No sentido de potenciar a técnica cirúrgica preventiva do acidente vascular cerebral, a endarterectomia carotídea, vários estudos têm sido realizados na tentativa de esclarecer qual a técnica anestésica que se relaciona com melhores resultados quanto a morbilidade, mortalidade, instabilidade hemodinâmica, necessidade de shunt, custos, função cognitiva e resultados cardiovasculares.
ObjetivoEste artigo procura analisar resultados publicados comparando as duas técnicas anestésicas (locoregional (AL) e geral (AG)) na endarterectomia carotídea, no que concerne aos períodos pré, intra e pós-operatórios.
MétodosFoi realizada, uma pesquisa na base de dados MEDLINE® (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/) com a query “anesthesia carotid endarterectomy” aplicando filtros para obter diferentes tipos de estudos (ensaios clínicos, ensaios clínicos randomizados, estudos multi-cêntricos, revisões, revisões sistemáticas e meta-análises) publicados nos últimos 10 anos nas línguas inglesa e portuguesa. Posteriormente foram feitas pesquisas individuais com os mesmos filtros para cada uma das técnicas anestésicas e diferentes parâmetros a analisar associados ao procedimento cirúrgico em estudo.
ResultadosApesar dos resultados evidenciados não serem estatisticamente significativos, a endarterectomia carotídea com AL parece predominar positivamente na comparação com a AG, especialmente em doentes com oclusão carotídea contra-lateral. As incidências de AVC, EAM e mortalidade aos 30 dias mostraram-se ligeiramente inferiores, a utilização de shunts é consideravelmente menor, assim como os custos médios associados a menores períodos de internamento.
ConclusõesAmbas as técnicas anestésicas são seguras, devendo ser utilizada a técnica mais confortável pela equipa cirúrgica, otimizando o fluxo sanguíneo cerebral, minimizando o esforço cardíaco e o risco de isquemia através do controlo da pressão-perfusão.
In order to enhance the preventive surgical technique of stroke, carotid endarterectomy, several studies have been performed to clarify the anesthetic technique that relates best results with respect to morbidity, mortality, hemodynamic instability, need to use shunt, costs, cognitive function and cardiovascular outcomes.
AimThis review analyzes the published results comparing the two anesthetic techniques (locoregional and general) in carotid endarterectomy with respect to preoperative, intraoperative, and postoperative periods.
MethodsA research was made initially on MEDLINE® database (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/) with the query “anesthesia carotid endarterectomy” applying filters for different types of articles (clinical trials, randomized clinical trials, multicentre studies, reviews, systematic reviews and meta-analysis) published in the last 10 years in english or portuguese languages. Subsequently, individual searches were made, with the same filters, for each anesthetic techniques associated with the surgical procedure under study, as well as to the different parameters to be analyzed.
ResultsDespite not being statistically significant, the carotid endarterectomy with locoregional anesthesia seems to predominate positively in comparison with the general anesthesia, especially in patients with carotid contralateral stenosis. The incidence of stroke, MI and death at 30 days were slightly lower, the use of shunts is considerably smaller, and the average costs associated with shorter periods of hospitalization.
ConclusionsBoth anesthetic techniques are safe, and should be used the one for which the surgical team is more comfortable for, optimizing cerebral blood flow, minimizing the effort and the risk of cardiac ischemia by regulating the pressure-perfusion.
O acidente vascular cerebral (AVC) representa um importante problema de saúde a nível mundial e é das principais causas de incapacidade por danos neurológicos na população adulta dos países desenvolvidos1.
A sua taxa de mortalidade varia entre 10 a 30%, nos afetados. Contudo, o risco anual de reincidência de um episódio isquémico permanece elevado entre os sobreviventes, enfatizando a necessidade de intervenção no sentido da prevenção2.
O risco de AVC aumenta com a idade. O facto de nos últimos anos se verificar um aumento da esperança média de vida com o envelhecimento global da população, torna importante prevenir estes episódios diminuindo, assim, a incapacidade que lhe está inerente1,2.
