A revascularização dos membros inferiores a partir da aorta torácica, apesar de exequível, representa uma opção incomum. Os autores descrevem o caso clínico de um doente com estenose aórtica severa, coartação da aorta ao nível do istmo, disseção crónica da aorta tipo B e oclusão da artéria ilíaca externa esquerda. Foi submetido, no mesmo tempo operatório, à substituição da válvula aórtica e construção de uma pontagem da aorta torácica ascendente para ambas as artérias femorais comuns. O doente evoluiu favoravelmente tendo alta hospitalar ao 13.° dia pós‐operatório, encontrando‐se agora em seguimento. Trata‐se de um procedimento raro, complexo e realizável graças à colaboração multidisciplinar entre cirurgiões vasculares e cirurgiões cardiotorácicos.
The revascularization of the lower limbs from the thoracic aorta, although feasible, is an unusual choice. The authors describe the clinical case of a patient with chronic aortic type B dissection, severe aortic stenosis, coarctation of the aorta at the isthmus, and occlusion of the left external iliac artery. He underwent simultaneous aortic valve replacement and construction of a bypass from the ascending thoracic aorta to both femoral common arteries. The patient was discharged at the 13th postoperative day, and is now being followed. This is a rare and complex procedure possible due to multidisciplinary collaboration between vascular surgeons and cardiothoracic surgeons.
A realização de pontagens toraco‐femorais, que permitem a revascularização dos membros inferiores a partir da aorta torácica, apesar de tecnicamente exequíveis, representam uma opção técnica incomum.
Estes procedimentos podem ser realizados em doentes já submetidos a revascularização a partir da aorta infrarrenal ou se existirem motivos que dificultem ou impeçam a abordagem da aorta infrarrenal por via trans ou retroperitoneal.
O uso da aorta torácica ascendente (ATA) como fonte de inflow para os membros inferiores está, na prática clínica, frequentemente reservado aos doentes que, além de doença obstrutiva periférica do setor aorto‐ilíaco, apresentam patologia valvular ou coronária que exija cirurgia simultânea. Os autores descrevem um caso clínico em que foi construída uma pontagem da ATA para ambas as artérias femorais comuns.
Caso clínicoTratava‐se de um doente do sexo masculino, de 58 anos de idade, que se encontrava internado no serviço de cirurgia cardiotorácica por insuficiência cardíaca congestiva descompensada (classe III‐IV da classificação funcional da New York Heart Association). A sintomatologia derivava da existência de estenose grave de válvula aórtica bicúspide (velocidade máxima de fluxo pela válvula aórtica [V max] de 4,34m/s e gradiente médio transvalvular aórtico de 52mmHg). Consequentemente, apresentava disfunção biventricular (ventrículo esquerdo dilatado com hipocinesia difusa grave e fração de ejeção de 12%; dilatação e hipertrofia do ventrículo direito com função sistólica comprometida); hipertensão pulmonar (HTP) grave (pressão sistólica na artéria pulmonar de 72mmHg), dilatação biauricular e fibrilação auricular (FA) permanente.
Simultaneamente, apresentava pequenas zonas de necrose nas extremidades distais de D3, D4 e D5 do pé esquerdo, correspondendo a isquemia grau IV segundo a classificação de Leriche‐Fontaine. Não apresentava qualquer sintomatologia adicional. Ao exame físico era evidente a ausência de pulsos femorais, poplíteos ou distais palpáveis, bilateralmente.
Considerou‐se que o quadro de isquemia teria uma origem multifatorial devido à existência das seguintes patologias:
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coartação grave da aorta ao nível do istmo (com lúmen permeável <2mm) com dilatação pós‐estenótica (50mm de diâmetro máximo), nunca submetido a qualquer tipo de tratamento cirúrgico prévio (fig. 1);
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disseção crónica da aorta tipo B, com início a jusante da coartação e extensão até à ilíaca primitiva esquerda. Os lúmenes são vascularizados por circulação colateral derivada de ramos dos troncos supra‐aórticos. Os ramos viscerais originam‐se do lúmen verdadeiro excetuando a artéria renal esquerda que tem origem do falso lúmen. O doente nunca foi submetido a qualquer tipo de tratamento cirúrgico prévio desta patologia (fig. 2);
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oclusão da artéria ilíaca externa esquerda (fig. 3).
