A rotura traumática da artéria vertebral é rara e no seu tratamento não é habitualmente possível preservar a sua permeabilidade. Apresentamos um caso de uma rotura submetida a tratamento endovascular com preservação do seu fluxo, com recurso a 2 stents cobertos, colocados em contexto de emergência.
Traumatic rupture of the vertebral artery is a rare condition, treatment does not usually allow to preserve its permeability. We present a case of a endovascular treatment with preservation of the flow using two covered stents placed in emergency context.
A origem mais frequente da artéria vertebral é a partir da subclávia, constituindo o seu primeiro ramo. O seu primeiro segmento, V1, localiza‐se entre a origem e a entrada nos buracos transversários, geralmente ao nível de C6. O segmento V2 corresponde à passagem pelos buracos transversários até ao atlas. V3 é o segmento que se curva posterior e superiormente ao atlas e V4 corresponde ao segmento intracraniano.
As variações anatómicas são extremamente frequentes. Aproximadamente 75% da população apresenta uma artéria vertebral esquerda dominante e 10% uma circulação posterior que depende quase inteiramente de apenas uma das artérias vertebrais1.
A lesão da artéria vertebral representa 0,53% do trauma não penetrante, sendo os acidentes de viação a causa mais frequente. Com menor frequência, estas lesões podem ocorrer como complicações de cateterizações venosas centrais e outros procedimentos invasivos, nomeadamente cirúrgicos. A incidência de AVC nestas lesões pode atingir os 25% e a mortalidade os 8%2.
Os estudos de imagem comummente utilizados para o diagnóstico destas lesões são a Angiotomografia Computurizada (angioTC) e a angiografia3.
Os critérios de Denver (tabelas 1 e 2) são utilizados para selecionar os pacientes para os estudos de imagem e para determinar o grau da lesão. Estes critérios foram desenvolvidos, primordialmente, para as lesões carotídeas que são mais comuns4.
Critérios de Denver clínicos para rastreio de lesões cerebrovasculares traumáticas
Lesões da coluna cervical |
Fraturas Le Fort II ou III |
Hematoma cervical |
Síndrome Horner |
Sopro cervical |
AVC isquémico |
Traumatismo craniano com score<6 na escala de coma de Glasgow |
Fratura da mandíbula |
Fratura complexa da base do crânio |
Enforcamento |
Fonte: Cothren et al.8.
Critérios de Denver radiológicos para rastreio de lesões cerebrovasculares traumáticas
Grau I | Grau II | Grau III | Grau IV | Grau V |
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Irregularidade luminal Hematoma/dissecção com <25% estenose | Trombo intramural «Flap»/dissecção/hematoma intramural>25% | Pseudoaneurisma | Oclusão | Transecção |
Fonte: Cothren et al.8.
Uma revisão recente sugeriu utilizar a classificação Denver para a orientação terapêutica das lesões traumáticas da artéria vertebral. Nas lesões de grau está indicado o tratamento médico com antiagregação ou anticoagulação. Enquanto nas lesões sintomáticas de grau II a IV, dado o seu elevado potencial para causar um AVC, devem ser tratadas de urgência por cirurgia endovascular e com anticoagulação; se assintomáticas, o tratamento endovascular não está indicado, devendo a hipocoagulação ser iniciada o mais cedo possível.
Nos casos submetidos a tratamento médico, verificou‐se uma diminuição do número de acidentes vasculares cerebrais e da progressão da lesão. No entanto, as complicações hemorrágicas podem ocorrer em até 8% dos casos. Quanto ao tratamento endovascular, a evidência é pouca e essencialmente baseada em casos e séries de casos5.
Pode ser realizada uma angioplastia percutânea com colocação de stent ou oclusão da artéria vertebral com coils. Existe pouca evidência relativa à conduta mais correta no trauma. O stenting da artéria vertebral é vantajoso pois, para além de permitir o controlo hemostático, permite a preservação da vascularização.
A opção cirúrgica convencional surge como último recurso, quando o tratamento endovascular falha. Apresenta uma elevada morbimortalidade, estando indicada apenas nos casos de hemorragia incontrolável.
Caso clínicoMulher de 19 anos, sem antecedentes de relevo, transportada para o serviço de urgência após um acidente de viação com impacto frontal. Apresentava um volumoso hematoma cervical esquerdo, contusão da parede torácica esquerda e múltiplas fraturas.
Ao exame objetivo, apresentava‐se hemodinamicamente estável com uma tensão arterial de 100/80mmhg, encontrando‐se sedada, ventilada e curarizada.
O hematoma cervical provocava um desvio da traqueia. A auscultação cardiopulmonar não apresentava alterações de relevo. O abdómen era mole, depressível, indolor.
Analiticamente, destaca‐se: Hb – 10,5g/dL; plaquetas – 110×10^9/L; INR – 1,73; protrombinemia – 46%; TP – 22,5seg; aPTT – 29,5seg; fibrinogénio – 1,1g/L.O estudo por angioTC revelou uma área de hiperdensidade no hematoma cervical em provável relação com uma ruptura vascular e hemorragia activa.