Mais de um terço dos AVCs devem-se a aterosclerose2. Os acidentes isquémicos recorrentes são devidos, principalmente, a aterosclerose da bifurcação da artéria carótida comum, responsável por 20% de todos os AVCs2.
A endarterectomia carotídea (CEA) é um procedimento cirúrgico preventivo que consiste na remoção de uma placa de ateroma localizada na artéria carotídea, de modo a reduzir os episódios de acidentes vasculares isquémicos cerebrais embólicos e trombóticos3,4.
O risco de acidente vascular isquémico num doente com estenose hemodinamicamente significativa da artéria carótida ipsilateral é muito elevado; por isso a CEA é particularmente aconselhada se já houver antecedentes de acidente isquémico transitório (AIT) ou AVC prévio5.
Nos casos de estenose assintomática, os benefícios são menores6.
Foram realizados vários estudos no sentido de estabelecer as indicações para realização de CEA, tais como o North American Symptomatic Carotid Endarterectomy Trial (NASCET), o European Carotid Surgery Trial (ECST) e o US Veterans Administration Hospitals Trial (VA) para doentes sintomáticos; e os estudos Asymptomatic Carotid Atherosclerosis Study (ACAS) e o Asymptomatic Carotid Surgery Trial (ACST) para os indivíduos assintomáticos7–10.
Dadas as diferenças no que concerne aos critérios de aferição do grau de estenose pelos estudos atrás referidos (NASCET e ESCT), foram analisados os resultados doentes sintomáticos, que evidenciaram um benefício máximo com a técnica cirúrgica nos casos de estenose superior a 70%11,12. Verificou-se em certos subgrupos um maior benefício com o procedimento: caso de homens, na presença de oclusão contralateral, de idade superior a 75 anos, com sintomas hemisféricos, placa irregular e doença intracraniana associada5.
Em relação aos estudos com indivíduos assintomáticos, o ACAS demonstrou benefícios em indivíduos do sexo masculinos sem co-morbilidades significativas, idade inferior a 75 anos, com estenose carotídea igual ou superior a 60%10,13. O ACST, publicado em 2004, constatou a redução para metade (pela CEA) do risco de AVC fatal, sendo que tanto os homens como as mulheres beneficiaram com a cirurgia11,13. Contudo, o benefício em mulheres assintomáticas é significativamente menor comparativamente ao dos homens, sendo que a técnica deve ser apenas considerada em mulheres assintomáticas mais jovens. Uma vez que há riscos associados, o doente só beneficia da CEA quando os riscos peri-operatórios são reduzidos, isto é, quando a taxa combinada de morbilidade neurológica, cardíaca e associada ao cirurgião for inferior a 2%, e quando a sobrevida em cinco anos é boa13,14. As complicações neurológicas representam um importante fator de risco peri-operatório, sendo que em 25% dos casos há comprometimento cognitivo15. Assim, de modo a reduzir-se a incidência da mortalidade e morbilidade da endarterectomia carotídea, têm sido tema de debate entre anestesistas e cirurgiões, durante muitos anos, os riscos e benefícios da anestesia geral (AG) e da anestesia locoregional (AL), de maneira a potenciar a técnica1.
Anestesia no contexto da cirurgia carotídeaOs grandes objetivos da anestesia são o controlo da dor, a manutenção da via aérea, oxigenação e estabilidade cardiovascular criando boas condições operatórias para a cirurgia, permitindo simultaneamente a monitorização cerebral1.
O acesso cirúrgico à artéria carotídea pode ser feito através duma incisão longitudinal ou transversal. A respeito da morbilidade e mortalidade, às complicações da ferida no pós-operatório ou à lesão e comprometimento nervoso, ambas as abordagens parecem ter os mesmos resultados. No entanto, a incisão cervical longitudinal deve ser preferida uma vez que, perante uma placa aterosclerótica de maior extensão, um alongamento proximal e distal do campo cirúrgico é mais fácil perante esta incisão, bem como a implantação de shunts se encontra mais facilitada16.
