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Vol. 10. Núm. 4.
Páginas 202-206 (diciembre 2014)
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Isquemia mesentérica «crónica agudizada» – a multidisciplinaridade subjacente ao sucesso terapêutico
“Acute‐on‐chronic” mesenteric ischemia ‐ multidisciplinary underlying the therapeutic success
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Tiago Ferreira
Autor para correspondencia
tiagojpferreira@gmail.com

Autor para correspondência.
, Augusto Ministro, Pedro Martins, Luís Silvestre, Ana Evangelista, Emanuel Silva, José Tiago, José Fernandes e Fernandes
Clínica Universitária de Cirurgia Vascular, Hospital de Santa Maria – CHLN, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Centro Académico de Medicina de Lisboa, Lisboa, Portugal
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Resumo

A isquemia mesentérica aguda é uma entidade de elevada mortalidade e constitui frequentemente o culminar de um processo patológico crónico. A revascularização convencional permanece como abordagem de escolha nestes casos. Os autores apresentam 2 casos de isquemia mesentérica crónica agudizada operados na instituição. O primeiro caso refere‐se a um homem de 76 anos submetido a revascularização cirúrgica das artérias hepática comum e mesentérica superior por quadro arrastado de dor abdominal e perda ponderal. O segundo caso refere‐se a uma mulher de 83 anos com quadro de vómitos e diarreia de evolução rápida para abdómen agudo, submetida a bypass aorto‐mesentérico superior com veia grande safena e ressecção ileocecal. Os 2 casos tiveram desfecho favorável graças a um diagnóstico célere, a uma revascularização convencional pronta e à ressecção intestinal concomitante.

Palavras‐chave:
Abdómen
Agudo
Dor abdominal
Diarreia
Isquémia
Artéria mesentérica superior
Veia safena
Vómitos
Perda ponderal
Doença vascular mesentérica
Abstract

Acute mesenteric ischemia is a disease with high mortality and is frequently the end result of a chronic process. Surgical revascularization is still the preferred therapy in these cases. We present two cases of “acute‐on‐chronic” mesenteric ischemia operated in our institution. The first was a 76 year‐old male with a protracted history of abdominal pain and weight loss treated with revascularization of the common hepatic and superior mesenteric arteries. The second was a 83 year‐old female with a history of vomiting and diarrhea that quickly evolved into an acute abdomen and was submitted to aorto‐mesenteric bypass with great saphenous vein and ileo‐cecal resection. The two cases had a favorable outcome due to a timely diagnosis, to a prompt surgical revascularization and to a bowel resection.

Keywords:
Abdomen
Acute
Abdominal Pain
Diarrhea
Ischemia
Superior Mesenteric Artery
Saphenous Vein
Vomiting
Weight Loss
Mesenteric vascular disease
Texto completo
Introdução

A isquemia mesentérica aguda é uma patologia cuja baixa frequência (cerca de 0,1% das admissões hospitalares)1 está em contraponto com uma elevada taxa de mortalidade (30‐65%)2. Os casos devidos a trombose arterial aguda ocorrem geralmente em sobreposição com lesões ateroscleróticas graves da placa visceral, correspondendo muitas vezes a quadros de agudização de um processo patológico crónico. De facto, as formas «crónicas agudizadas» de isquemia mesentérica não são incomuns e muitos doentes com um quadro agudo têm história prévia de sintomas sugestivos de isquemia crónica3. As técnicas endovasculares têm vindo a ganhar terreno na revascularização do território visceral, sobretudo nos casos de isquemia crónica. No entanto, nas apresentações agudas e com atingimento comprovado ou suspeito da viabilidade intestinal, a revascularização cirúrgica convencional continua a ser a abordagem preferencial. Os autores apresentam 2 casos de isquemia mesentérica «crónica agudizada» tratados por via convencional com resultados positivos.

