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Inicio Angiologia e Cirurgia Vascular Degenerescência aneurismática na doença de Von Recklinghausen
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Vol. 10. Núm. 4.
Páginas 196-201 (diciembre 2014)
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Páginas 196-201 (diciembre 2014)
Caso clínico
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Degenerescência aneurismática na doença de Von Recklinghausen
Von Recklinghausen's disease and multi‐aneurysmal degeneration
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Pedro Martinsa,
Autor para correspondencia
pmalvesmartins@hotmail.com

Autor para correspondência.
, Viviana Manuela, Tiago Ferreiraa, José Tiagoa, Augusto Ministroa, Carlos Martinsa, José Silva Nunesa, José Fernandes e Fernandesa,b
a Clínica Universitária de Cirurgia Vascular, Hospital Santa Maria – Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), Lisboa, Portugal
b Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal
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Resumo

A doença de Von Recklinghausen é uma facomatose de transmissão autossómica dominante. Apesar da heterogeneidade da expressão clínica, os estigmas cutâneos clássicos como manchas café au lait são frequentes. A arteriopatia é incomum, sendo a degenerescência aneurismática extremamente rara.

Os autores apresentam o caso clínico de um homem de 63 anos com doença de Von Recklinghausen e degenerescência multianeurismática aorto‐ilíaca, femoral e poplítea, submetido com sucesso a tratamento cirúrgico convencional.

A degenerescência aneurismática na doença de Von Recklinghausen encontra‐se associada a displasia muscular lisa e a invasão neurofibromatosa da parede vascular. Esta fragilidade arterial implica dissecção laboriosa e técnica cirúrgica meticulosa para limitar a hemorragia e a deiscência anastomótica.

Palavras‐chave:
Von Recklinghausen
Aneurisma
Aorta
Abstract

The Von Recklinghausen's disease is a facomatosis with autosomal dominant transmission. Despite the heterogeneity of clinical expression, the classic cutaneous stigmata such as café au lait spots are common. The arteriopathy is unusual, with rare aneurysmal degeneration.

The authors disclose the clinical case of a 63 years old man with Von Recklinghausen's disease and multi‐aneurysmal degeneration of the aorto‐iliac, femoral and popliteal sectors, who successfully underwent open surgery.

The aneurysmal degeneration in Von Recklinghausen's disease is associated with smooth muscle dysplasia and neurofibromatosis invasion of the vascular wall. This arterial fragility implies laborious and meticulous surgical dissection to limit the bleeding and anastomotic dehiscence.

Keywords:
Von Recklinghausen
Aneurysm
Aorta
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Introdução

A doença de Von Recklinghausen ou neurofibromatose tipo I é uma facomatose de transmissão autossómica dominante com expressão variável e incidência de um em cada 3.000 indivíduos1. Associa‐se à mutação do gene onco‐supressor da neurofibromina 1 (NF1) no cromossoma 17 (17q11.2)2.

Apresenta expressão clínica heterogénea nos tecidos de origem mesodérmica e da crista neural, sendo os estigmas cutâneos clássicos como manchas café au lait e neurofibromas frequentes1.

A arteriopatia é incomum, tendo sido descritas lesões estenosantes e aneurismáticas nos diversos territórios3. O termo «Vasculopatia NF1» tem sido empregue para descrever as múltiplas anomalias vasculares, arteriais e/ou venosas, que podem ser observadas na doença de Von Recklinghausen4.

Os autores divulgam o caso clínico pela sua raridade, após revisão do processo e pesquisa das palavras‐chave Von Recklinghausen, neurofibromatosis e aneurysms na base de dados PubMed.

Caso clínico

Homem de 63 anos de idade, fumador, hipertenso e com diagnóstico clínico prévio de doença de Von Recklinghausen, foi observado em consulta vascular por claudicação gemelar esquerda para 500 metros de marcha, não incapacitante e de instalação progressiva desde há um ano.

Objetivamente apresentava massas pulsáteis, expansíveis e indolores à palpação nos trajetos aórtico infrarrenal (5cm de diâmetro), femoral bilateral e poplíteo direito. O exame vascular mostrou ausência de pulso poplíteo e distais no membro inferior esquerdo e apenas pulso tibial posterior no pé direito.

O estudo por ecoDoppler evidenciou doença multianeurismática dos sectores aorto‐ilíaco, femoral (tipo I de 3cm de diâmetro) e poplíteo bilateralmente. O aneurisma poplíteo esquerdo (2cm de diâmetro) encontrava‐se ocluído e o direito permeável, com trombo mural (2,9cm de diâmetro) e doença tíbio‐peroneal associada.

O estudo complementar pré‐operatório por angioTC revelou aneurisma da aorta infrarrenal (5,7cm de diâmetro) com envolvimento ilíaco primitivo bilateral, de invulgar anatomia, destacando‐se a presença de múltiplas artérias renais acessórias (fig. 1).