A técnica cirúrgica para a endarterectomia carotídea envolve a clampagem a montante e a jusante da área afetada na artéria para disseção da placa aterosclerótica. Durante este procedimento, o hemisfério cerebral cuja irrigação depende deste vaso encontra-se em risco de hipoperfusão e de danos permanentes devido a eventual isquemia. Assim, aquando da clampagem, o fluxo sanguíneo para este hemisfério é fundamentalmente garantido pela artéria carótida interna contralateral e artérias vertebrais, via artérias comunicantes anterior e posterior do polígono de Willis17.
De modo a reduzir os efeitos da hipoperfusão e de um eventual acidente vascular cerebral nos intra e pós-operatórios, muitas vezes recorre-se à colocação de um shunt entre a zona proximal e distal da área a tratar, o que faz com que o fluxo sanguíneo nunca deixe de chegar ao hemisfério cerebral respetivo. Contudo, deste procedimento pode advir um aumento da taxa de acidentes vasculares microembólicos, para além do risco local por fragilização da parede vascular, inerente à técnica, de dissecção da artéria carótida18.
O acesso à perfusão cerebral (medição da pressão de retorno na artéria carótida ou medição do fluxo sanguíneo através de doppler transcraniano e electroencefalograma) é essencial durante este procedimento e é indicativo da necessidade ou não de shunt19. O facto de se realizar a cirurgia no contexto de anestesia loco-regional (AL) permite recorrer ao shunt só nos casos em que ele é necessário, uma vez que o doente se encontra acordado e colaborante, permitindo esta interação uma monitorização neurológica contínua. Isto revela-se uma grande vantagem uma vez que reduz a necessidade de shunt para menos de 10%17.
Dados como a anatomia do pescoço, local da bifurcação carotídea, re-operação, doença psiquiátrica associada, compreensão e cooperação por parte do doente, tornam-se muito importantes na decisão de realização do procedimento sob anestesia geral ou loco-regional, tendo sempre de ser tomados em consideração.
A meta-análise da Cochrane analisou a informação de 26 estudos não-randomizados e 7 randomizados, concluindo pela existência de potenciais benefícios na anestesia loco-regional, embora a evidência fosse insuficiente para justificar tais conclusões. As diferenças a nível da taxa de mortalidade e ocorrência de AVC não eram estatisticamente significativas. Por outro lado, a utilização de AL estava associada à diminuição significativa de hemorragia local. No entanto, o facto de se tratar dum estudo com pequena amostra, não permitiu que fossem tiradas conclusões definitivas20.
Numa tentativa de responder a estas questões, o estudo GALA (General Anaesthesia versus Local Anaesthesia for carotid surgery), o maior estudo randomizado cirúrgico/ anestésico já efetuado nesta área, foi desenhado com o intuito de determinar se o tipo de anestesia influencia a morbilidade e mortalidade (particularmente por AVC), a qualidade de vida e a sobrevida sem AVC e EAM no primeiro ano após a cirurgia. O estudo incluiu 3527 indivíduos com estenose carotídea sintomática ou assintomática de 95 centros de 24 países diferentes, entre 1999 e 2007, para os quais a endarterectomia carotídea, quer sob anestesia geral quer local, se encontrava recomendada. Os resultados obtidos relativos à taxa de mortalidade e ocorrência de AVC (outcomes primários) não foram estatisticamente significativos21.
Posteriormente, em 2008, uma nova revisão sistemática de Cochrane incluindo o estudo GALA, concluiu que a probabilidade de AVC ou de morte era semelhante com ambas as técnicas anestésicas. No entanto, a AL foi associada a uma redução significativa da hemorragia pós-operatória22.
