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Vol. 22. Núm. 4.
Páginas 300-305 (octubre 2011)
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A Química e a formação para a cidadania
Chemistry and citizenship formation
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Wildson Luiz Pereira dos Santos
* Universidade de Brasília, Brasil
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Abstract

In this paper, commitments of chemistry professionals and of teachers should assume in the celebration of International Year of Chemistry in relation to citizenship from the global context of the technological development of Chemistry are discussed. It is recognized that Chemistry has contributed significantly to improving life quality and economic development. On the other hand, it is highlighted that the model of global technological development has increased the concentration of income and social inequality, causing serious environmental accidents as well. Educational principles for citizenship are discussed, stressing the development of decision making capacity and the development of ethical values; likewise the conception of science-technology-society approach in the critical perspective based on Paulo Freire ideas. In conclusion, it is recommended to insert socioscientific discussions into Chemistry courses and in Chemistry teaching in schools with purpose to reflect on the role of Chemistry in society, with critical awareness of its benefits, risks and social implications.

Keywords:
Chemistry in society
citizenship
scientific literacy
STS
Paulo Freire
Texto completo

E não se diga que, se sou professor de biologia, não posso me alongar em considerações outras, que devo apenas ensinar biologia, como se o fenômeno vital pudesse ser compreendido fora da trama histórico-social, cultural e política. Como se a vida, a pura vida, pudesse ser vivida de maneira igual em todas as suas dimensões na favela, no cortiço ou numa zona feliz dos “Jardins” de São Paulo. Se sou professor de biologia, obviamente, devo ensinar biologia, mas ao fazê-lo, não posso secioná-la daquela trama.

(Paulo Freire, 1992, p. 78-79)

Introdução

Ao celebrarmos o Ano Internacional da Química (AIQ) promulgado pela Organização das Nações Unidas – ONU sob o tema “Química – nossa vida nosso futuro” que está inserido dentro da programação da “Década da Educação e do Desenvolvimento Sustentável”, estabelecida também pela ONU, certamente não podemos deixar de tratar das condições de vida da população global que tanto usufrui dos avanços da Química, como sofre de suas consequências como muito bem nos lembrava o educador brasileiro Paulo Freire reconhecido internacionalmente pelas suas ideias de educação para a liberdade.

A celebração do AIQ, no início da segunda década do século XXI, é com muita propriedade registrada pela ONU, pois a vida de todos os cidadãos e todas as cidadãs de nosso planeta tem uma enorme dependência em relação à Química, a qualtem contribuído para o aumento da expectativa de vida e da riqueza econômica. De acordo com dados estatísticos da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2010), a expectativa de vida da população global em 2008 era de 68 anos. Considerando que em 1950 era de 46 anos e que uma projeção desses dados para 2050 leva a uma estimativa de 75 anos, podemos dizer que o sonho do alquimista medieval de busca do elixir da longa vida vem se concretizando. A indústria química é um dos setores de mais rápido crescimento. Sendo fornecedora de matérias-primas e manufaturados para todos os setores produtivos, da agricultura ao segmento aeroespacial, ela representava em termos globais, em 2009, algo em torno de 4,8% do PIB mundial (Wongtschowski, 2011). Isso demonstra que o sonho do alquimista de produzir ouro também vem se concretizando com a Química que tem gerado riquezas em diversos países.

A dependência da Química em nossas vidas faz com que ela seja essencial na formação da cidadania. Essa dependência vai, desde a utilização diária de produtos químicos, até as inúmeras influências e impactos no desenvolvimento dos países, nos problemas referentes à qualidade de vida das pessoas, nos efeitos ambientais das aplicações tecnológicas e nas decisões que os cidadãos precisam tomar.

No presente artigo, são discutidos compromissos que os profissionais da Química e, sobretudo, os professores devem assumir na celebração do AIQ em relação à cidadania a partir do contexto global do desenvolvimento tecnológico da Química.

A Química em nossas vidas

Reconhece-se, que a melhora na qualidade de vida no século atual é também atribuída ao desenvolvimento da Química que está presente em vários setores responsáveis pelas mudanças tecnológicas que vivemos.

Pesquisas no desenvolvimento de combustíveis têm contribuído para aumentar a eficiência energética. Na produção de alimentos, a Química tem provocado um aumento da produtividade agrícola, revolução essa que teve um marco com a transformação do gás nitrogênio, em nitrogênio assimilável pelas plantas pelo processo Haber-Bosch, técnica que possibilitou o desenvolvimento de fertilizantes químicos nitrogenados e a mudança na geopolítica dos países produtores de alimentos.