Foi decidida a realização de uma angiografia de urgência. Procedeu‐se à cateterização seletiva da artéria vertebral esquerda, com recurso a um guia hidrofílico Roadrunner® UniGlide®, de 250cm de comprimento e 0,018 de diâmetro, e um cateter Head Hunter 4F, que mostrou transecção da artéria vertebral (segmento V1) com extravasamento do produto de contraste (fig. 1).
Realizou‐se com sucesso a cateterização do segmento distal da artéria, tendo‐se ainda constatado a presença duma segunda rutura em V2 (fig. 2).
Foi efetuada angioplastia dos vasos vertebrais com 2 stents cobertos, GRAFTMASTER® RX de 3,5×16mm e 4×16mm, com sobreposição de 8mm e com restituição anatómica do fluxo sanguíneo (figs. 3 e 4). Foi ainda realizada uma dilatação dos stents, com um balão Rx Viatrac 14 de 4mmx20mmda Abbott.
Durante o procedimento, apenas foi utilizado soro heparinizado e realizou profilaxia antibiótica com Ceftriaxone 2g, endovenoso, toma única.
A doente foi posteriormente internada no serviço de ortopedia para tratamento de múltiplas lesões, nomeadamente: fratura dos ramos ílio e isquiopúbicos à direita, fratura diafisária do fémur esquerdo, fratura bimaleolar à esquerda, fratura da clavícula esquerda.
No dia seguinte, apresentava‐se consciente e colaborante, com amnésia para o sucedido.
O exame neurológico era normal. Apresentava uma redução do hematoma cervical, não sendo necessário proceder à sua drenagem. Analiticamente, destacava‐se uma Hb – 7,4g/dl e plaquetas 70×10^9/L.
A TC de controlo realizada no internamento mostrou a presença de 2 hipodensidades cerebelosas esquerdas (fig. 5).
Dois meses depois em consulta de follow‐up, sem sensação de vertigem, sem alterações dos pares cranianos, nistagmo ou lateralização. O ecoDoppler das artérias vertebrais revelava permeabilidade do stent. Apresentava queixas atribuíveis a sequelas de fraturas. Encontra‐se medicada com ácido acetil salicílico – 100mg, e em processo de reabilitação. Será realizada uma consulta follow‐up, com controlo por ecodoppler, a cada 3 meses durante o primeiro ano; ulteriormente, cada 6 meses até completar os 5 anos e, após este período, em consulta anual.
DiscussãoA lesão traumática da artéria vertebral é uma condição rara. Neste caso, a doente apresentava uma lesão de alto grau segundo os critérios de Denver. Apresentava um volumoso hematoma cervical com desvio da traqueia e evidência de hemorragia ativa na angioTC, pelo que se optou por realizar uma angiografia para melhor caracterização das lesões. A angiografia revelou transecção da artéria vertebral ao nível do segmento V1 e V2, com extravasamento do produto de contraste. Foi efetuada uma angioplastia dos vasos vertebrais com 2 stents cobertos, com restituição anatómica do fluxo sanguíneo. Desta forma, para além do controlo hemostático manteve‐se a permeabilidade do vaso.
Neste caso, para além da hemorragia ativa, a doente apresentava múltiplas fraturas, pelo que a antiagregação e a anticoagulação estavam contraindicadas6.
A reavaliação posterior, realizada no internamento por TC cranioencefálica, mostrou a presença de 2 hipodensidades cerebelosas esquerdas. A etiologia destas lesões é discutível, podendo resultar da hipoperfusão transitória do cerebelo ou da embolização durante ou após o procedimento. A artéria vertebral lesada foi a esquerda, que é a dominante em 75% da população, e 10% têm uma circulação posterior, que depende quase inteiramente de apenas uma das artérias vertebrais. Estes factos suportam que a tentativa de reconstruir a artéria foi a melhor opção, uma vez que a sua oclusão poderia ter consequências desastrosas.
A maior parte dos procedimentos implicam o sacrifício do vaso6. A reconstrução da artéria com stents cobertos é considerado um procedimento excecional. As razões prendem‐se com a dificuldade técnica na cateterização da porção distal da artéria e porque muitos autores defendem que a circulação colateral é suficiente para compensar a oclusão da artéria lesada7.
Estudos realizados com séries pequenas demonstram uma taxa de 26% de reestenose/oclusão aos 12 meses, não existindo nesses casos uma correlação consistente com a clínica.
Nestes casos, está indicada a antiagregação, não existindo contudo evidência do período mínimo desta terapêutica, defendendo alguns autores que seja ad eternum. Não parecem existir diferenças nas taxas de reestenose nos grupos tratados com antiagregação e anticoagulação.
ConclusãoA terapêutica endovascular está pouco descrita na literatura por ser considerada de grande dificuldade técnica.
Apesar de descrita como uma opção terapêutica, a embolização da artéria vertebral, ou mesmo a laqueação cirúrgica desta, neste caso concreto, poderia ter consequências desastrosas. A opção por tratamento médico em contexto de hemorragia ativa não foi equacionada. Apesar da manifestação imagiológica de isquemia, a evolução da doente foi excelente, nunca tendo desenvolvido défices focais.
A doente prossegue o programa de reabilitação para as restantes lesões.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.