Vantagens e desvantagens da anestesia geralA anestesia geral no contexto da endarterectomia encontra-se bem descrita e documentada há já alguns anos23.
A grande vantagem desta técnica é o facto de a via aérea se encontrar assegurada durante todo o procedimento cirúrgico, com controlo da ventilação e da concentração de dióxido de carbono1. A manutenção da anestesia pode ser feita com um agente anestésico volátil (sevoflurano) ou intravenoso (propofol) e com um opióide de ação curta como o remifentanil. Esta combinação permite um acesso rápido e precoce à função neurológica do doente, para além de diminuir, em teoria, o metabolismo cerebral do oxigénio, conferindo um grau teórico acrescido de neuroproteção, apesar de haver pouca evidência clínica destes benefícios1,24.
Uma das principais desvantagens da AG é a necessidade de recorrer a métodos indiretos para proceder à monitorização cerebral, como a medição de pressão de retorno, doppler transcraniano, electroencefalografia, potenciais evocados e INVOS. Para além dos elevados custos associados, todos estes métodos têm sensibilidades e especificidades relativamente baixas comparativamente à neuro-monitorização utilizada na AL com o doente acordado, para deteção de perfusão cerebral inadequada e enfarte intraoperatório15,25,26. Os efeitos residuais da AG num pós-operatório precoce podem mascarar os sinais e sintomas de eventuais complicações neurológicas ocorridas durante a cirurgia. Isto faz com que o reconhecimento dum novo enfarte nestes doentes, apenas é obtido após a recuperação completa da anestesia19.
Sob esta técnica anestésica, o risco de hipotensão intraoperatória e hipertensão pós-operatória com necessidade de medicação vasoativa, é aumentado. A administração de volumes intravenosos em excesso faz com que haja necessidade de algaliar o doente. A dor causada pela distensão vesical ou pela irritação a nível do cateter urinário são causas de desconforto e de hipertensão no pós-operatório1.
Em doentes mais idosos, a AG encontra-se associada a maiores riscos cardio - respiratórios14.
As complicações associadas à técnica de anestesia geral, desde complicações major da via aérea a complicações minor, incluindo cefaleia e irritação da orofaringe, estão também presentes1.
Vantagens e desvantagens da anestesia locoregionalA grande vantagem de realizar a CEA sob AL é a capacidade de aceder rapidamente à função cerebral do doente sem necessidade de utilização de aparelhos de monitorização auxiliares, bem como a capacidade de autorregulação da pressão arterial se encontrar relativamente preservada e haver uma menor necessidade de recorrer a agentes vasopressores. A monitorização contínua é realizada pelo cirurgião e pelo anestesista uma vez que o doente se encontra acordado e cooperante durante a cirurgia. Esta avaliação pode ser oral através de perguntas, avaliando a capacidade de resposta e, ou, pela capacidade de compreender e executar uma ordem, por exemplo, através da movimentação dos membros superiores e ou inferiores18. Qualquer alteração do estado de consciência, do discurso ou da motricidade após clampagem, funcionam como sinais precoces de perfusão cerebral inadequada19. Isto permite ao cirurgião selecionar a utilização de shunts de modo mais apropriado e menos frequente com menores complicações hemodinâmicas.
Segundo o aludido estudo GALA, a diferença na utilização de shunts é bastante significativa: 14% vs. 43% respetivamente com AL e AG. Não obstante o shunt proteger o cérebro de eventuais episódios isquémicos, contribui, por outro lado, para o embolismo cerebral e ao lesar a parede arterial, promove a trombose carotídea ou a disseção da carótida no pós-operatório27.
A AL permite evitar as complicações típicas da entubação visíveis na anestesia geral tais como irritação da orofaringe, náuseas, vómitos; por sua vez o recobro operatório mais fácil resulta numa alta mais precoce, reduzindo custos hospitalares. De facto, a AL mostrou ser uma opção com melhor relação custo-eficácia por exigir menos cuidados intensivos, menor período de internamento e conse quen temente diminuição de custos quando comparada com a CAE em contexto de AG27.
