O aneurisma da artéria hipogástrica é uma entidade clínica rara, constituindo um desafio diagnóstico e terapêutico associado a mortalidade relevante, sobretudo em contexto de rutura.
Os autores divulgam o caso clínico de um homem de 75 anos de idade, com antecedentes de ressecção parcial de aneurisma aorto‐ilíaco infrarrenal através de interposição de prótese aorto‐bifemoral, a quem foi diagnosticado no «follow up» de 9 anos, aneurisma da artéria hipogástrica esquerda (4,5cm). Este foi submetido a tratamento endovascular através de embolização hipogástrica complementada por implantação de endoprótese ilíaca, o que se revelou uma alternativa segura e eficaz, a curto e médio prazo.
The internal iliac artery aneurysm is a rare clinical entity, which constitutes a diagnostic and therapeutic challenge, manifested by a high percentage of mortality cases when rupture occurs.
The authors present a 75 year‐old male previously submitted to infra‐renal aorto‐iliac aneurysm partial resection and interposition of a bifurcated aorto‐bifemoral graft. At 9 years follow‐up a 4,5cm asymptomatic hypogastric aneurysm was diagnosed. Hypogastric embolization complemented with the implantation of an iliac stent‐graft was the treatment of choice, proving to be a safe and effective treatment modality
O aneurisma da artéria hipogástrica é uma entidade clínica rara, frequentemente diagnosticado em associação aos aneurismas da aorta abdominal ou da artéria ilíaca primitiva, sendo extremamente invulgar a apresentação isolada1.
A sua localização pélvica dificulta o diagnóstico precoce, sobretudo quando de pequenas dimensões e assintomáticos, além de tornar o tratamento cirúrgico convencional exigente, principalmente em contexto de rutura, onde apresenta mortalidade relevante.
O advento da era endovascular permitiu oferecer opções de tratamento com menor morbilidade e mortalidade, particularmente úteis em doentes de alto risco cirúrgico. Existe, no entanto, o potencial risco de isquemia pélvica associado às técnicas que não permitem preservar a perfusão hipogástrica. O uso combinado de procedimentos endovasculares e a adoção de técnicas «off‐label» podem ampliar a capacidade de tratamento com sucesso de casos complexos e singulares, como é demonstrado no caso clínico que os autores divulgam.
Caso clínicoHomem de 75 anos de idade, fumador, hipertenso com cardiopatia isquémica e disritmia com antecedentes de ressecção parcial de aneurisma aorto‐ilíaco infrarrenal e interposição de prótese bifurcada aorto‐bifemoral com bypass protésico‐hipogástrico esquerdo (2002).
Assintomático aos 3 anos de follow up, realizou estudo complementar de vigilância que mostrou estenose significativa da anastomose aórtica e falso aneurisma anastomótico femoral esquerdo pelo que foi reoperado. A reintervenção consistiu em ressecção da anastomose aórtica e interposição protésica (dacron 18mm) associado a ressecção de falso aneurisma femoral esquerdo com interposição protésica (politetrafluoretileno 8mm) e extensão à artéria femoral profunda.
Decorridos 9 anos da intervenção inicial, a avaliação de seguimento por angio tomografia computorizada (AngioTC) mostrou aneurisma da artéria hipogástrica esquerda com 4,5cm de diâmetro assintomático (fig. 1A, 1B e 1C); a artéria hipogástrica direita apresentava preenchimento retrógrado, sem ectasia associada.
Ao exame objetivo, apresentava massa palpável indolor na fossa ilíaca esquerda, pulsátil e expansível (3cm de diâmetro). O eco‐Doppler mostrou oclusão da artéria femoral superficial esquerda, aneurisma poplíteo direito permeável (2,5cm de diâmetro) e doença tíbio‐peroneal bilateral.
A avaliação global e específica pré‐operatória, por ecocardiograma e provas de função respiratória, mostraram hipocinesia do septo e parede inferior do ventrículo esquerdo, com compromisso da função sistólica global e obstrução brônquica‐bronquiolar ligeira.
