O presente artigo pretende discutir as reformas penais no Brasil, no contexto de um processo de democratização inacabada do ponto de vista da afirmação dos direitos e garantias fundamentais, em que a violência e a seletividade dos mecanismos estatais de controle do crime ainda são a característica mais marcante do sistema penal. Partindo do diagnóstico do superencarceramento, vinculado ao grande número de presos provisórios e de condenados por tráfico de drogas, e de uma apresentação da estrutura do campo do controle do crime no Brasil, do ponto de vista formal, discute-se a importância da edição da Lei 12.403/2011, conhecida como Lei das Cautelares no Processo Penal, a resistência do campo jurídico para a aplicação de alternativas ao encarceramento provisório, e a recente implantação das audiências de custódia como mecanismo de controle do arbítrio e da violência policial e de limitação dos abusos na utilização do poder punitivo.
En el presente artículo se discuten las reformas penales en Brasil dentro de un contexto que comprende un proceso de democratización inconclusa desde el punto de vista de la afirmación de los derechos y garantías fundamentales, en donde la violencia y la selectividad de los mecanismos estatales para controlar el crimen, todavía son la característica distintiva del sistema penal. Partiendo del diagnóstico del encarcelamiento masivo, vinculado al gran número de presos provisionales y de los condenados a prisión por motivos de tráfico de drogas, así como de la presentación de una estructura en el campo del control del crimen en Brasil, desde el punto de vista formal se discute la importancia de la reforma en la Ley 12.403/201, conocida como Ley de la Prevención del Proceso Penal, la resistencia del campo jurídico para la aplicación de las alternativas al encarcelamiento preventivo, así como la reciente implementación de audiencias de custodia como mecanismo de control de la autoridad y la violencia policial, también de la limitación a los abusos en la utilización del poder punitivo.
This article discusses the penal reforms in Brazil in the context of an unfinished democratization process, in which violence and selectivity of state mechanisms of crime control are still the most striking feature of the penal system. From the diagnosis of increased incarceration, linked to the large number of pre-trial detainees and convicted of drug trafficking, and a presentation of the structure of the crime control field in Brazil, from the formal point of view, it discusses the importance of enactment of Law 12.403 / 2011, known as the Law of Precautionary Measures in Criminal procedure, the legal field resistance to the application of alternatives to provisional detention, and the recent implementation of custody hearings as control mechanism to police discretion and violence and limitation of abuse of the punitive power.
Desde o retorno à democracia, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tem se tornado cada vez mais explícita a dificuldade do sistema de justiça penal no Brasil para, dentro da legalidade, lidar com a crescente taxa de criminalidade, acarretando a perda de legitimidade do Estado e a falta de confiança nas instituições de justiça e segurança.
Para Guillermo O’donnell, a maioria dos países da América Latina não foi capaz de consolidar sistemas de Estados de Direito depois da transição para a democracia. Para ele, a desigualdade extrema na região é um dos maiores empecilhos para uma implementação mais imparcial do Estado de Direito. O Brasil, como um dos mais desiguais países do continente, pode ser caracterizado como um sistema de não-Estado de Direito. Segundo ele, Na América Latina há uma longa tradição de ignorar a lei ou, quando ela é acatada, de distorcê-la em favor dos poderosos e da repressão ou contenção dos fracos. Quando um empresário de reputação duvidosa disse na Argentina: “Ser poderoso é ter impunidade [legal]”, expressou um sentimento presumivelmente disseminado de que, primeiro, cumprir voluntariamente a lei é algo que só os idiotas fazem e, segundo, estar sujeito à lei não é ser portador de direitos vigentes, mas sim um sinal seguro de fraqueza social. Isso é em particular verdadeiro, e perigoso, em embates que podem desencadear a violência do Estado ou de agentes privados poderosos, mas um olhar atento pode detectá-lo também na recusa obstinada dos privilegiados a submeter-se a procedimentos administrativos regulares, sem falar da escandalosa impunidade criminal que eles costumam obter.2
Neste sentido, observa-se que o sistema acentua a desigualdade social por sua dinâmica seletiva: além da imensurável cifra oculta de delitos praticados, uma pequena parcela dos casos que chegam até a polícia judiciária são transformados em processo penal, explicitando a incapacidade institucional para apurar a maior parte dos eventos criminais. Conforme Alba Zaluar, Uma porcentagem incrivelmente elevada de homicídios não é objeto de inquérito policial, e seus autores não são jamais identificados. Um estudo do sistema criminal de Justiça em São Paulo revelou que as maiores porcentagens de condenação estão entre os acusados de tráfico de drogas ou de roubo, e não entre os acusados de homicídios e assalto à mão armada, os dois crimes que mais apavoram as pessoas. Ainda um outro provou que, de 4.277 boletins de ocorrência de homicídios, apenas 4,6% tiveram o autor e o motivo conhecidos e registrados. No Rio de Janeiro, mais um estudo mostrou que 92% dos casos de homicídio foram devolvidos à polícia porque não tinham as provas necessárias para serem julgados.3
Em decorrência disto, o processo penal, que é instaurado em relativamente poucos casos, passa a ser utilizado como um mecanismo de punição antecipada, já que a prisão preventiva do acusado e todos os demais ritos processuais podem oferecer uma falsa sensação de eficácia do poder punitivo do Estado, nos casos em que ele é acionado.4
Em uma sociedade hierárquica e desigual como a brasileira, em que as relações sociais são muitas vezes pautadas não pelo princípio da igualdade, mas por relações de clientelismo e compadrio, o criminoso é visto sempre como o “outro”, aquele que não está ao abrigo da lei e do direito, e deve ser submetido ao arbítrio e à violência que a própria sociedade exige dos agentes do sistema. É este o sentido inacabado da democracia brasileira, em que o funcionamento regular das instituições, a realização de eleições regulares e a livre organização política não correspondem a um processo de afirmação de direitos e garantias fundamentais para grandes parcelas da população, submetidos à violência da polícia e à dinâmica judicial ainda marcada pela inquisitorialidade, com juízes atuando como verdadeiros “justiceiros” no combate ao crime, condenando sem provas ou mediante provas ilícitas, utilizando práticas processuais atentatórias aos direitos do acusado, como o abuso na prisão preventiva, e submetendo o apenado a uma execução da pena sem um mínimo de dignidade e respeito às previsões legais.
