram hispânicos, brancos, populações indígenas e não indígenas, pretos e brancos. No estudo de Weinreb et al.,13 a população declarada como hispânica apresentou maior prevalência de InSan grave. Cook et al. (2004)7 encontraram que os hispânicos apresentaram maiores valores de InSan (31,2%) e Jiménez‐Cruz et al.6 observaram que as crianças declaradas como indígenas tiveram maior possibilidade de conviver com a InSan.
Dos artigos avaliados, nove relataram limitações para identificar qual o mecanismo de relação entre InSan e a presença de fatores de risco cardiometabólicos.6,7,10,13‐15,17,18,20 As análises feitas pelas publicações demonstraram que a associação entre insegurança alimentar e pelo menos um fator de risco cardiometabólico foi encontrada em nove artigos. Entretanto, Martin et al.15 não encontraram associação entre InSan e as variáveis analisadas (tabela 2).
Molcho et al.17 encontraram associação entre InSan e consumo de dieta não saudável, em que a população com insegurança alimentar apresentou menor consumo de frutas, hortaliças e fibras e maior ingestão de gordura. Cook et al.7 observaram que as crianças que viviam nessa condição tiveram mais chances de ter o estado de saúde prejudicado e de hospitalizações por presença de doenças agudas/crônicas. Chen et al.18 demonstraram que crianças e adolescentes que viviam em situação de pobreza eram mais atendidas ambulatorialmente por doenças relacionadas ao metabolismo, deficiências nutricionais e diabetes melito.
A associação entre InSan e níveis de estresse ou ansiedade vividos pelas famílias também esteve presente e demonstrou estar relacionada à preocupação constante do acesso adequado do consumo de alimentos.6
Todos os estudos diferiram em relação aos objetivos. Tinham em comum apenas o tema da InSan e a avaliação de pelo menos um fator de risco cardiometabólico. As associações abordadas foram InSan e excesso de peso,16 InSan e diabetes melito,20 InSan e consumo alimentar inadequado,14 InSan e estresse.6
Buscando compreender os vários mecanismos da associação entre InSan e os fatores de risco cardiometabólicos na infância e na adolescência, podem ser observadas algumas possíveis explicações para essa relação (fig. 2).
Associação entre insegurança alimentar e fatores de risco cardiometabólico na infância e adolescência. Adaptada da Ref. [3].
Os achados deste estudo evidenciaram que a insegurança alimentar e nutricional pode estar associada à presença de fatores de risco cardiometabólicos na infância e adolescência, tais como obesidade, estresse, desordens metabólicas e consumo de dietas inadequadas.10,16‐18
A prevalência de insegurança alimentar entre os estudos avaliados foi elevada.13‐16 Essa prevalência chama a atenção, pois por algum momento o grupo avaliado passou por privação alimentar em uma fase da vida.
Poucas publicações abordaram a associação entre a InSan e os fatores de risco cardiometabólicos, especialmente no público infanto‐juvenil. Essa limitação pode ser devida à não instalação das doenças crônicas nesse público. No entanto, alguns fatores de risco podem ser observados e se persistirem podem levar ao desenvolvimento de algumas comorbidades. São imprescindíveis o diagnóstico e o tratamento precoce.21
Muitas são as possíveis causas dos efeitos adversos da InSan na infância e adolescência. Jiménez‐Crus et al.16 relatam que a presença da InSan associada às alterações do peso no início da vida pode predispor a riscos no futuro para obesidade, resistência à insulina, diabete, hipertensão, níveis elevados de colesterol e síndrome metabólica.
