O desenvolvimento de uma fístula entre uma grande artéria e o intestino é incomum, constituindo normalmente um evento catastrófico. Os autores descrevem um caso de um homem de 78 anos, com história prévia de stenting ilíaco. O doente recorre ao SU por hematoquézia, em choque hipovolémico e séptico com dor à palpação dos quadrantes inferiores do abdómen. Realizou TC sugerindo hematoma com bolhas aéreas a envolver artéria ilíaca externa (AIE) direita e isquemia do cólon. Submetido a cirurgia, constatando‐se hemorragia arterial abundante da AIE, exteriorização do stent e fístula da artéria ilíaca para o cego (ílio‐cecal). Procedeu‐se a laqueação da AIE, colectomia total e bypass femoro‐femoral. Evolução em choque séptico com falência multiorgânica e óbito ao 15.° dia pós-operatório. A propósito deste caso clínico, não havendo outros descritos na literatura, os autores discutem a terapêutica das fístulas ílio‐cecais.
The development of a fistula between a major artery and the bowel is infrequent, but usually catastrophic. The authors describe the case of a 78 year old man, with a previous history of iliac stenting. He presented to the emergency department with hematochezias, in hypovolemic and septic shock, with tenderness in the lower abdomen. CT was performed suggesting hematoma with air surrounding the right EIA and colonic ischemia. Surgery was performed, finding abundant arterial hemorrhage originating from the EIA, exteriorization of the stent and iliac‐cecal fistula. Ligation of the EIA, total colectomy and femoral‐femoral bypass were performed. Evolution to septic shock and multi-organic failure resulted in the patient‘s death at 15th post-operative day. Regarding this case and without similar cases described in literature, the authors discuss the therapeutic approach to iliac‐cecal fistula.
As fístulas arterio‐entéricas são entidades pouco frequentes e classificam‐se em primárias e secundárias, sendo as últimas mais frequentes, com uma incidência de 0,9%1. As fístulas primárias representam uma comunicação entre uma artéria nativa e o trato gastrointestinal, enquanto as fístulas secundárias representam uma comunicação entre uma artéria reconstruída (quer por doença aneurismática quer por doença oclusiva) e o trato gastrointestinal. A fístula aorto‐entérica secundária é o exemplo mais comum, representando um desafio complicado para o cirurgião vascular. Quando não tratada, o desfecho é quase sempre invariavelmente fatal. No entanto, o tratamento cirúrgico ainda se associa a inúmeras complicações apesar dos avanços na medicina e cuidados intensivos, com uma taxa de morbilidade e mortalidade elevadas2. A fístula aorto‐entérica primária da doença de Crohn é mais frequente do que a fístula ílio‐cecal secundária, uma entidade não descrita até agora na literatura. No entanto, encontram‐se descritos alguns casos de fístulas ílio‐cecais primárias relacionadas com doença aneurismática3. Os autores tiveram a oportunidade de tratar uma fístula ílio‐cecal secundária e a propósito do caso clínico discutem alguns aspetos do seu tratamento.
Caso clínicoUm doente do sexo masculino, de 78 anos de idade, anticoagulado com varfine por fibrilação auricular, recorreu ao serviço de urgência por hematoquézia e prostração, tendo sido constatada na sala de reanimação hipoglicemia grave (BMT 29), revertida com solução de glicose hipertónica. À entrada apresentava‐se com GSC 15, em choque hipovolémico e séptico, dor à palpação dos quadrantes inferiores do abdómen, sem defesa. Analiticamente com Hb 7,9, INR 5,6, PCR 25, creatinina 3,8 e em acidemia e acidose respiratória. Por episódio de hematoquézia enquanto estava a ser realizada a avaliação inicial, procedeu‐se ao toque retal que revelou hematoquézias abundantes e fezes na ampola, tendo-se excluído a presença de massas. Foi submetido a entubação nasogástrica com saída de conteúdo bilioso, sem evidência de hemorragia ativa.
O doente realizou TC abdomino‐pélvica que sugeria hematoma com bolhas aéreas a envolver a artéria ilíaca externa (AIE) direita e distensão de todo o cólon com hiporrealce parietal sugerindo isquemia. As artérias mesentéricas superior e inferior e hipogástricas encontravam‐se permeáveis. Não se visualizou contraste no interior do cólon (fig. 1A e B). Foi decidida inicialmente a estabilização do doente, reversão da coagulopatia e iniciar antibioterapia de largo espectro, pelo que foi internado na unidade de cuidados intensivos, onde foi transfundido com unidades de concentrado eritrocitário, plasma e complexo de protrombina humano.
Foi discutido o caso com o gastroenterologista sobre a eventual vantagem na realização de colonoscopia, que foi considerada apresentar uma relação risco/benefício muito elevada, pelo que não foi realizada.