Figura 1.

Estudo por angioTC pré‐operatória mostrando doença multianeurismática aorto‐ilíaca, femoral e poplítea bilateral.

(0.28MB).

A avaliação por ecocardiograma e provas de função respiratória mostraram boa função sistólica global, sem áreas de hipocinesia ou valvulopatia relevante e obstrução brônquica‐bronquiolar ligeira.

O estudo global e específico permitiu determinar um risco operatório baixo a médio, pelo que o doente foi proposto para tratamento cirúrgico convencional da doença aneurismática proximal e posteriormente distal.

Por laparotomia mediana procedeu‐se a ressecção parcial de aneurisma aorto‐ilíaco e femoral esquerdo por interposição de prótese bifurcada (Dacron® 18mm) em posição aorto‐ilíaca primitiva distal direita‐femoral comum distal esquerda. O eixo ilíaco esquerdo foi excluído (anastomose femoral esquerda termino‐terminal) e manteve‐se a permeabilidade da artéria hipogástrica direita. Foram reimplantadas no corpo da prótese 2 artérias renais acessórias e a artéria mesentérica inferior (fig. 2). O aneurisma femoral direito foi ressecado e uma prótese foi interposta (Dacron® 9mm) em posição femoral comum (ausência de envolvimento aneurismático da artéria femoral profunda).

Figura 2.

Aspetos intraoperatórios do procedimento de reconstrução proximal realizado, evidenciando a particularidade anatómica de múltiplas artérias renais acessórias.

(0.59MB).

O pós‐operatório complicou‐se subitamente às 48 horas por choque hipovolémico em contexto de deiscência da anastomose de uma das artérias renais acessórias reimplantadas (fig. 3). O doente foi reoperado e a hemóstase assegurada por suturas reforçadas com «pledgets».

Figura 3.

Estudo por angioTC que mostra deiscência da anastomose de uma das artérias renais acessórias reimplantadas.

(0.13MB).

O estudo histopatológico da parede aneurismática mostrou alterações degenerativas compatíveis com aterosclerose avançada, não se verificando os aspetos típicos de neurofibromatose.

Cerca de 6 meses após a reconstrução proximal foi submetido a tratamento do aneurisma poplíteo direito através da laqueação/exclusão e bypass femoral superficial‐poplítea infragenicular com veia safena interna ipsilateral invertida.

Aos 9 meses de «follow‐up» o doente mantém‐se assintomático, encontrando‐se os procedimentos de revascularização permeáveis e em boa condição (fig. 4). Será objeto de estudo por angioTC toraco‐abdominal aos 12 meses e posteriormente de 5 em 5 anos, além de exame clínico e ecoDoppler arterial dos membros inferiores anual.

Figura 4.

Estudo por angioTC que mostra a revascularização proximal, permeável e sem complicações associadas.

(0.14MB).
Discussão

A doença de Von Recklinghausen ou neurofibromatose tipo I foi inicialmente descrita em 18825. Apresenta transmissão autossómica dominante com expressão variável e incidência de um em cada 3.000 indivíduos1. Associa‐se à mutação do gene onco‐supressor da NF1 no braço longo do cromossoma 17 (17q11.2)2. A perda da síntese da NF1 conduz ao aumento da sinalização mitogénica e subsequente proliferação celular4.

A doença insere‐se no espectro das facomatoses, doenças responsáveis por alterações neurocutâneas, com envolvimento preferencial da pele, olhos e encéfalo, sendo características as manchas café au lait, os neurofibromas benignos e os hamartomas da íris6. O prognóstico da doença é determinado pela presença de tumores cerebrais, nomeadamente astrocitoma e schwannoma maligno, sendo a causa de morte em 72% dos indivíduos1.

O envolvimento vascular foi divulgado por Reubi em 1945, com a descrição de diferentes tipos de lesão vascular, dependentes do diâmetro do vaso afectado7.

O termo «Vasculopatia NF1» tem sido empregue para descrever as múltiplas anomalias vasculares arteriais, venosas ou arteriovenosas, que podem estar presentes na doença2,4. A prevalência da vasculopatia em algumas séries clínicas foi de 0,4‐6,4%, no entanto, pode estar subestimada, pois a maioria das lesões são assintomáticas e de difícil diagnóstico clínico2,4.

Greene descreveu a displasia do músculo liso (mesodérmica) e a invasão neurofibromatosa como os principais mecanismos de lesão vascular na fibromatose8. As lesões podem ser estenosantes ou aneurismáticas, nos mais diversos territórios.