O fenômeno criminal, e em particular o aumento da criminalidade violenta no Brasil nas últimas décadas, têm sido pouco afetados pelas políticas de encarceramento massivo implementadas a partir da edição da Lei 8.072/ 90 (Lei dos Crimes Hediondos), que impediu a progressão de regime e com isso ampliou sobremaneira a população carcerária desde então,5 sem que tenha ocorrido redução da tendência de crescimento destes delitos.
Em que pese o fato de que há um déficit de eficácia da legislação nas mais diversas áreas, isso não impede que avance a hipertrofia ou inflação de normas penais, que invadem campos da vida social anteriormente não regulados por sanções penais. A expansão penal não produziu alterações significativas no perfil da população carcerária, que segue sendo caracterizada por indivíduos com baixo grau de instrução e renda, tendo sido encarcerados em sua grande maioria pela prática de crimes contra o patrimônio (roubo) ou por tráfico de drogas, e que no interior do sistema penitenciário vão ser integrados de forma permanente às redes de gerenciamento dos mercados ilegais.6
Mesmo com a implementação de políticas distributivas, a elevação dos índices de desenvolvimento humano em todo o país e a redução das desigualdades sociais na última década, chama a atenção o fato de que a população carcerária brasileira continua crescendo de forma ininterrupta. Considerando a taxa de presos por 100 mil habitantes, temos que a taxa em 1990 era de 104,7 presos por 100 mil habitantes acima dos 18 anos de idade, e chegou a 420,6 presos por 100 mil habitantes no ano de 2014. O crescimento neste período foi praticamente ininterrupto, como mostrado na página seguinte
Em números absolutos e considerando a série histórica de 1990 a 2014, percebe-se que depois de um período de estabilidade no início dos anos 2000, quando a população carcerária girava em torno dos 230 mil presos, o crescimento foi significativo e constante (com a exceção do ano de 2005) de aproximadamente 8% ao ano, chegando a um total de 607 mil presos em junho de 2014.
A população carcerária brasileira em junho de 2014 representava uma taxa de encarceramento de 420,3 presos por 100 mil habitantes com idade acima de 18 anos. Essa taxa varia muito de estado para estado, tornando a geografia do encarceramento no Brasil bastante diversa e complexa.
Em junho de 2014, 61.2% do total de presos no Brasil eram condenados. Já os presos em situação provisória, ainda sem uma condenação criminal, representavam 38.3% do total. Apesar de representar uma pequena redução em relação à 2013, o crescimento do número de presos provisórios se manteve constante na última década, inclusive após a entrada em vigor da nova lei de cautelares no processo penal (Lei 12.403/11), que deu ao judiciário uma série de novas possibilidades para a garantia do andamento do processo, sem a necessidade da prisão do acusado, entre as quais o monitoramento eletrônico.7
Em números absolutos, apenas o estado de São Paulo representava, em junho de 2014, aproximadamente 30% do total de presos provisórios do país, um total de 66.113 (30,8% do total de presos no estado). Em termos proporcionais, Sergipe, Piauí e Pernambuco eram, naquele mesmo momento, os estados com o maior percentual de presos provisórios, com 70.9%, 63.6% e 59.1%, respectivamente. Também apresentavam taxas elevadas de presos provisórios, bem acima da média nacional, os estados do Maranhão, Bahia e Amazonas, todos com mais de 54% de presos provisórios. Taxas tão elevadas estão relacionadas, entre outros aspectos, com a morosidade judicial e a não efetivação das garantias processuais para determinados perfis de acusados, que acabam por responder ao processo presos, por períodos que chegam a até 2 anos ou mais, sem que haja uma justificativa legalmente plausível.8
O aumento da opção pelo encarceramento no Brasil não é acompanhado pela garantia das condições carcerárias, contribuindo para a violência no interior do sistema prisional, a disseminação de doenças e o crescimento das facções criminais. Em 2011, o déficit era da ordem de 175.841 vagas. Já em 2012, este número passa para 211.741, num crescimento de 20% no curto período de um ano, chegando a média nacional a 1,7 presos por vaga no sistema (depen/InfoPen).
Segurança Pública e Justiça Penal no Brasil – Atribuições e CompetênciasAnalisar as reformas penais e seu impacto sobre as taxas de encarceramento no Brasil implica em dar conta da grande complexidade do campo do controle do crime, no qual atuam órgãos vinculados ao Poder Executivo Federal (Ministério da Justiça, Polícia Federal), aos governos estaduais (Polícias Civil e Militar, administração carcerária), ao Poder Judiciário (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Justiça Federal e Justiça dos estados) e ao Poder Legislativo (Congresso Nacional – Câmara dos Deputados e Senado Federal).
A competência exclusiva para legislar em matéria penal no Brasil é do Congresso Nacional, não tendo os estados autonomia para definir condutas criminalizadas para além daquelas estabelecidas em lei federal, nem para a criação de normas processuais.
Os órgãos responsáveis pela segurança pública no Brasil estão definidos pelo artigo 144da Constituição Federal, que prevê a existência e as atribuições da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Polícia Ferroviária Federal (em extinção), e das polícias civis e das polícias militares e corpos de bombeiros estaduais, com competência para a investigação criminal dos crimes de competência da justiça estadual (Polícia Civil) e para o policiamento ostensivo (Polícia Militar). A importância assumida pelas policias civis e militares confere proeminência aos governos estaduais na gestão da segurança pública, sendo eles os mais cobrados pelas dificuldades enfrentadas no setor.