Face ao risco cardíaco elevado bem como às várias cirurgias aórticas prévias optou‐se por uma opção de tratamento endovascular. Nesse sentido foi efetuada uma abordagem femoral esquerda direta, com isolamento do ramo protésico esquerdo, através do qual se efetuou o acesso com introdutor 7F. Após cateterização da artéria hipogástrica esquerda, utilizando um fio guia hidrofílico 0,035′’ e um cateter Cobra®2 (Terumo®), foi avançado o cateter Van Schie Beacon® (Cook Medical®) e através dele libertados os coils (Nester®Embolization Coil, Cook Medical®). A embolização do saco aneurismático foi complementada com a implantação de endoprótese (ramo ilíaco Zenith Flex® 14×55mm, Cook Medical®) no ramo esquerdo do bypass aorto‐bifemoral (fig. 2A, 2B, 2C e 2D).
Tratamento endovascular com exclusão de aneurisma da artéria hipogástrica esquerda. 2A: angiografia de diagnóstico. 2B: embolização com coils. 2C: implantação de endoprótese (Iliac Leg Zenith CooK Medical® 14×56mm) no ramo esquerdo do bypass aorto‐bifemoral. 2D: angiografia após intervenção.
O pós‐operatório decorreu sem intercorrências, nomeadamente isquemia do cólon ou glútea, e o estudo por angioTC após o procedimento mostrou exclusão do aneurisma da hipogástrica esquerda e permeabilidade do stent‐graft.
Aos 2 anos de «follow‐up» o doente mantém‐se assintomático e sem repermeabilização do aneurisma, documentada em angioTC de controlo (fig. 3). Foi submetido há 2 meses a tratamento convencional de falso aneurisma anastomótico femoral direito e de aneurisma poplíteo direito, sem intercorrências.
DiscussãoOs aneurismas ilíacos são infrequentes, estando associados aos aneurismas da aorta abdominal em 10% destes, surgindo isolados em apenas 2% dos casos. O primeiro aneurisma da artéria hipogástrica isolado foi descrito há mais de 100 anos e é extremamente raro, com uma incidência de apenas 0,4%1,2.
Alguns autores sugeriram que o tratamento de aneurisma da aorta abdominal através de interposição aorto‐bifemoral com perfusão ilíaca retrógrada poderia predispor ao desenvolvimento de aneurismas do sector ilíaco, incluindo os da artéria hipogástrica3. Contudo, na série estudada por Hill não foi descrita dilatação ilíaca em nenhum dos doentes, sendo a perfusão retrógrada caracterizada como segura, mesmo em casos de ectasia das artérias ilíacas4.
A maioria dos doentes é do sexo masculino (relação homem‐mulher de 6:1) com uma média de anos de idade ao diagnóstico de 67,23.
A aterosclerose é a causa mais prevalente (80%), sendo outras causas menos frequentes a infeção (nomeadamente por Salmonella), trauma ou doenças do tecido conjuntivo (Marfan)1.
Os aneurismas ilíacos podem ser assintomáticos (30‐80%)1,3 e detetados acidentalmente em estudos imagiológicos. A rutura com dor na fossa ilíaca esquerda e choque hipovolémico pode ser a forma de apresentação inicial de um aneurisma não diagnosticado. Os sintomas compressivos tornam‐se evidentes quando o aneurisma tem diâmetro superior a 5cm5. A sintomatologia urinária é comum (55%), nomeadamente expressa por micção pulsátil, cólica renal ou hidronefrose1,6. A dor neuropática (13%) e a compressão venosa ou retal são infrequentes7.
Ao exame objetivo cerca de 55% dos doentes apresentam uma massa dolorosa palpável na fossa ilíaca1, como no caso clínico descrito, e ao toque retal ou vaginal é evidente uma massa pulsátil em 36‐70% dos doentes7.
O estudo por angioTC permite aferir a dimensão do aneurisma e as suas relações com as outras estruturas pélvicas, a existência de rutura e de doença aneurismática noutra localização1.
Tem sido recomendada a vigilância através de estudo complementar por angioTC a cada 5 anos, após a ressecção de aneurisma da aorta abdominal, para exclusão de degenerescência aneurismática ilíaca. O intervalo de vigilância deve ser menor em doentes hipertensos ou com alterações nas artérias ilíacas objetivadas na cirurgia inicial8.
A história natural do aneurisma hipogástrico é ominosa, com tendência para o crescimento progressivo e rutura. Esta pode ser a forma de apresentação em cerca de 35% dos doentes com elevada mortalidade (58%)1. Alguns autores não identificaram uma relação direta entre o risco de rutura e a dimensão do aneurisma3.