Caso clínico 1

Homem de 76 anos, hipertenso e com antecedentes de bypass aorto‐bifemoral em 2007, com múltiplos internamentos em gastrenterologia por quadro insidioso de desconforto abdominal, sobretudo nos quadrantes superiores, acompanhado de vómitos biliosos sem relação com a ingestão alimentar e dejeções diarreicas incaracterísticas ocasionais. Paralelamente apresentava história de perda ponderal de 10kg no espaço de 3 meses. Realizou endoscopia digestiva alta que mostrou edema marcado da mucosa gástrica com múltiplas úlceras serpiginosas profundas e de grandes dimensões (fig. 1). O exame histológico foi compatível com gastropatia isquémica. Realizou angiografia por tomografia computorizada (angio‐TC) que mostrou doença aterosclerótica ostial da placa visceral, com estenose marcada do tronco celíaco e seus ramos, bem como trombo oclusivo na artéria mesentérica superior a cerca de 16mm da origem (figs. 2–4). A avaliação funcional cardíaca e respiratória não revelou alterações de relevo. Submetido a revascularização cirúrgica através de bypass protésico‐artéria hepática comum e bypass protésico‐mesentérica superior com PTFE de 8mm. Intraoperatoriamente constatou‐se necrose do íleo terminal e cego com abcesso para‐cecal, pelo que se procedeu a ressecção ileocólica direita com ileostomia terminal (a cerca de 180cm do ângulo de Treitz) e fístula mucosa. Ao 8.° dia de pós‐operatório desenvolveu quadro de hemoperitoneu com ponto de partida em laceração esplénica, tendo sido efetuada esplenectomia de necessidade e confirmada a viabilidade do intestino remanescente. Pós‐operatório complicado ainda de síndroma de mal absorção com necessidade de alimentação parentérica. Alta clinicamente bem ao 18.° dia de pós‐operatório. A angio‐TC realizada aos 3 meses mostra ambos os enxertos permeáveis (fig. 5).

Figura 1.

Gastropatia isquémica – aspeto endoscópico.

(0.09MB).
Figura 2.

Estenose ostial do tronco celíaco.

(0.06MB).
Figura 3.

Estenose da artéria mesentérica superior com trombo intraluminal.

(0.06MB).
Figura 4.

Doença calcificante da placa visceral, com trombose da artéria mesentérica superior.

(0.08MB).
Figura 5.

Angio‐TC de controlo aos 3 meses.

(0.11MB).
Caso clínico 2

Doente do sexo feminino de 83 anos, com antecedentes de insuficiência cardíaca, fibrilhação auricular e doença cerebrovascular, transferida de hospital distrital por quadro de dor abdominal difusa e prostração com 24 horas de evolução. Teve episódio de vómitos, diarreia e prostração 15 dias antes do internamento, resolvidas com terapêutica sintomática. Ao exame objetivo o abdómen era difusamente doloroso à palpação, com defesa e dor à descompressão. Analiticamente apresentava neutrofilia sem leucocitose e elevação da PCR e LDH, sem acidose metabólica ou hiperlactacidemia. A angio‐TC mostrou trombose do segmento proximal da artéria mesentérica superior com reabitação a cerca de 5cm da origem (figs. 6 e 7), bem como distensão e espessamento de ansas de delgado e do cego, sem pneumatose intestinal ou aeroportia. Submetida a bypass aorto‐mesentérico retrógrado com veia grande safena e ressecção ileocecal com anastomose mecânica latero‐lateral isoperistáltica. Pós‐operatório sem intercorrências, com restabelecimento do trânsito intestinal ao 3.° dia. Transferida para o hospital de origem clinicamente bem ao 8.° dia de pós‐operatório. A angio‐TC realizada aos 6 meses demonstrou a permeabilidade do enxerto (fig. 8).

Figura 6.

Trombose da artéria mesentérica superior.

(0.08MB).
Figura 7.

Trombo oclusivo no segmento proximal da artéria mesentérica superior.

(0.04MB).
Figura 8.

Angio‐TC de controlo aos 6 meses.

(0.06MB).
Discussão

Historicamente, a isquemia mesentérica aguda tem‐se mantido como uma patologia de elevada morbi‐mortalidade devido em parte à dificuldade de diagnóstico e aos desafios terapêuticos que coloca. Mesmo as séries mais recentes apresentam taxas de mortalidade na ordem dos 30%2,4, a que não será alheio o facto de esta patologia atingir preferencialmente as faixas etárias mais idosas e doentes com múltiplos fatores de risco cardiovascular. Com efeito, a idade superior a 70 anos, a insuficiência renal e a duração prolongada dos sintomas demonstraram uma correlação direta com a taxa de mortalidade2,5. Estes fatores assumem particular relevância nos casos de isquemia mesentérica aguda por trombose arterial, que podem ser entendidos como agudizações de um processo patológico crónico. Dependendo das séries, 20‐40% dos doentes com isquemia mesentérica aguda têm história prévia de dor abdominal pós‐prandial e perda ponderal3,5. Apesar de o estado nutricional frequentemente deficitário, expresso através da perda ponderal e hipoalbuminemia, não ter sido associado a uma maior morbi‐mortalidade operatória, a idade avançada, a evidência de aterosclerose generalizada e a duração dos sintomas são recorrentemente citados na literatura como determinantes com impacto negativo no prognóstico. Os casos apresentados referem‐se precisamente a doentes com mais de 70 anos de idade e vários fatores de risco cardiovascular cuja apresentação clínica foi insidiosa e evoluiu para um compromisso instalado da viabilidade intestinal.