Por outro lado, quando se discute especificamente a atuação da polícia judiciária no Brasil, é preciso considerar uma série de peculiaridades que têm sido apontadas pelas pesquisas realizadas no âmbito das Ciências Sociais, que discutem, entre outras coisas, o modelo adotado no Brasil para a investigação criminal.
Diante da precariedade de meios, boa parte das previsões legais que estabelecem os procedimentos a serem realizados durante o inquérito policial não são seguidos, tendo como justificativa a necessidade de lidar com as dificuldades cotidianas e responder à demanda imediata. As práticas correntes atravessam a fronteira de uma legalidade considerada antiquada, inquisitorial, quando não autoritária, seguindo em direção a um tipo de “ilegalidade prática”, uma lógica em uso justificada pela eficiência. Se o inquérito passa a ser um entrave, criam-se alternativas práticas para dar eficiência a algo que de outro modo não atenderia a imensa demanda recebida pela polícia. No entanto, esta “ilegalidade eficiente” tanto diminui as garantias de direitos dos acusados, quanto também não têm se demonstrado capaz de aumentar a capacidade investigativa da polícia.9
Quanto à estrutura judiciária brasileira, tem suas bases estabelecidas pelo Capítulo iii do Título iv da Constituição Federal. No topo se encontra o Supremo Tribunal Federal (stf), composto por onze Ministros nomeados pelo Presidente da República, com aprovação da escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, com mandato vitalício e aposentadoria compulsória aos 75 anos de idade.
O Supremo acumula funções que, em outros países, estariam divididas em pelo menos três órgãos. Exerce a função de tribunal de última instância para o julgamento de recursos contra decisões dos juízes e tribunais de instâncias inferiores. A segunda função é de corte constitucional, por meio das ações diretas de inconstitucionalidade. Por último, cabe ao stf julgar originariamente as infrações penais comuns de que sejam acusados o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República.
Compete também ao stf o julgamento originário, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, dos Ministros de Estado e dos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, assim como o habeas corpus, sendo paciente qualquer das pessoas referidas, ou quando o coator for Tribunal Superior, ou ainda quando paciente ou coator for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do stf, e ainda a extradição solicitada por Estado estrangeiro, a revisão criminal e a ação rescisória de seus julgados. Em recurso ordinário, compete ao stf o julgamento do habeas corpus decidido em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão.
Abaixo do stf a Constituição estabelece também a competência criminal para o Superior Tribunal de Justiça – stj; o Tribunal Superior Eleitoral – tse; e o Superior Tribunal Militar – stm. Estabelece também a Constituição a divisão da Justiça brasileira em federal e comum. A Justiça Federal está dividida em três instâncias: a Justiça de 1° grau, os Tribunais Regionais Federais e o Superior Tribunal de Justiça. A Justiça Comum está estruturada em três graus, quais sejam: a Justiça de 1° grau nos estados, os Tribunais de Justiça nos estados e o Superior Tribunal de Justiça. A competência da Justiça Federal está estabelecida nos arts. 108 e 109da cf, ficando para a Justiça Comum a chamada competência residual. Nos estados, a Justiça Comum está estruturada de acordo com as Leis Estaduais de Organização Judiciária.
Quanto ao procedimento adotado pelo Código de Processo Penal, uma alteração introduzida pela Lei 11.719, de 20 de junho de 2008, estabelece que o mesmo pode ser comum ou especial. O procedimento comum se subdivide em comum ordinário, quando o crime tiver sanção máxima cominada igual ou superior a quatro anos de pena privativa de liberdade; sumário, tratando-se de crime com pena máxima cominada inferior a quatro anos de pena privativa de liberdade; e sumaríssimo, para as infrações penais de menor potencial ofensivo, com pena máxima prevista até dois anos de pena privativa de liberdade. A Lei determina que o procedimento comum, nas suas três modalidades, seja aplicado a todos os processos, salvo as disposições expressas em contrário, previstas no próprio Código de Processo Penal ou em legislação especial.
No procedimento comum ordinário ou sumário, após o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, tendo por base o inquérito policial, ou da queixa, pelo titular da ação privada, o juiz poderá rejeitá-la liminarmente ou recebê-la. Recebendo-a, ordenará a citação do acusado para oferecer resposta à acusação, por escrito, no prazo de dez dias (art. 396). Depois de oferecida a resposta pelo acusado, o juiz deverá verificar a possibilidade de absolvição sumária do mesmo, conforme previsão contida nos incisos do artigo 397 do Código Processual Penal. Somente então, após o recebimento da peça acusatória, é que o magistrado designará audiência de instrução e julgamento, onde serão tomadas as declarações do ofendido, inquiridas as testemunhas de acusação e defesa (nesta ordem), e realizado o interrogatório do acusado. Dessa forma, todas as provas serão produzidas em uma única audiência. Há ainda a possibilidade do requerimento de diligências, a ser apresentado pelas partes. Sendo este indeferido, ainda em audiência são oferecidas alegações finais orais por vinte minutos respectivamente, pela acusação e pela defesa. Nos casos em que o julgador considerar a complexidade do caso ou do número dos acusados, poderá substituir as alegações orais por memoriais. Logo após será proferida sentença, recorrível por apelação.
Para os delitos chamados de menor potencial ofensivo, com pena máxima até dois anos de reclusão, a Constituição Federal autorizou a criação dos Juizados Especiais Criminais, regulamentados pela Lei 9.099/ 95. Neste caso, é dispensada a realização do inquérito policial, e existe a possibilidade de conciliação entre vítima e autor do fato, para composição dos danos, bem como de transação oferecida pelo Ministério Público para o cumprimento de medida alternativa sem reconhecimento de culpa, e ainda a suspensão condicional do processo, que é cabível não só para os delitos de competência dos Juizados, mas para todos aqueles cuja pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano. Neste último caso, o Ministério Público proporá a suspensão por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime. Não sendo o caso de nenhuma destas hipóteses, o processo prosseguirá com o oferecimento da denúncia e rito sumário, marcado pela oralidade e concentração dos atos processuais, e prolação da sentença em audiência.