Os inconvenientes da AL relacionam-se com as próprias desvantagens inerentes ao bloqueio utilizado e ao possível desconforto do doente: claustrofobia, sobre-aquecimento, globo vesical, que causam agitação e inquietude.
A anestesia pode ser feita utilizando um bloqueio superficial e/ou profundo do plexo cervical, visando a supressão dos ramos sensitivos entre os dermátomos de C2-C5 e de alguns pares cranianos como o ramo submandibular do nervo facial, as terminações da bainha da carótida do vago e o glossofaríngeo, frenando as sensações ao nível do pescoço28. Mesmo bloqueios competentemente realizados, com as diferentes técnicas, podem associar-se a dor uma vez que os nervos hipoglosso, vago e facial também conduzem informação álgica e não são bloqueados por nenhuma técnica convencional, sendo necessária a complementação local pelo cirurgião com anestésico local. Para além da grande quantidade de anestésico local necessária, deve ser tido em conta o eventual risco de injeção inadvertida de anestésico intravascular durante as infiltrações17.
O bloqueio cervical profundo parecia ser a melhor alternativa pela complexidade da inervação sensitiva da região do pescoço. O bloqueio pode ser efetuado com três injeções em C2,C3 e C4 ou injeções únicas em C4. No entanto, podem advir complicações sérias como bloqueio espinhal total, convulsão por injeção vertebral inadvertida e paraplegia, injeção intravascular, subaracnoideia ou epidural, com hematoma local, paralisia do nervo frénico ipsilateral, parésia transitória do nervo laríngeo recorrente, síndrome de Horner e bloqueio do gânglio estrelado1,29.
A técnica simples de bloqueio cervical superficial envolve injeções subcutâneas de anestésico local a partir do ponto médio do bordo posterior do músculo esternocleidomastóideo com o paciente em decúbito dorsal, em posição de Trendeleburg leve com rotação e flexão do pescoço contralateralmente ao bloqueio, deixando evidentes a veia jugular externa e o bordo posterior do músculo esternocleidomastóideo30. As complicações associadas ao bloqueio superficial são raras, mas podem ocorrer potenciais danos em nervos superficiais, hematoma local além da injeção intravascular do anestésico1,29. Estudos clínicos demonstraram que o bloqueio cervical superficial é semelhante na analgesia, na satisfação do doente e no resultado clínico ao bloqueio cervical profundo e à combinação deste na anestesia para endarterecomia carotídea, constituído, portanto, uma alternativa mais segura neste tipo de intervenções, no entanto, requerendo sempre uma equipa anestésica qualificada e experiente nesta prática29–32.
Neste contexto anestésico, o doente tem de ser cooperante, capaz de permanecer deitado e imóvel durante a intervenção. A administração de midazolam ou de baixas doses de propofol, como agentes sedativos, pode mostrar-se útil, atentando sempre no eventual risco da sedação excessiva1.
Evidência - AVC, EAM e mortalidade (resultados primários)Na meta-análise de 2004 do grupo Cochrane20, os resultados em termos de redução das taxas de AVC e de mortalidade, foram claramente favoráveis à AL em estudos não randomizados (OR 0,39; IC 95%: 0,52-0,23) e em estudos randomizados (OR 0,37; IC 95%: 0,75-1,62)20. No entanto, pelo facto de a maioria dos resultados advir de estudos não randomizados e retrospetivos, com seleção heterogénea e seguimento variável dos doentes, com fatores de risco não ajustados, entre outros aspetos, a validade destes resultados foi muito questionada do ponto de vista científico18.
Posteriormente, o estudo GALA definiu, como resultados primários, a incidência de AVC (incluindo enfarte retiniano), de EAM e de mortalidade, nos primeiros 30 dias após a cirurgia. De 3526 doentes selecionados, 1773 foram submetidos a AL e 1753 a AG21.