A projeção de aumentar em mais de 60% a expectativa de vida da população global de 1950 a 2050 está diretamente relacionada a contribuições da Química na medicina. O desenvolvimento de técnicas de diagnóstico, de cirurgias, de fármacos e da engenharia biomédica é derivado de vários campos conectados com a Química, como a bioquímica, a biologia molecular e estrutural, a fisiologia celular e a farmacologia. A química medicinal envolve invenção, descoberta, planejamento, identificação, preparação e interpretação do mecanismo de ação molecular de compostos biologicamente ativos. Além da descoberta de moléculas bioativas, esse ramo da Química também incorpora estudos do metabolismo e das relações entre a estrutura química e atividade. Assim a Química tem contribuído, por exemplo, com o desenvolvimento de medidores de glicose; de biossensores para o monitoramento diário; de radioisótopos e emulsões para uso em contrastes na detecção de tumores; de equipamentos de diagnósticos por imagem (raios X, ultrassonografia, tomografia); e de materiais para dispositivos e equipamentos médicos (seringas, bandagens, tecidos esterilizados, instrumentos cirúrgicos, próteses, lentes de contato etc.).

Os avanços da medicina também estão relacionados à produção de fármacos que está associada à química de produtos naturais. Essa é uma área que tem trabalhado na identificação de estruturas químicas de substâncias responsáveis por atividades biológicas como a produção de sensações. Assim têm sido conduzidas investigações sobre carboidratos, terpenos, fragrâncias, alcaloides, flavonoides e tantas outras substâncias encontradas em produtos naturais. Os resultados dessas pesquisas têm produzido novos fármacos, cosméticos e agroquímicos. Outra contribuição da química dos produtos naturais está no estudo da biodiversidade, a qual é caracterizada pela diversidade inesgotável de estruturas micro e macromoleculares, as quais inspiram a síntese orgânica de novas estruturas moleculares.

O desenvolvimento de novos materiais tem sido o alicerce para novas tecnologias com aplicações em todas as áreas. Esse desenvolvimento tecnológico acompanha a história da humanidade, passando, desde a idade da pedra, do bronze e do ferro até o desenvolvimento de materiais ópticos e lasers que revolucionaram a eletrônica moderna. A revolução do uso de novos materiais é marcada na atualidade com o desenvolvimento da nanotecnologia. A partir de recursos de imagem e da manipulação na escala nanométrica, as estruturas dos biominerais começam a ser reveladas. O desenvolvimento de nanopartículas, nanofios, nanotubos e nanofilmes tem produzido aditivos de performance, sensores, transportadores e catalisadores, por meio de suas propriedades ópticas, magnéticas, biológicas e plasmônicas.

Novos materiais têm sido empregados como tecidos inteligentes que secam mais rápido, protegem de raios solares, impedem o desenvolvimento de bactérias que produzem suor e ainda regulam a variação de temperatura. Eles estão provocando a mesma revolução que os polímeros produziram na década de 1940 com a utilização de nylon na fabricação de meias, paraquedas, coletes etc. e na aplicação de vestuários das fibras sintéticas, como a lycra, a viscose e o poliéster. Hoje os novos materiais estão sendo utilizados no mundo esportivo por meio da confecção de bolas, redes, calçados, asa-delta veleiros etc.

A revolução da indústria eletrônica com o processo de miniaturização ocorreu com o desenvolvimento de transistores, de baterias, de placas com materiais semicondutores, como silício e germânio. As pesquisas de polímeros propiciaram o desenvolvimento de materiais leves e mais seguros, que contribuíram, por exemplo, para os automóveis serem cada vez mais rápidos e mais eficientes no consumo de combustíveis. Ainda como fruto dessas pesquisas pode-se citar a produção de telas de cristal (LCD), de plasma de filtro de cor, com camadas de alinhamento polimérico.

A Química tem contribuído ainda no desenvolvimento de técnicas para reduzir o impacto ambiental da ação humana. Isso tem ocorrido com o desenvolvimento de fontes alternativas de energia, como os biocombustíveis. Dados de Wongtschowski (1999) demonstram que aos poucos as indústrias químicas tem se tornado menos poluentes, aderindo a programas de proteção ambiental. Nesse sentido, o desenvolvimento de pesquisas em Química Ambiental com aplicação dos princípios da Química Verde de redução de átomos e eficiência energética tem sido fundamental.