Além destes procedimentos, a legislação processual brasileira prevê ainda uma série de procedimentos especiais, entre os quais os que se encontram na lei de drogas, lei de imprensa, lei de falências, etc. O mais complexo dos ritos especiais é o que diz respeito ao julgamento pelo Tribunal do Júri, previsto no art. 5° da cf para os crimes dolosos contra a vida.
Durante o processo penal é possível a decretação da prisão do acusado, nos casos de prisão temporária, prisão preventiva e prisão em virtude de pronúncia. A prisão preventiva é autorizada pelo Código de Processo Penal para garantir a ordem pública, a instrução criminal e a futura aplicação da lei penal. Parte da doutrina considera a primeira modalidade como inconstitucional, por contrariar o princípio da presunção de inocência.
Tentativas de reforma para a redução do arbítrio e da violência do sistema penal: a Lei das Cautelares no Processo Penal e as Audiências de CustódiaA última década no Brasil foi marcada por um crescimento constante do número de presos provisórios. A utilização das medidas cautelares, em especial a prisão preventiva, torna-se rotineira, contrariando o entendimento de que deveriam ser restritas a casos excepcionais. Com uma clara intenção descarcerizadora, em maio de 2011 foi sancionada a Lei n. 12.403, que, entre outras disposições, passou a prever medidas cautelares alternativas à prisão. Importante destacar que, antes da edição da nova lei, o juiz não contava com opções intermediárias, é dizer, ou concedia a liberdade provisória ou decretava a prisão preventiva do acusado.
A reforma legal foi encaminhada ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo em 2001, havendo sido elaborada por uma comissão composta por juristas10 constituída pela Portaria núm. 61, de 20 de janeiro de 2000.11
Após a edição da nova lei, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais dedicou um boletim ao tema, destacando que a reforma legal foi formulada na direção oposta das tradicionais respostas punitivas emergenciais, demonstrando a existência da possibilidade de elaboração de uma política criminal consistente. Ressaltou-se, ainda, que o processo que levou à elaboração da lei, com uma discussão séria e ponderada, deveria servir de exemplo aos legisladores brasileiros.12
Com a reforma legal, a prisão preventiva deixou de ser a medida cautelar pessoal por excelência, situando-se (ao menos formalmente), como ultima ratio do sistema cautelar criminal. Sua função é eminentemente processual, é dizer, destina-se a tutelar o processo (nas hipóteses de fuga do imputado; assegurar sua presença no processo; garantir a incidência da pena, em caso de eventual condenação; assegurar o desenvolvimento das atividades das partes e sujeitos processuais – depoimentos de vítimas e testemunhas, por exemplo).13
Entre as principais disposições da nova lei, está a determinação de que a prisão preventiva poderá ser decretada somente quando não for cabível a imposição de outra medida cautelar,14 constituindo-se como medida de ultima ratio não mais apenas da leitura constitucional e convencional do processo penal (a partir da garantia da presunção de inocência), mas dos princípios e regras gerais da Lei 12.403/2011. A lei determina a apreciação da necessidade da medida (para a investigação, instrução processual, aplicação da lei penal e para evitar a reiteração criminosa) e de sua adequação ao caso concreto (gravidade do delito, circunstâncias do fato e condições pessoais do imputado). Assim, a prisão preventiva só poderia ser determinada quando não houver outra medida cautelar cabível.
Vale ressaltar que a imposição de medidas distintas da prisão não é obrigatória na concessão da liberdade provisória, podendo ser concedida a liberdade sem a imposição de qualquer medida. Dessa forma, o legislador deixou margem para a atuação do juiz ao não atrelar, obrigatoriamente, a liberdade provisória à imposição de outra medida cautelar.15 Porém, segundo Lopes Jr., há o temor de que ocorra uma utilização massiva e indevida das medidas de controle.16 Para a determinação da medida aplicável, o magistrado deve considerar a adequação da cautelar às necessidades do caso concreto e às consequências do crime praticado.17
Algumas das medidas alternativas já se encontravam na legislação de forma não sistematizada e eram aplicadas em situações específicas, como nos casos de violência doméstica.18 A edição da Lei 12.403/2011 permitiu a sistematização das medidas cautelares pessoais penais diversas da prisão, quais sejam: a) comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; b) proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; c) proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; d) proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; e) recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; f) suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; g) internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; h) fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; e i) monitoração eletrônica.
As medidas cautelares poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, segundo o disposto no parágrafo 1° do art. 282 do cpp. Ainda, no caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva. Vale ressaltar, porém, que, antes de decretar a prisão preventiva, há necessidade de serem ultrapassados, ao menos, três filtros: a) ausência de justificação do descumprimento; b) possibilidade de substituição da medida descumprida por outra; e c) cumulação de outra medida alternativa à descumprida.
De acordo com Giacomolli, a motivação fática é “o descumprimento injustificado da medida cautelar anteriormente fixada, a insuficiência de ser substituída a cautelar descumprida e a insuficiência de ser cumulada outra cautelar àquela descumprida”.19 Ainda, o juiz poderá revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista,20 bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. A nova lei também determinou que as medidas cautelares não se aplicam à infração a que não for cominada pena privativa de liberdade. Ou seja, nos delitos que não sejam apenados com a privação de liberdade, não poderá o juiz determinar qualquer medida cautelar.