As técnicas endovasculares surgiram como alternativa menos invasiva para a revascularização do território visceral e sua aplicação tem ganho importância na isquemia mesentérica crónica. Nos casos agudos a experiência acumulada é ainda escassa, sendo a necessidade de avaliação da viabilidade intestinal o principal entrave à utilização de uma abordagem minimamente invasiva. Nas séries publicadas, entre 30‐50% dos casos foram submetidos a ressecção intestinal2,3,5, o que mostra quão frequentemente existe isquemia irreversível de alguns segmentos de intestino na avaliação inicial. Numa revisão da experiência institucional em 5 anos6, todos os casos de isquemia mesentérica aguda foram revascularizados por via convencional, com ressecção intestinal em 50% dos doentes e uma mortalidade de 50% aos 30 dias. Arthurs et al.4 compararam o tratamento endovascular e a cirurgia convencional numa série de doentes com isquemia mesentérica aguda. A maioria dos casos teve etiologia trombótica e foram preferencialmente tratados por via endovascular. A laparotomia foi evitada em 31% dos doentes e o sucesso técnico foi de 87%, conduzindo a uma diminuição da extensão de intestino ressecado e da mortalidade em comparação com a cirurgia convencional (de 50 para 36%). Estes resultados podem impulsionar uma mudança de paradigma na abordagem da isquemia mesentérica aguda.

Do ponto de vista cirúrgico, algumas particularidades merecem referência. A vascularização do intestino é assegurada por uma extensa rede de colaterais que conectam o tronco celíaco e as artérias mesentérica superior, mesentérica inferior e hipogástricas. A existência destas interligações leva a que seja habitualmente necessária a presença de lesões hemodinamicamente significativas em 2 ou mais eixos vasculares para o desenvolvimento de isquemia mesentérica sintomática (a artéria mesentérica superior e o tronco celíaco estão simultaneamente afetados em mais de 80% dos casos de isquemia mesentérica crónica7). Estes pressupostos influenciam a decisão sobre quantos e quais os eixos arteriais a revascularizar. Os primeiros trabalhos indicavam que a revascularização visceral completa garantia menor recorrência sintomática, melhor permeabilidade e maior sobrevida, argumentando também que ofereceria maior proteção face à eventual oclusão de um dos enxertos. Variados autores apresentaram resultados comparáveis procedendo apenas a revascularização da mesentérica superior7,8. Nos casos descritos, os principais fatores de decisão foram a topografia das lesões oclusivas, a sua repercussão clínica sobre os órgãos‐alvo e o estado geral do doente.

A escolha do conduto a utilizar é uma decisão que deve levar em conta múltiplas variáveis, nomeadamente a durabilidade do enxerto, o grau de contaminação peritoneal e a estabilidade clínica do doente. O enxerto protésico é favorecido pelo melhor size‐match e a maior resistência ao kinking, com consequente vantagem em termos de permeabilidade, tendo como limitação o maior risco de infeção. Deste modo, na presença de contaminação abdominal evidente o enxerto venoso é a opção de escolha. Em contexto de isquemia aguda, na impossibilidade de prever com exatidão a evolução do intestino remanescente e considerando a idade da doente, privilegiou‐se a resistência à infeção em detrimento da permeabilidade a longo prazo no segundo caso em apreço.

Um aspeto passível de discussão é a não reexploração abdominal («second look») em nenhum dos casos apresentados. A reavaliação da viabilidade intestinal e a ressecção adicional foram consideradas determinantes para a redução da mortalidade9. Porém, e embora reconhecendo a importância do «second look», em nenhuma das séries publicadas foi adotada uma estratégia de reexploração cirúrgica sistemática, sendo a decisão de reoperar determinada pelos achados intraoperatórios na primeira cirurgia e pela evolução clínica do doente. Esta foi a conduta adotada em ambos os casos descritos, nos quais a ressecção intestinal foi considerada adequada e o pós‐operatório livre de sinais de isquemia residual. Foi necessário proceder a nova laparotomia no primeiro doente, mas com o objetivo de solucionar uma complicação hemorrágica, sendo a reavaliação da viabilidade intestinal uma questão de oportunidade.

Conclusão

A isquemia mesentérica aguda continua a ser uma patologia com elevada mortalidade e que afeta doentes com múltiplas comorbilidades. Apesar de as técnicas endovasculares se mostrarem promissoras, a revascularização cirúrgica convencional continua a ser uma opção válida no tratamento desta entidade, mesmo em doentes de alto risco com isquemia avançada e pior condição fisiológica.

Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animais

Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.

Confidencialidade dos dados

Os autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.

Direito à privacidade e consentimento escrito

Os autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

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Comunicação tipo poster no XIV Congresso da Sociedade Portuguesa de Angiologia e Cirurgia Vascular, 19‐21 de Junho de 2014.

Copyright © 2014. Sociedade Portuguesa de Angiologia e Cirurgia Vascular
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