A análise dos resultados mostrou que, na AL, as incidências de AVC, EAM e mortalidade aos 30 dias eram respetivamente de 4%, 0,2% e 1,1%, ligeiramente inferiores às correspondências incidências obtidas com a AG: 3,7%, 0,5%, 1,5%21. Aglutinando a incidência dos três eventos primários, 80 em doentes (4,5%) sob AL tiveram um dos eventos, comparando com uma incidência ligeiramente superior no caso de AG: 84 em 1752 doentes (4,8%)21. A diferença entre as duas técnicas, não foi estatisticamente significativa, sendo preciso realizar 1000 CEAs com AL (OR 0,94; IC 95%: 0,70-1,27) para prevenir 3 eventos (IC 95%: −11 a 17)21. Contudo, no subgrupo de doentes com oclusão carotídea contra - lateral, a diferença entre as duas técnicas foi clara embora, também, não estatisticamente significativa a favor da AL (1,2%) versus AG (4,7%) (OR 0,47; IC 95% 0,20-1,15; p=0,098).
Posteriormente, uma meta-análise na qual se incluiu o estudo GALA, concluiu não haver evidência de redução da probabilidade de AVC, EAM ou mortalidade entre os dois tipos de técnicas anestésicas durante a CEA25. Verificou-se a tendência para menor mortalidade operatória com AL (OR 0,62, IC 95%, 0,36-1,07), mas nem o estudo GALA nem a análise conjunta foram desenhados para detetar os efeitos sobre a mortalidade de forma confiável. Para confirmar ou refutar os possíveis efeitos sobre a mortalidade é preciso um estudo randomizado com uma amostra substancialmente maior19.
É interessante notar que na análise de estudos não randomizados é consistente a redução dos riscos de acidente vascular cerebral e morte operatória quando a CEA é realizada com recurso à AL.
Instabilidade hemodinâmicaDurante a CEA os problemas do foro hemodinâmico são bastante comuns e preocupantes. A autorregulação da pressão arterial após um AVC, a redução da sensitividade dos baro-recetores pela ateroesclerose dos vasos e os efeitos intrínsecos à cirurgia, anestesia, idade avançada, diabetes e medicação anti-hipertensiva, contribuem para esta instabilidade19,33.
Há já alguns anos que estudos, não randomizados, têm comparado o efeito das duas técnicas anestésicas (AL e AG) na variação dos padrões hemodinâmicos na CEA34,35.
O controlo da pressão na artéria é mais difícil de conseguir durante e após anestesia geral. Sob AL, há tendência, durante a clampagem, para hipertensão; no período pós-operatório, a hipotensão predomina34,35. Em contraste, na AG, no âmbito intra-operatório observa-se hipotensão relativa, seguida de hipertensão no pós-operatório33, que pode persistir durante as primeiras 48 horas após a cirurgia, o que implica um uso mais frequente de substâncias vasoativas36. No entanto, embora a pressão arterial se encontre mais estabilizada e haja menor necessidade de fármacos vasopressores na AL, a incidência de taquicardia e o aumento dos níveis de catecolaminas no sangue são maiores em comparação com a AG36.
Utilização de shuntsDe acordo com o estudo GALA, a diferença na utiliza ção de shunts sob AL e AG foi notória, 14% vs. 43% respetivamente21. Diferencial idêntico mas consideravelmente maior foi descrito no estudo de Sideso et al. (9,2% vs. 82,2%)37, bem como em Mansilha 2011 (shunt sob AL inferior a 3%)18.
Uma das vantagens de realização de CEA num contexto de AL, relativamente à AG, deve-se ao facto da opção de colocação de shunt ser feita de forma seletiva, isto é, mais apropriada e menos frequentemente, resultando em menores complicações embólicas ou cardiorrespiratórias, preservando a autorregulação cerebrovascular21,25.