A nova lei ainda deixa claro que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá relaxar a prisão, converter a prisão em flagrante em preventiva (quando presentes os requisitos constantes do art. 312 do cpp,21 e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão) ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Ademais, a autoridade policial poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos. Nos demais casos, a fiança somente poderá ser arbitrada pelo juiz. Contudo, não será concedida fiança nos crimes de racismo; nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo, nos definidos como crimes hediondos e nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Ainda, não será concedida fiança aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, as obrigações de comparecer perante a autoridade quando intimado, mudar de residência, sem prévia permissão da autoridade processante ou ausentar-se por mais de oito dias de sua residência, sem comunicar à autoridade o lugar onde será encontrado, bem como nos casos de prisão civil e militar.22
A nova lei também regulamentou a prisão domiciliar,23 determinando que o juiz poderá substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: a) maior de oitenta anos; b) extremamente debilitado por motivo de doença grave; c) imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de seis anos de idade ou com deficiência; d) gestante a partir do sétimo mês de gravidez ou sendo esta de alto risco. Desta forma, após a decretação da prisão preventiva, analisando o caso concreto o juiz poderá determinar o recolhimento do imputado em sua residência. Segundo Giacomolli, “tratase de substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar, por razões humanitárias”, fundada na proteção da dignidade da pessoa humana e na saúde do preso, distinta do recolhimento domiciliar previsto nas medidas alternativas. O cumprimento da prisão domiciliar se dá com o recolhimento do imputado à sua residência, não podendo de lá sair sem autorização judicial.24
A reforma legal ora analisada se insere no ordenamento jurídico brasileiro como um avanço, no sentido de prover os magistrados de instrumentos diversos da prisão do imputado para a garantia da persecução penal. Desde logo, as medidas distintas da prisão são sempre mais positivas do que o encarceramento, porém, passados mais de cinco anos da edição da lei, ainda é necessário verificar se a reforma legal realmente diminui a utilização da prisão preventiva. Pelo que se pode observar da jurisprudência dos tribunais brasileiros, a resistência em relação às medidas alternativas ainda é grande, o que nos leva a pensar que a ampliação do controle punitivo é, por ora, a consequência predominante da nova lei.
Conforme aponta Lopes Jr.: O maior temor é que tais medidas sejam deturpadas, não servindo, efetivamente, como redutoras de danos, mas sim de expansão de controle. O problema reside exatamente na banalização do controle, de modo que condutas de pouca reprovabilidade e que até agora não ensejariam qualquer tipo de controle cautelar (até pela desnecessidade), passem a ser objeto de incidência de restrições. O que se busca com a reforma é reduzir o campo de incidência da prisão cautelar e não criar um maior espaço de controle estatal sobre a liberdade individual.25
Assim, destaca-se o risco de aumento do controle sobre os indivíduos selecionados pelo sistema de justiça penal e o entendimento de que uma interpretação equivocada da lei poderá levar à banalização das medidas cautelares alternativas, na medida em que os danos causados por essas são inferiores a prisão preventiva. Não se pode desprezar a gravidade das restrições impostas pelas medidas alternativas, já que acabam por controlar a vida cotidiana dos acusados, como as medidas de proibição de frequentar determinados lugares, equiparada à pena de banimento por Lopes Jr., na medida em que impõe rígidas restrições ao direito de circulação do imputado.26
Com efeito, apenas a estratégia normativa não será suficiente para alterar a caótica situação do sistema penitenciário brasileiro e do elevado número de pessoas presas preventivamente, passando a mudança desde o desenvolvimento de políticas públicas integrais até a criação de uma estrutura (de fiscalização e implementação) necessária à efetividade da legislação. Ademais, a racionalidade punitiva presente na cultura jurídica também revela a necessidade de que os envolvidos no processo penal transgridam as bases forjadas na década de 40, quando da elaboração do CPP brasileiro, em que a prisão preventiva era obrigatória para certos delitos. Ao menos, a partir da edição da Lei 12.403/2011, o magistrado brasileiro conta efetivamente com medidas cautelares que não implicam, necessariamente, na restrição absoluta da liberdade do acusado.
Contudo, até o momento, não foi possível perceber o pretendido rompimento do binômio prisão preventiva/liberdade provisória, sendo a prisão preventiva cotidianamente aplicada nos tribunais do país,27 muitas vezes sequer verificando o cabimento de medidas alternativas e em desrespeito a garantias fundamentais como a legalidade, a presunção de inocência, a proporcionalidade, o devido processo legal e sua razoável duração.
Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, em pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes,28 mostrou-se que dois anos após a Lei 12.403/2011, em relação aos crimes vinculados ao tráfico de drogas distribuídos às varas criminais do fórum da capital fluminense, a prisão ainda foi a principal medida cautelar utilizada em três quartos dos casos. O centro de estudos analisou todos os processos vinculados ao tráfico de drogas, distribuídos durante o ano de 2013. Em 2011, antes da Lei das Cautelares, 99% dos réus acusados de tráficos de drogas tinham suas prisões em flagrante convertidas em privação de liberdade. Apesar da visível melhora, os números continuaram alarmantes. Isso porque, consultando os dados dos processos de réus acusados de tráfico de drogas concluídos em 2013, percebeu-se que em 55% dos casos as pessoas presas provisoriamente foram absolvidas ou tiveram penas apenas restritivas de direito, o que evidencia que a maioria poderia ter respondido em liberdade.
Mais recentemente, o Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o Ministério da Justiça e diversos governos estaduais, passou a estimular a adoção das Audiências de Custódia como rotina dos tribunais estaduais para apresentação dos presos em flagrante à autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas após sua prisão e garantir que a manutenção da prisão se configure apenas nas hipóteses estritamente necessárias. Medida aplicada em consonância com o chamado Pacto de San Jose da Costa Rica, do qual o Brasil foi signatário.29
O relatório do Ministério da Justiça, de autoria de Paula Ballesteros, mostra que o quadro da situação após a implementação da audiência de custódia vem melhorando de forma bastante significativa.30 Antes da implementação da Lei de Cautelares, no Rio de Janeiro, 83.8% dos casos resultavam em encarceramento provisório. Com a lei, passou para 72.3% dos casos e, com as audiências de custódia, caiu para 57%. Em São Paulo, de 87.9% de prisões em flagrantes convertidas em prisões preventivas, houve queda para 61.3%, depois da Lei de Cautelares, e foi para 53% após as audiências de custódia.