Como antecedentes relevantes apresentava HTA, DPOC grave (oxigenoterapia de longa duração e ventilação não invasiva noturna), fibrilhação auricular crónica, miocardiopatia dilatada etanólica, obesidade, neoplasia vesical operada por via endoscópica 5 anos antes e internamento no serviço de cirurgia vascular por isquemia crítica do membro inferior direito (MID) 3 meses antes, tendo realizado angiografia via femoral que revelou oclusão segmentar da AIE direita (8mm de diâmetro acima e abaixo da lesão), estenose da artéria femoral superficial no terço médio da coxa e doença tibioperoneal com presença de um vaso único (artéria tibial anterior) até ao pé. Procedeu‐se a angioplastia da artéria peroneal e da AFS com balão e pré‐dilatação da lesão da AIE (com balão de 4x60mm), seguida de colocação de stent autoexpansível (7x40mm), com bom resultado na angiografia de controlo. Manteve‐se com um antiagregante (clopidogrel) por se encontrar anticoagulado.
Por manutenção do quadro de choque hemorrágico e por suspeita de possível rotura de víscera oca foi proposta laparotomia exploradora, tendo sido realizada 12h após a admissão pela equipa de cirurgia geral. Constatou‐se presença de líquido ascítico seropurulento e sangue livre preenchendo a cavidade abdominal, hipoperfusão generalizada do cólon, apresentando múltiplas áreas de necrose parietal (fig. 2) e hematoma retrocecal com envolvimento dos vasos ilíacos direitos. Após libertação do cego, foi identificada presença de hemorragia arterial muito abundante, com origem na AIE (fig. 3), exteriorização do stent e presença de fístula ílio‐cecais. Nessa altura foi contactada a cirurgia vascular que procedeu à laqueação da AIE com prolene 0 e sutura da zona da erosão. Com a hemorragia controlada, optou‐se primeiramente pela realização da colectomia total com encerramento do íleo e transição colorrectal com GIA, deixando os topos abandonados intra‐abdominalmente, revisão da hemostase, tamponamento da loca do hematoma com compressas e laparostomia com sistema de ventrofix. Posteriormente, foi construído o bypass femoro‐femoral esquerdo‐direito com prótese de PTFE anelada de 8mm, para revascularização do MID.
Às 48h procedeu‐se a relaparotomia e encerramento da parede abdominal.
Intercorrência de evisceração e hemorragia digestiva alta no D12 de pós‐operatório, realizando endoscopia digestiva alta que se revelou normal e cintigrafia que revelou ansa sangrante do intestino delgado. O doente foi operado pela terceira vez para encerramento da parede abdominal com posterior necessidade de internamento nos cuidados intensivos por choque séptico e falência multiorgânica, com óbito no D15 de pós‐operatório.
DiscussãoNão existem relatos na literatura de fístulas ílio‐cecal de etiologia secundária, assumindo‐se que se trata de uma complicação extremamente rara. A curiosidade do caso é relativa a tratar‐se de uma complicação precoce, ao fim de 3 meses, de um procedimento de revascularização arterial endovascular por doença oclusiva da AIE. Foram descritos até agora 20 casos de fístulas aorto‐entéricas4 após procedimentos endovasculares de correção de aneurismas da aorta abdominal (EVAR), sendo também no caso apresentado a hemorragia e dor abdominal os sintomas de apresentação. Dado o curto intervalo de tempo desde o stenting ilíaco externo até ao desenvolvimento desta complicação, que normalmente ocorre apenas ao fim de 2‐6 anos, assume‐se que a etiologia desta fístula foi a infeção, introduzida no momento da primeira cirurgia ou através de bacteriemia associada à erosão do stent numa parede arterial fragilizada. A primeira prioridade no tratamento desta entidade é preservar a vida do doente e a segunda é a preservação do membro. Neste doente, dada a conspurcação abdominal, com presença de exsudado seropurulento e grande destruição da parede anterior da AIE, optou‐se pela revascularização extra‐anatómica com bypass femoro‐femoral esquerdo‐direito após laqueação da AIE e da colectomia total. As comorbilidades do doente e a localização da fístula poderiam pender para a revascularização endovascular com um stent coberto4, dado que poderia servir de ponte para uma revascularização convencional assim que o doente estivesse estável e a infeção controlada ou mesmo tendo em conta a curta esperança média de vida do doente, uma vez que essa alternativa tem resultados razoáveis no primeiro ano. No entanto, neste caso específico, a cirurgia vascular interveio após a laparotomia com o abdómen exposto e em hemorragia ativa por destruição arterial extensa, inviabilizando a abordagem endovascular.
ConclusãoO desenvolvimento de uma fístula entre uma grande artéria e o intestino é incomum, sendo normalmente um evento catastrófico, sendo as secundárias, como neste caso, as mais frequentes.
A cirurgia é a única opção de tratamento com potencial sucesso, sendo urgente sempre que coexiste choque hemorrágico.
Várias alternativas terapêuticas foram descritas para as fístulas aorto‐entéricas, nomeadamente a excisão do enxerto sem revascularização associada nos casos de doença oclusiva e extensa colateralidade, revascularização in situ com novo enxerto protésico (criopreservados, revestidos com antibiótico ou prata), reconstrução aorto‐ilíaca com veia (femoro‐popliteia), revascularização extra‐anatómica e reparação endovascular.
Neste doente, o tratamento endovascular seria uma opção a considerar através da exclusão com stent coberto, pelas comorbilidades que apresentava e baixa esperança média de vida. No entanto, a clínica de choque séptico associada a conspurcação abdominal e a destruição arterial extensa com a exteriorização do stent não permitia outra abordagem senão a convencional (laqueação da artéria e revascularização extra‐anatómica).
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.