A utilização de AL pode ajudar na identificação mais precisa dos doentes que realmente necessitam de colocação de shunts. O seu uso seletivo também pode ser realizado em CEA sob AG, mas somente se os diferentes métodos indiretos de monitorização contínua estiverem disponíveis. Para além de exigir equipamento caro, requer pessoal especializado na sua interpretação, a fim de prevenir falsos-positivos e/ou falsos-negativos25.
Uma recente revisão avaliou o papel da monitorização cerebral durante a CEA38. A monitorização cerebral durante a CEA (eletroencefalograma, doppler transcraniano, pressão de encravamento, evocados potenciais sensoriais e INVOS) permite a deteção das principais causas de acidente vascular cerebral peri-operatório, ou seja, embolia, hipoperfusão intra-operatória e síndrome da hiperperfusão pós-operatória26,38. Embora alguns clínicos questionem a validade da monitorização cerebral considerando-a um processo caro e demorado, outros defendem que a sua utilização é essencial, uma vez que fornece informações diretas sobre os novos défices neurológicos os quais, de outra forma, seriam impercetíveis38. No entanto, quando comparados com a neuro - monitorização utilizada na AL com o doente acordado, mesmo o sistema INVOS, único oxímetro regional que permite a monitorização simultânea de quatro regiões cerebrais bem como monitorização somática avaliando as reservas de oxigénio venoso em tempo real, têm sensibilidades e especificidades relativamente baixa39. O feedback imediato permite ao cirurgião corrigir prontamente qualquer alteração no intra-operatório. Contudo, apesar de existirem diversas modalidades de monitorização, nenhuma é, per si, definitiva, sendo necessária a combinação das diferentes técnicas25.
Desde há anos, vem sendo relatado que, se após clampagem, não ocorrer isquemia cerebral (por adequada circulação colateral pela artéria carótida contra-lateral), a taxa de AVC é muito maior se houver colocação de shunt (8,8% vs. 2,1%, com e sem uso de shunts, respetivamente; P<0,0001). Esta praxis foi confirmada recentemente quando doentes submetidos a colocação seletiva de shunt por monitorização eletrofisiológica obtiveram uma probabilidade de desenvolver AVC no peri-operatório reduzida em mais de 7 vezes (odds ratio [OR]: 0,05; intervalo de confiança de 95%: 0,01-0,40, P<0,01)40. A maioria dos doentes tem uma circulação colateral adequada para tolerar até, pelo menos, 30 minutos de clampagem de carótida unilateral sem sofrer danos por isquemia41. Nestes indivíduos, a utilização de shunt não é apenas desnecessária como é um importante fator de risco de AVC no pós-operatório41. A derivação seletiva pode assim ser preferível, com base na monitorização hemodinâmica/eletrofisiológica, perante uma artéria carótida interna lesada, na presença de estenose, de oclusão da carótida contra-lateral, em doentes cujo risco de isquemia cerebral seja considerável ou com história prévia de AVC41.
Custo-eficácia e duração do internamentoSem prejuízo dos benefícios para a saúde pública, os custos inerentes à prática clínica devem ser ponderados na decisão sobre qual a técnica anestésica a adotar.
Com base em dados do estudo GALA, foi realizada uma avaliação económica com o objetivo de comparar os custos da CEA sob AG com os do mesmo procedimento sob AL, em doentes com estenose carotídea sintomática ou assintomática, para os quais a cirurgia estava aconselhada40.
Estabeleceram-se os seguintes parâmetros: tempo de cirurgia, elementos das equipas anestésica e cirúrgica, conveniência e tipo de shunt utilizado, anestésico representativo do regime praticado (outros fármacos, tal como analgésicos, não foram incluídos no estudo, dado o seu baixo custo), tempo total de permanência hospitalar e nas diferentes enfermarias, unidades de cuidados intensivos (UCI) e de cuidados intermédios, bem como ocorrência de AVC, EAM e morte, uma vez que influenciam o período de hospitalização40.