Meirângela Silva mostrou como se deu a implementação em outros estados do país.31 No Espírito Santo, em três meses de implementação da medida, foram feitas 1,600 audiências, nas quais 50% dos autuados obtiveram o direito de responder ao processo em liberdade, e os 50% restantes tiveram suas prisões em flagrante convertidas em prisões preventivas.
Em Goiás, a primeira audiência de custódia, realizada em 10 de agosto de 2015 foi marcada pela determinação da liberdade provisória de um acusado de praticar o crime de ameaça. Depois de verificada a não ocorrência de maus tratos após a prisão, entendeu-se pelo relato do autuado que não existiam requisitos para a decretação de sua prisão preventiva. Foi, então, determinado o cumprimento de medidas cautelares, como o comparecimento periódico ao juízo e a todos os atos do processo.
No Ceará, a primeira audiência de custódia, que aconteceu no dia 21 de agosto de 2015, também resultou na liberdade provisória de um acusado de praticar o crime de receptação. Ressalta-se, no entanto, que a audiência de apresentação só se deu quatro dias após a detenção.
No Distrito Federal, a adesão ao projeto se deu em 14 de outubro de 2015. As audiências vêm acontecendo diariamente, inclusive nos fins de semana e feriados. Por essa razão o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Território virou um modelo para todos os estados da federação, sendo o primeiro Tribunal do país a atender a 100% dos presos, sem interrupção. Importante frisar que, neste local, as audiências só podem ser realizadas pessoalmente, contando com a presença física do acusado e do juiz, afastando, portanto, a ideia de realização da audiência por meio de videoconferência.
Yuri Jurubeba, em relatório de pesquisa intitulado “Concretização da Audiência de Custódia no estado do Tocantins”, tenta avaliar a implantação das audiências e fazer um levantamento dos resultados no Estado do Tocantins, no ano de 2015.32 O trabalho serviu de auxílio ao Tribunal de Justiça local para a elaboração e a aprovação da minuta do ato normativo que regulamentou a audiência de custódia em âmbito estadual (Resolução núm. 17/2015-tjto). O autor realizou levantamento quantitativo dos indivíduos que foram postos em liberdade no momento da análise do auto de prisão em flagrante pela autoridade judiciário antes e depois da implantação do procedimento. Considerando que a audiência de custódia foi instalada no mês de agosto, chegou-se ao seguinte número de liberdades provisórias deferidas: 23.3% no mês de janeiro, 24.2% no mês de fevereiro, 12.2% no mês de março, 13,3% no mês de abril, 15.6% no mês de maio, 16.8% no mês de junho, 23.7% no mês de julho, 62.8% no mês de agosto, 63.6% no mês de setembro, 51.9% no mês de outubro, 40.7% no mês de novembro e 42.5% no mês de dezembro.
O relatório do Ministério da Justiça, já mencionado, fez um amplo diagnóstico da implantação das audiências de custódia no país. Foram coletadas informações entre os meses de janeiro e maio de 2016, reunidas por meio de entrevistas e reuniões com profissionais e entidades envolvidas em quatro estados (sp, rs, pe, rs) e no Distrito Federal, da análise de dados primários e secundário, quantitativos e qualitativos, relativos às audiências de custódia em todo o território nacional, do acompanhamento de clipping diário de notícias de veículos de comunicação e portais oficiais dos tribunais relacionados à audiência de custódia e da participação no II Fórum Nacional de Alternativas Penais (fonape), promovido pelo cnj, que contou com o tema “Audiências de Custódia e desconstrução da cultura do encarceramento em massa”.
A coleta de dados e as pesquisas de campo evidenciaram uma grande discrepância entre os estados em relação à implementação das diretrizes ditadas pela Resolução do cnj e, em consequência, os resultados obtidos com a implementação do projeto também divergiram bastante. No entanto, ainda não é possível fazer generalizações quanto ao êxito ou fracasso das audiências no país, pois a pesquisa de campo demonstrou que há grandes diferenças entre as rotinas locais, tanto porque a implementação das audiências aconteceram em momentos distintos, tanto porque o fluxo dos sistemas de justiça criminal estadual variam e interferem de maneiras diversas na realização e no resultado das audiências. De qualquer forma, de uma maneira geral, os números se mostraram bastante expressivos: das 74,864 audiências realizadas, 35,067 dos casos resultaram em liberdade (46.84%) e 39,797 do casos resultaram em prisão preventiva (53.16%).
O acompanhamento cotidiano da implementação dessas inovações, assim como a análise advinda de pesquisas a respeito do tema, tem revelado que a prisão preventiva continua sendo a principal opção dos magistrados para substituir a prisão em flagrante e, mais, quando fazem uso das medidas cautelares, os juízes o fazem em substituição à liberdade, que poderia, seguindo os requisitos legais, ser concedida sem condicionantes. Além disso, majoritariamente, a fiança aparece como a medida cautelar de maior incidência nas decisões judiciais, mesmo considerando que grande parte das pessoas presas em flagrante integra parcela da população em situação de vulnerabilidade social e econômica.
De qualquer forma, se reconhece a potencialidade das audiências de custódia e das medidas cautelares para fazer cumprir os requisitos constitucionais de presunção de inocência e primazia da liberdade; em reduzir os custos do sistema de justiça criminal com presos de menor potencial ofensivo; em evitar com que a prisão provisória se transforme em condenação antecipada, bem como a necessidade de identificar as condições estruturais e ideológicas que dificultam que referidas inovações sejam efetivamente implementadas pelo sistema de justiça.