A oferta de uma dieta balanceada e apropriada durante o período da infância e adolescência é fundamental para reduzir os problemas da saúde.17 Vale ressaltar que a presença de insegurança alimentar por si só, pode acarretar fatores de risco para um pior estado de saúde e para o desenvolvimento de problemas comportamentais como estresse emocional, psicológico e de ansiedade.7,18
Weinreb et al.13 ressaltam que a presença de InSan pode resultar em problemas de ansiedade e estresse nas famílias. O estresse sofrido pelas crianças também pode resultar em níveis mais elevados de doenças. Essa relação é estabelecida porque as concentrações de hormônios relacionados ao estresse (cortisol, epinefrina, noradrenalina e glucagon) aumentam durante condições adversas e a hipersecreção aguda ou crônica dessas substâncias pode levar a alterações metabólicas e à inflamação.22 O estresse também contribui para maus hábitos alimentares e níveis mais baixos de atividade física, ambos associados ao sobrepeso e à obesidade, que são fatores de risco para o desenvolvimento das doenças cardiometabólicas.13
O estudo da InSan associada ao desenvolvimento de doenças crônicas ainda é escasso, como demonstram os artigos. Quase todas as publicações desta revisão chamam a atenção para a dificuldade de identificar por quais mecanismos a InSan elevaria os riscos de desenvolvimento de doenças crônicas.6,7,10,13‐15,17,20
Buscando compreender essa relação, Seligman e Schillinger3 relataram que a InSan consiste em um fator cíclico que acaba por trazer implicações na incidência de doenças cardiometabólicas. De forma geral, as famílias que sofrem com insegurança alimentar e nutricional recorrem a estratégias compensatórias durante os períodos de ausência ou redução dos alimentos, o que leva à perda ponderal e hipoglicemia. Em momentos de fartura, pode haver o consumo excessivo de alimentos que levam ao ganho de peso e hiperglicemia. Esses comportamentos, associados à situação de estresse e ansiedade, podem desencadear obesidade, hipertensão e diabetes.
Martin et al.15 destacam que momentos com padrão alimentar alternado entre a ausência ou redução dos alimentos com períodos de fartura resultam em consequências metabólicas. Essa situação está relacionada a menor consumo de nutrientes, visto que o consumo de frutas e hortaliças decresce, e pode afetar a expressão de algumas doenças crônicas desencadeadas pela deficiência de nutrientes.18
A heterogeneidade dos estudos em relação a idade, grupos étnicos e metodologia de investigação da InSan associada a fatores de risco cardiometabólicos leva a dificuldades para comparações e extrapolações dos resultados para outras populações. A maioria das pesquisas feitas na área de SAN é do tipo transversal, não esclarece a relação de causa e efeito entre a presença de insegurança alimentar e saúde das crianças e adolescentes.10
É importante observar que cinco artigos consideraram a etnia da população avaliada, mas nenhum explicou qual a importância dessa informação. Dentre os vários fatores de risco para o desenvolvimento das doenças cardiometabólicas, a história familiar positiva, a obesidade, o sedentarismo, a etnia e os fatores psicossociais podem ter possíveis relações e ser potencializadores do problema.23
Diante da complexidade e das limitações sobre o entendimento da relação de InSan e fatores de risco cardiometabólicos, mais pesquisas são de extrema relevância para possíveis reformulações das políticas públicas e sociais de saúde que reduzam os efeitos adversos da InSan sobre a saúde.18 É preciso avançar nos conhecimentos da área de insegurança alimentar e nutricional e reconhecer os vários fatores de risco que essa situação acarreta na saúde de milhares de crianças e adolescentes que convivem com a pobreza e a fome. Essa temática deve estar presente nos consultórios dos especialistas em saúde que, em geral, não questionam e não avaliam a questão alimentar de seus pacientes e não consideram a relação entre InSan e efeitos adversos na saúde.13
ConclusãoA insegurança alimentar e nutricional se associa à presença de fatores de risco cardiometabólicos em crianças e adolescentes. Por se tratar de uma associação complexa, algumas limitações são encontradas para explicar o mecanismo exato de como a alteração ocorre e a direção dessa associação, tais como a sinergia existente entre os próprios fatores de risco cardiometabólicos, a avaliação de grupos heterogêneos, a extrapolação dos dados para outras populações e a influência dos fatores ambientais.
Os estudos demonstraram que a insegurança alimentar se associa à pior qualidade da alimentação com redução da ingestão de frutas e hortaliças e ao aumento do consumo de carboidratos refinados e gorduras, deficiência de micronutrientes, com pior estado de saúde e situações de estresse. Diante dessa abordagem da insegurança alimentar e nutricional, os profissionais de saúde devem estar atentos para avaliar a associação entre a InSan e os fatores de risco cardiometabólicos, bem como suas consequências para a saúde das crianças e dos adolescentes. A identificação e o tratamento precoce da InSan e dos fatores de risco associados podem possibilitar a prevenção de agravos futuros.
FinanciamentoO estudo não recebeu financiamento.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.