Os riscos tecnológicos da Química

Se avanços existem na geração de problemas ambientais derivados das indústrias químicas, pode-se dizer que isso estar muito mais associado às pressões populares e à legislação ambiental do que a uma consciência ambiental. Como aponta Wongtschowski (1999), as grandes indústrias multinacionais têm adotado uma política de transferência de suas instalações para países com menos rigor ambiental, sem adotar medidas de diminuição dos riscos ambientais.

Assim podemos dizer que apesar de a Química ter contribuído de forma significativa para o aumento da qualidade de vida e ter gerado empregos e desenvolvimento econômico, o modelo de desenvolvimento tecnológico mundial em um processo de globalização vem aumentando a concentração de renda e a desigualdade social, conforme demonstra (Santos, 2005a). Em artigo da Revista Química Nova apresentamos dados sobre as desigualdades sociais presentes na atualidade (Santos, 2006). A nossa leitura sobre essas desigualdades tem sido na mesma direção de Boaventura de Sousa Santos (Santos, 2005a) de que o modelo atual de desenvolvimento que tem priorizado o capital em relação às necessidades humanas produziu um processo acelerado de degradação ambiental, a ocorrência de novas doenças e a morte de milhares de pessoas.

A Química aparece nesse contexto, na maioria das vezes, como vilã, sendo poucas vezes lembrada pela população em geral como a responsável pelos avanços que tem produzido. Isso justifica a preocupação dos químicos em celebrar o AIQ, ressaltando as suas contribuições para a sociedade. Contudo, por outro lado, quando pensamos na formação da cidadania, temos a tarefa central de repensar os caminhos do desenvolvimento científico e tecnológico, para não ficarmos na visão ingênua, determinista do modelo linear de progresso científico que considera que o desenvolvimento da Química tem trazido incondicionalmente o desenvolvimento social como é apontado por García, Cerezo e López (1996).

De certa forma, a população hoje tem concepções conflituosas que precisam ser clarificadas. O grande impacto do desenvolvimento científico e tecnológico no século passado gerou nas pessoas o mito de uma confiança cega na ciência e na tecnologia que traria a esperança de uma vida melhor. Ocorre que, por outro lado, esse desenvolvimento ocasionou sérios problemas ambientais que contribuíram para a construção de uma imagem de visão temerária em relação à Química.

Grandes acidentes propagados pela mídia que envolveu a morte de milhares de pessoas contribuíram para essa visão temerária da Química. Um exemplo foi a contaminação por mercúrio da Baía de Minamata, no Japão, provocada por indústrias de fertilizantes na década de 1950, que teve registro de mais de mil óbitos dentre mais de doze mil pessoas contaminadas. Outro exemplo, ocorrido na Itália, em 1976, em Seveso, foi o vazamento acidental de indústria de herbicida de dioxina, que provocou a evacuação de centenas de habitantes da localidade. Outro grande acidente foi o vazamento de isocianato de metila, em 1984, em Bophal na Índia, que matou 2.800 pessoas e deixou aproximadamente 200.000 feridos. O incêndio na fábrica da Sandoz, na Suíça, em 1986, produziu nuvens tóxicas que ameaçaram quatrocentas mil pessoas. A água usada para apagar o incêndio dissolveu e arrastou para o rio Reno 30 toneladas de produtos químicos, principalmente agrotóxicos, matando a população aquática do rio em uma grande extensão, incluindo países vizinhos. Ainda em 1986, o acidente nuclear de Chernobyl obrigou a evacuação de 135 mil pessoas da cidade, provocou a morte de 4.000 pessoas, a maioria vítima de câncer, e contaminou 75% da Europa.

Acidentes dessa magnitude, que marcaram o final do século passado, bem como milhares de outros que ocorreram em comunidades locais, por meio de vazamento de gases e efluentes em rios continuam a ser notícia diária em todo o mundo no presente século. O vazamento de petróleo no Golfo do México em 2010 e o acidente da usina nuclear de Fukushima são exemplos de riscos tecnológicos que continuamos enfrentando em nosso dia a dia. Nesse sentido, entendemos que não só os avanços da Química devam ser considerados na celebração do AIQ, mas também os riscos e as desigualdades produzidas pelo modelo de desenvolvimento econômico, os quais são temas fundamentais a serem incluídos na formação do cidadão.