Considerações finaisA relação entre a prisão e as alternativas que se propõem no seu lugar não é necessariamente de ruptura, mas também de coexistência, continuidade e funcionamento recíproco. A expansão da utilização de alternativas penais não apresenta uma relação direta e necessária com a redução na utilização da prisão, podendo inclusive ocorrer a expansão tanto do uso da prisão quanto de formas punitivas diversas dela. No entanto, da eventual conclusão de que as alternativas penais não romperam com a centralidade do cárcere não decorre que tais alternativas sejam incapazes de qualquer ruptura.
Os efeitos produzidos por tais estratégias alternativas à prisão vinculamse tanto às interações entre as diversas tendências político-criminais presentes na sua emergência e implementação, quanto às formas de compreensão acerca do crime e do criminoso que num dado momento orientam a sua configuração específica. Assim, se é relevante questionar o que as alternativas penais “fizeram”, ou seja, qual o impacto de sua implementação na redução do encarceramento, é igualmente relevante questionar “o que se fez” com as alternativas penais, ou seja, de que modo os atores envolvidos na sua produção e implementação, bem como nos demais espaços do campo judicial, buscaram conduzir, implementar ou se opor às medidas cautelares diversas do encarceramento.33
Tomando o discurso como uma prática entre outras práticas existentes no campo do controle do crime, podemos dizer que, em um dado momento, condições de possibilidade semelhantes atuam na produção de práticas tanto discursivas quanto não discursivas. O discurso não é a representação de uma ação que ocorre em outro lugar, mas mudanças em uma prática discursiva indicam mudanças em outros pontos do campo do controle do crime, como nos posicionamentos de seus atores e nas práticas não discursivas que são implementadas ou afastadas. Analisar as maneiras como o crime e a punição são enunciados pelos atores da política criminal quando falam em medidas cautelares diversas da prisão, bem como acerca das audiências de custódia, fornece, portanto, indicações sobre como as alternativas penais são pensadas e postas em funcionamento por esses atores.
Propomos pensar as alternativas penais à prisão como instrumentos em uma luta política, elementos táticos inseridos em jogos de força, atravessados por relações de poder-saber, que se integram a dispositivos jurídico-legais, disciplinares e de segurança. São técnicas que tem sua especificidade entre outros processos de poder, compreendido como uma estratégia, cujos efeitos de dominação atribuem-se a manobras, táticas, a funcionamentos.34 Ao mesmo tempo em que possibilitam a resistência a certa configuração do poder punitivo, as alternativas penais somente se constituem enquanto possibilidade de resistência por não se encontrarem “fora” da configuração de poder a que se contrapõem, mas justamente num dos pontos em que ele é exercido e que por aí mesmo pode ser reconduzido.
Somente colocando em evidência os modos de funcionamento das alternativas penais nesses jogos de forças nos quais se constituíram e se mantém é que podemos pensar e produzir outros modos de funcionamento, alternativas às alternativas. A análise, desse modo, deve estabelecer os elementos de realidade que desempenharam um papel operatório na constituição da prisão preventiva e das medidas cautelares alternativas como resposta possível e/ou necessária em um dado processo penal. Ainda, é preciso questionar por que uma dada estratégia e seus instrumentos táticos foram escolhidos em detrimento de outros possíveis, determinando que efeitos de retorno foram produzidos, o que dos inconvenientes foi percebido e que em que medida isso provocou uma reconsideração acerca da prisão preventiva e das medidas cautelares diversas da prisão.
As formas de conceber o crime e as práticas investidas no seu controle, enquanto modos de governo dos homens pelos homens, supõem uma certa forma de racionalidade, e os que buscam resistir contra uma forma de poder nelas presente não podem se contentar em denunciar a violência das agências policiais ou em criticar uma instituição como a prisão.35 É preciso colocar em questão a própria forma de racionalidade presente nessas agências e instituições voltadas ao crime e seu controle, perguntarse como são racionalizadas as relações de poder existentes em seus modos de funcionamento. Colocar essa racionalidade em evidência é o único modo de evitar que outras instituições, que, apesar de serem colocadas como contraponto, articulam-se em torno dos mesmos objetivos e produzem os mesmos efeitos, tomem o seu lugar.
Doutor em Sociologia, Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil, pesquisador do INCT-INEAC (Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos) e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Linha de investigação: Sociologia da Violência e da Conflitualidade Social, Sociologia Jurídica, Criminologia.
O¿Donnell, Guillermo (2000), “Poliarquias e a (in) Efetividade da Lei na América Latina: Uma Conclusão Parcial”, em Méndez, Juan, Guillermo O′Donnell e Paulo Sérgio Pinheiro (org.), Democracia, Violência e Injustiça – O Não-Estado de Direito na América Latina, Paz e Terra, São Paulo, p. 346.
Zaluar, Alba (2007), Democratização inacabada: fracasso da segurança pública, Estudos Avançados, vol. 21, núm. 61, São Paulo, p. 43-44.
Vasconcellos, Fernanda Bestetti de, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (2008), “A Prisão Preventiva como Mecanismo de Controle Punitivo: análise das decisões do TJ/RS nos anos de 2005 e 2006”, em 32° Encontro Anual da ANPOCS, Anais do 32° Encontro Anual da anpocs, Caxambu, Minas Gerais.
Sobre o impacto da Lei dos Crimes Hediondos nas taxas de criminalidade e na administração carcerária, vide o relatório de pesquisa do ILANUD (2005), A Lei de Crimes Hediondos como Instrumento de Política Criminal, São Paulo, Relatório de Pesquisa, disponível em http://www.prsp.mpf.mp.br/prdc/area-de-atuacao/torviolpolsist/RelILANUD.pdf acesso em 30.03.2016.