Depois de ajustados os custos e critérios de exclusão e correlação, o estudo mostrou que um participante randomizado para AL tinha um custo-eficácia, em média, £ 178 (aproximadamente 216 €, ao cambio atual) menor comparativamente com um doente randomizado para receber AG40. Esta grande diferença deve-se essencialmente à menor necessidade de internamento em UCI após CEA (20,9% vs. 71,4%, em AL vs. AG, respetivamente, bem como as seguintes), à menor utilização de shunt (14,3% vs. 42,9%)40.
Em termos de benefícios de saúde no curto prazo, ou seja, ganho de tempo livre de eventos (AVC, EAM, incluindo enfarte retiniano e morte), a AL revela-se mais benéfica embora estatisticamente sem grande significado40. Em média, foram identificados menores custos com a intervenção, ligeiramente mais eficaz, no âmbito de AL.
Delírio pós-operatório, função cognitiva e resultados cardiovascularesA redução do fluxo sanguíneo devido à clampagem da artéria carótida durante o procedimento cirúrgico e, a consequente lesão cerebral, é considerada a principal causa de disfunção cognitiva pós-CEA. Porém, uma otimização da técnica anestésica utilizada, bem como, uma adequada neuro-monitorização podem resultar em menores incidências destes episódios15.
Um ensaio clínico prospetivo e randomizado foi realizado, com base numa análise do estudo GALA, com o objetivo de investigar a influência da anestesia local versus geral no desempenho cognitivo pós-operatório em doentes submetidos a CEA15.
O estudo demonstrou que doentes de idade mais avançada, submetidos a CEA-AG têm taxas de delírio e disfunção cognitivas aumentadas após a cirurgia, comparativamente com os submetidos a AL15. O delírio pós-operatório, de maior grau se o doente é submetido a cirurgia vascular e ortopédica, redunda em maior mortalidade e morbilidade, atraso na recuperação funcional e inerente incremento dos custos relacionados com o prolongamento do tempo de internamento hospitalar15.
O aludido estudo GALA revelou, assim, um melhor desempenho neuro-cognitivo subsequente à AL15. Assim, a realização de cirurgia com AL parece ter um efeito protetor na disfunção cognitiva precoce no pós-operatório.
Como se descreveu anteriormente, doentes operados sob AG têm mais eventos hipertensivos (pressão arterial sistólica > 180mmHg)33. O aumento da pressão arterial sistó lica (> 150mmHg) após CEA acarreta graves complicações, destacadamente sobrepressão intra-craniana, hemorragia intracerebral e síndrome da híper-perfusão cerebral33.
ConclusãoOs resultados evidenciados pelos estudos objeto deste trabalho não são estatisticamente significativos. Porém, tal não significa que a técnica anestésica utilizada na endarterectomia carotídea não seja importante para o resultado da intervenção cirúrgica.
A CEA com AL parece predominar positivamente na comparação com a AG, especialmente em doentes com oclusão carotídea contra-lateral.
Ambas as técnicas anestésicas são seguras. De acordo com as recomendações publicadas pela ESVS2, deve ser determinada em conjunto pelo anestesista, o cirurgião e o próprio doente, a técnica mais confortável a utilizar, dependendo da experiência da equipa técnica, das preferências e co-morbilidades individuais, desde que as taxas de mortalidade e morbilidade neurológica e, ou, cardíaca, respeitem os valores limite atualmente aceites pela comunidade científica (< 6% em doentes sintomáticos e < 3% em doentes assintomáticos).
Qualquer que seja a técnica anestésica escolhida, o fluxo sanguíneo cerebral deve ser otimizado, o esforço cardíaco minimizado e o risco de isquemia diminuído, através do controlo da pressão-perfusão.
Os autores declaram não haver conflito de interesses.