O tratamento cirúrgico é preconizado por vários autores quando a dimensão é igual ou superior a 3cm, limiar em que o risco de rutura é de 14‐31%1,8.
A cirurgia convencional para o aneurisma hipogástrico tem sido o gold standard, no entanto, encontra‐se associada a morbilidade relevante sobretudo decorrente da sua localização e relação com as estruturas envolventes, nomeadamente veias pélvicas.
A laqueação proximal da artéria hipogástrica com endoaneurismorrafia é o tratamento cirúrgico de escolha, com taxa de recorrência mínima e alívio da sintomatologia compressiva. A laqueação proximal exclusiva apresenta elevada recorrência pela persistência de perfusão retrógrada através de colaterais pélvicos, pelo que mesmo aneurismas de pequena dimensão devem ser objeto de endoaneurismorrafia9.
A mortalidade do tratamento cirúrgico eletivo dos aneurismas da artéria hipogástrica é de 10% na maioria das séries, atingindo os 50% se forem intervencionados em contexto de rutura3. Os resultados da Mayo Clinic (Rochester, Minnesota, EUA) recentemente divulgados apresentam mortalidade de 1% em cirurgia eletiva e de 7% em carácter de urgência10.
As técnicas endovasculares têm emergido como alternativa à cirurgia convencional pela sua menor morbilidade (43 vs. 28%), mortalidade (0 vs. 3%) e duração de internamento (9 vs. 1 dia)10.
A sua utilização está recomendada para o tratamento de aneurismas em doentes de risco elevado, assim como os que apresentem diâmetro inferior a 5cm, uma vez que esta forma de tratamento não está preconizada em casos de apresentação de sintomatologia compressiva3,5.
A embolização proximal e distal constitui o melhor método de tratamento endovascular, eliminando a perfusão aneurismática por fluxo retrógrado pélvico.
Na ausência de colo proximal, o stenting do eixo ilíaco é uma alternativa demonstrada por alguns autores como sendo equivalente à embolização proximal por coils3,11. Peppelenbosch descreve na sua série de 12 doentes submetidos a implantação de extensões ilíacas Zenith® (Cook Medical), com sucesso a médio prazo no tratamento de doença aneurismática ilíaca, apenas um doente com aneurisma isolado da artéria hipogástrica12.
Não foram descritos na literatura tratamentos de aneurismas da artéria hipogástrica semelhantes ao do caso descrito, com desenvolvimento após revascularização convencional através de bypass protésico‐hipogástrica. No entanto, tem sido utilizada de forma crescente a associação de embolização e stenting ilíaco coberto em contexto eletivo ou de rutura11,13,14. Optou‐se, neste caso, por esta associação de modalidades terapêuticas dada a necessidade simultânea de eliminação do preenchimento do aneurisma pela circulação pélvica bem como do bypass protésico‐hipogástrica.
O tratamento endovascular de aneurisma da artéria hipogástrica após tratamento convencional de aneurisma da aorta abdominal resume‐se a casos clínicos e pequenas séries15–17, alguns dos quais em contexto de rutura. Foram implantadas endopróteses em ramos da prótese prévia excluindo o aneurisma ou utilizadas técnicas de microcateterização retrógrada e embolização quando o aneurisma já se encontrava laqueado proximalmente.
ConclusãoO aneurisma da artéria hipogástrica é uma entidade rara, constituindo um desafio diagnóstico e terapêutico devido à sua localização pélvica e abordagem cirúrgica complexa. O tratamento precoce após o diagnóstico deverá ser considerado dada a elevada mortalidade verificada em rutura.
A degenerescência aneurismática hipogástrica tardia após tratamento convencional de aneurisma da aorta é infrequente, mas reforça a necessidade de programa de vigilância por angioTC.
O caso clínico descrito apresenta a embolização hipogástrica complementada por implantação de endoprótese ilíaca como uma alternativa segura e eficaz, sobretudo em doentes de risco cirúrgico elevado, com ótimo resultado a curto e médio prazo. A menor morbimortalidade e a simplicidade do procedimento endovascular em comparação com o tratamento cirúrgico convencional, levam a crer que este procedimento deve ser equacionado quando é necessário planear uma reintervenção por desenvolvimento a posteriori de degenerescência aneurismática da artéria hipogástrica, como no caso apresentado.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.