Para uma análise do impacto da nova lei de cautelares sobre as decisões judiciais em matéria de prisão preventiva, vide a pesquisa realizada pelo Instituto Sou Da Paz (2014), O Impacto da Lei de Cautelares nas Prisões em Flagrante na Cidade de São Paulo, Relatório de Pesquisa, 53 pp. disponível em http://www.soudapaz.org/upload/pdf/lei_das_ cautelares_2014_digital.pdf
Santos, Rogério Dultra (coord.) (2015), Excesso de prisão provisória no Brasil: um estudo empírico sobre a duração da prisão nos crimes de furto, roubo e tráfico (Bahia e Santa Catarina, 2008-2012), Relatório de Pesquisa, disponível em http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/rogério_finalizada_impressão1.pdf
Sobre a investigação criminal no Brasil, vide Misse, Michel (coord.) (2011), O Inquérito Policial no Brasil – uma pesquisa empírica, Booklink, Rio de Janeiro.
Ada Pellegrini Grinover, Petrônio Calmon Filho, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti, Rogério Lauria Tucci, Sidney Beneti e, posteriormente, Rui Stoco.
A proposta foi alvo de diversos debates, principalmente entre os atores envolvidos com a temática, sendo amplamente discutida na ocasião das III Jornadas Brasileiras de Direito Processual Penal, ocorridas em Brasília em agosto de 2001.
Instituto Brasileiro De Ciências Criminais (2011), “Um oásis no deserto punitivo”, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, ano 19, núm. 223, junho 2011. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/4369-EDITORIAL—Umo%C3%A1sis-no-deserto-punitivo. Acesso em 25 janeiro 2014.
Giacomolli, Nereu José (2013), Prisão, liberdade e as cautelares alternativas ao cárcere, Marcial Pons, São Paulo, 155 p.
O páragrafo 6 do art. 282 do CPP determina o seguinte: A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319).
Lopes Jr., Aury (2012), Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional, Saraiva, São Paulo, 1, 148 pp.
O art. 22, inciso III, alínea ‘a’, da Lei 11.340/2006 já previa medida cautelar protetiva, como a proibição do autor do fato aproximar-se da ofendida, seus familiares e testemunhas.
Lopes Jr. critica a ausência de necessidade de o magistrado determinar prazo máximo para a duração das cautelares, o que pode gerar graves abusos.
Art. 312 do CPP: A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, parágrafo 4°).
Vale ressaltar que, diante de um crime inafiançável, não estando presente o periculum libertatis, requisito da prisão preventiva, poderá o juiz conceder a liberdade provisória sem fiança, mas com medida (s) cautelar(es) alternativa(s), como o monitoramento eletrônico e a proibição de ausentar-se da comarca ou do país, por exemplo. De acordo com Lopes Jr., “o que não se pode tolerar é simplesmente manter alguém preso por ser o crime inafiançável. Não, isso não pode ocorrer, pois o sistema cautelar possui diversas alternativas para tutelar uma situação de perigo e não há possibilidade de execução antecipada da pena.”. Portanto, a inafiançabilidade vedaria apenas a concessão da liberdade provisória com fiança, podendo a liberdade ser vinculada a medidas cautelares diversas, algumas inclusive mais gravosas do que o pagamento da fiança. Lopes Jr., op. cit., p. 894.
Art. 317 do CPP: A prisão domiciliar consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial.
Analisando decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Cazabonnet verificou que 77,72% dos julgados que compuseram o banco de dados da pesquisa (no total, 573 decisões) referiam-se à determinação da prisão preventiva. Revelador o fato de que entre as 392 decisões que aplicaram a prisão preventiva, 351 tenham tido como único fundamento a garantia da ordem pública, conceito extremamente vago, que oferece ampla possibilidade de discricionariedade ao julgador. As medidas cautelares alternativas foram aplicadas em 20,19% das decisões. Por sua vez, a liberdade provisória ficou restrita a somente 1,95% dos casos. Ainda, 64% dos julgados que aplicaram medidas cautelares distintas da prisão referiam-se a crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa. Cazabonnet, Brunna Laporte (2013), Punitivismo e medidas cautelares pessoais: uma análise criminológica e processual da expansão do controle penal, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Direito, Mestrado em Ciências Criminais, Porto Alegre.
Lemgruber, Julita, Marcia Fernandes (coords.) (2015), Tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro. Boletim – CESec, núm. 17, novembro 2015.
O Decreto núm. 678 de 6 de novembro de 1992 promulgou a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) celebrada em 22 de novembro de 1969. No art. 7° do pacto, cujo título é Direito a Liberdade Pessoal, há o seguinte dispositivo: “Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.
Ministério Da Justiça/Departamento Penitenciário Nacional (2016), Implementação das audiências de custódia no Brasil: análise de experiências e recomendações de aprimoramento, Brasília.
Silva, Meirângela Fontes (2016), “Considerações gerais sobre a audiência de custódia e a sua implementação no Brasil”, em Direito Penal e Processo Penal do Instituto Brasiliense de Direito Público, Monografia (Especialização em Direito Penal e Processual Penal), Pós- Graduação Lato Sensu, IDP, Brasília, 2016.
Jurubeba, Yuri Anderson Pereira (2016), Concretização da audiência de custódia no estado do Tocantins, Relatório de Pesquisa, Universidade Federal do Tocantins/Escola Superior da Magistratura Tocantinense, Palmas.
Souza, Guilherme Augusto Dornelles de, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (2016), “Analisar alternativas à prisão: proposta para superar uma dicotomia”, em O público e o privado, vol. 26, p.115-138.
Foucault, Michel (2010) “Omnes et singulatim”: uma Crítica da Razão Política, em Motta, Manoel Barros da (Org.) (2010), Estratégia, poder-saber, 2ª ed., Coleção Ditos & Escritos, vol. 4, Forense Universitária, Rio de Janeiro, pp. 355-385.