Oderich concluiu que o tipo, localização e histopatologia diferia com a idade dos doentes. Na sua série, a lesão vascular predominante foi renal (44%). As lesões estenosantes na «Vasculopatia NF1» não parecem envolver a origem das artérias, nomeadamente renais e mesentérica, particularidade distinta da aterosclerose. Os aneurismas da aorta ascendente e toraco‐abdominal foram mais frequentes que os da aorta infrarrenal. Nos doentes com menos de 50 anos predominaram as estenoses ou aneurismas das artérias aorta, renais, mesentérica e carótidas com tendência para a presença de displasia mesodérmica no estudo patológico, enquanto os mais velhos apresentaram sobretudo aneurismas aórticos com aspetos característicos de aterosclerose9.

O doente cujo caso clínico descrevemos apresentava os estigmas de doença cutânea característicos da doença de Von Recklinghausen, nomeadamente neurofibromas e manchas café au lait. O estudo histopatológico foi compatível com processo degenerativo aterosclerótico, não mostrando os aspetos clássicos de neurofibromatose, facto previamente constatado por Oderich no grupo de doentes mais idosos.

A arteriopata predominante foi a aneurismática, envolvendo os sectores aorto‐ilíaco, femoral e poplíteo bilateralmente verificando‐se arteriomegalia nos segmentos não‐aneurismáticos. O padrão descrito é o de doença multianeurismática tipo III da classificação de Hollier10.

A doença arterial exprimiu‐se através de claudicação gemelar do membro inferior esquerdo por trombose de aneurisma poplíteo e foi a investigação complementar que permitiu o diagnóstico da doença aneurismática aórtica assintomática, com impacto relevante no prognóstico do doente.

A sobrevida dos doentes com neurofibromatose tipo I é inferior ao da população em geral, sendo a doença vascular a segunda causa de morte após as neoplasias malignas11. Alguns autores sugeriram o rastreio imagiológico da doença vascular oculta, pelo seu potencial impacto negativo na sobrevida, estando descritos casos de rutura de aneurismas aórticos e viscerais previamente desconhecidos12,13.

Oderich defende que as indicações para o tratamento dos aneurismas não devem ser distintas daquelas adotadas para a população em geral, nomeadamente diâmetro máximo de 5,5 e 6cm, respetivamente, para aneurismas da aorta abdominal e toraco‐abdominal9. No entanto, a conhecida fragilidade da parede arterial poderia, eventualmente, justificar a indicação para intervenção mais precoce, à semelhança do que se verifica na síndrome de Marfan.

A raridade da «Vasculopatia NF1» e suas particularidades podem tornar difícil a definição das estratégias cirúrgicas a adotar.

A difícil dissecção cirúrgica associada a hemorragia profusa dos tecidos perivasculares bem como a fragilidade da parede arterial que complica a realização das anastomoses têm sido descritas14,15. Estes aspetos aumentam a complexidade da intervenção cirúrgica e a sua morbimortalidade associada.

A intervenção endovascular torna‐se atrativa, sobretudo em contexto de rutura de aneurismas aórticos e viscerais, tendo sido descritos casos de implantação de «stents» cobertos e endopróteses aórticas13,16.

O «stress» parietal exercido pelos «stents» e os mecanismos físicos de fixação e «sealing» das endopróteses aórticas em artérias de frágil parede podem conceptualmente associar‐se a complicações relevantes. Falcone e Park descreveram pseudoaneurismas aórticos provocados por lesões parietais associadas às extremidades das endopróteses implantadas para tratamento de aneurismas aórticos na doença de Von Recklinghausen16,17.

Optámos por intervenção cirúrgica convencional no caso que apresentamos pela idade relativamente jovem, ausência de comorbilidades relevantes e presença de particularidades anatómicas que dificultariam o tratamento endovascular (múltiplas artérias renais acessórias e aneurismas femorais bilaterais).

Constatámos intraoperatoriamente hemorragia difusa perivascular associada à dissecção e fragilidade da parede arterial. Além das recomendações de Oderich et al.9 para adoção de técnica de dissecção não traumática e «clamps» vasculares «protegidos», sugerimos o reforço hemostático das anastomoses («pledgets/strips» de Teflon® ou cola biológica).

Conclusão

A «Vasculopatia NF1» é uma entidade clínica rara, constituindo um desafio diagnóstico e terapêutico.

A doença vascular, frequentemente assintomática, é uma causa de morte relevante na doença de Von Recklinghausen, pelo que se deve ponderar a implementação de um programa de rastreio vascular neste grupo de doentes.

O envolvimento vascular foi descrito nos mais distintos territórios, estando múltiplas opções terapêuticas disponíveis. A reconhecida fragilidade da parede arterial associada à hemorragia perivascular profusa durante a dissecção aumentam a complexidade da intervenção cirúrgica convencional, tornando‐se a abordagem endovascular atrativa.

O caso clínico descrito apresenta a cirurgia convencional como uma opção segura e eficaz em contexto de degenerescência multianeurismática na doença de Von Recklinghausen, num doente sem risco operatório elevado, com bom resultado a curto e médio prazo.

Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animais

Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.

Confidencialidade dos dados

Os autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.

Direito à privacidade e consentimento escrito

Os autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

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