O doente não apresentava doença arterial periférica obstrutiva ou aneurismática ao nível do sector infrainguinal.
Para além das patologias já descritas, o doente apresentava também insuficiência renal crónica (IRC) estádio 3 (taxa de filtração glomerular pré‐operatória calculada de 58,17ml/min) e doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) grave.
Assim, a coexistência das várias morbilidades descritas é responsável por um muito elevado risco cirúrgico.
O doente foi submetido a tratamento cirúrgico com o objetivo de realizar, no mesmo tempo operatório, a revascularização dos membros inferiores e a substituição da válvula aórtica.
O procedimento foi iniciado pela realização de uma esternotomia mediana e posterior abertura vertical do pericárdio para exposição da aorta ascendente. Em seguida, foi efetuado o isolamento das artérias femorais comuns, artérias femorais superficiais e artérias femorais profundas.
A ATA foi clampada tangencialmente na sua face antero‐externa e foi feita uma arteriotomia vertical com cerca de 2‐3cm. Foi usada uma prótese de Dacron 10mm bifurcada e realizada inicialmente a anastomose proximal. A tunelização da prótese foi efetuada de modo a que esta passasse num plano entre a aponevrose posterior e a face posterior dos músculos abdominais. As anastomoses femorais foram realizadas em seguida (figs. 4 e 5).
Posteriormente, o doente foi colocado em circulação extracorporal (com canulação da ATA e do conduto protésico) e realizada a substituição valvular aórtica (colocação de válvula biológica Carpentier Edwards Perimount 25mm). O tempo total de cirurgia foi de 340 minutos e o tempo de circulação extracorporal de 98 minutos.
Após a cirurgia o doente evoluiu favoravelmente, sem intercorrências, tendo alta hospitalar ao 13.° dia pós‐operatório, encontrando‐se atualmente em seguimento. Apresenta aumento da capacidade funcional e cicatrização das lesões existentes no membro inferior. O ecocardiograma realizado um mês após a cirurgia revelava uma melhoria substancial da fração de ejeção em relação ao período pré‐operatório – de 12 para 32%.
DiscussãoA revascularização dos membros inferiores a partir da aorta ascendente oferece as seguintes vantagens: 1) uma vez realizada a esternotomia e o isolamento da aorta ascendente é um procedimento simples e relativamente fácil de executar; 2) não exige uma abordagem intraperitoneal; 3) ao contrário da pontagem axilo‐bifemoral, a prótese é posicionada por trás dos músculos abdominais e, portanto, não é visível, palpável ou compressível; 4) é possível um tempo de internamento relativamente baixo e uma recuperação pós‐operatória rápida.
Na série publicada por Baird et al.1, a qual compreende 28 doentes submetidos a pontagem aorta‐ascendente‐bifemoral, a taxa de permeabilidade a longo prazo (aos 5 anos) foi de 70%. Este valor é bastante aceitável e substancialmente superior à de uma pontagem axilo‐bifemoral2,3.
Contudo, apesar das vantagens teóricas, é um procedimento raramente realizado devido à invasibilidade inerente a uma esternotomia4. Assim, este procedimento é, por norma, realizado apenas em alguns doentes com isquemia crítica dos MI que simultaneamente apresentam necessidade de revascularização coronária ou de correção valvular.
ConclusãoO presente trabalho pretende expor a associação peculiar entre estenose aórtica, coartação da aorta, disseção tipo B e doença arterial periférica. Esta situação clínica exigiu a realização de um procedimento raro, complexo e que é um excelente exemplo dos benefícios da colaboração multidisciplinar entre cirurgiões vasculares e cirurgiões cardiotorácicos.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.