Educação científica para a cidadania

Conforme discute Santos (2005b), cidadania é um conceito polissêmico cujos diferentes significados estão relacionados a sistemas políticos construídos em contextos históricos diferentes. Assim se tem, por exemplo, concepções de cidadania liberal, republicana, neoliberal (Santos, 2005b). Dessas diferentes concepções, temos destacados alguns pontos chaves que são centrais para o ensino de Química, os quais se relacionam à participação e a valores (Santos e Schnetzler, 2010).

Em uma concepção mais moderna de cidadania ela está vinculada ao conceito de democracia e à participação do indivíduo na sociedade (Santos e Schnetzler, 2010). Assim, entendemos que o ensino de ciências contribuirá para a formação da cidadania na medida em que favorecer a participação dos alunos na vida comunitária. Para isso, é preciso desenvolver a participação dos estudantes para que eles se engajem nas decisões da cidade. É assim que concebemos uma educação para cidadania como educação para tomada de decisão, o que implica na necessidade de desenvolver a faculdade de julgar.

Segundo Canivez (1991), existem dois tipos de julgamento: o crítico e o político. O crítico fundamenta-se em critérios estabelecidos universalmente como o julgamento jurídico (Estado de Direito) e o moral (Direitos Humanos), enquanto o político fundamenta-se em critérios que visam a ajustar os interesses particulares aos interesses gerais, por meio da discussão da pluralidade de ideias (Canivez, 1991). O cidadão precisa ter um mínimo de conhecimento do sistema jurídico, dos princípios e leis que fixam seus direitos e deveres, e distinguir os casos em que se aplicam. Isso implica que no ensino de Química tenhamos de fornecer informações básicas que contribuam para os alunos fazerem julgamentos críticos com base no conhecimento estabelecido. Da mesma forma, entendemos que temos de promover debates sobre as diferentes forças de poder que perpassam o mundo tecnológico da Química, para desenvolver no aluno o julgamento político cujo encaminhamento de soluções depende de discussões de diferentes pontos de vista.

Assim entendemos que para o desenvolvimento da capacidade de tomada de decisão, há necessidade de preparar o educando para o debate. Em outras palavras, temos dito que a educação para a cidadania é, fundamentalmente, uma educação para a discussão (Santos e Schnetzler, 2010). Para desenvolver a faculdade de julgamento, o professor precisa trazer problemas e estimular o debate sobre diferentes tipos de soluções.

Entendemos ainda, conforme discute Demo (1988) que a participação é um processo de conquista, que é desenvolvido pelo próprio sujeito; ou seja, é, em realidade, um processo de autopromoção. Portanto, a participação não pode ser entendida como dádiva, como concessão, como algo já preexistente. Isso significa que a participação precisa ser desenvolvida na escola, pois não é a simples concessão de um diploma de escolarização que vai garantir a efetiva participação na sociedade.

Outro ponto que temos discutido a partir dos conceitos de cidadania refere-se aos valores. A participação dos cidadãos implica em assumir um compromisso de cooperação e corresponsabilidade social (Santos e Schnetzler, 2010). Assim defendemos que a educação em Química deve, também, desenvolver no indivíduo o interesse pelos assuntos sociais vinculados à Química, de forma que ele assuma uma postura comprometida em buscar posicionamentos sobre o enfrentamento dos problemas ambientais e sociais vinculados às aplicações da Química na sociedade.

Essa discussão de valores passa pela reflexão sobre os valores predominantes em nossa sociedade que reforça um modelo de exclusão. Como discute Ferreira (1993), na sociedade capitalista, se amesquinham a solidariedade, a fraternidade e a reciprocidade. A ajuda ao próximo deixa de ser desinteressada, uma vez que deve render dividendos. A reciprocidade transforma-se em troca de favores que podem ser cobrados a qualquer momento. Na corrida da competividade de quem consegue acumular mais, desaparece a fraternidade. No mundo globalizado, caracterizado pela exclusão, os valores predominantes não são os da inclusão.

Nesse sentido, a educação para a cidadania que almejamos, mediante o desenvolvimento de valores éticos não tem o mesmo significado da educação para a obediência às leis estabelecidas pela classe dominante. Os valores que nos referimos são aqueles associados com os interesses da sociedade democrática que idealizamos, fundamentados no principio do respeito à vida e no principio da igualdade. Assim, defendemos que uma educação científica para a cidadania se concretiza na medida em que os conhecimentos científicos veiculados estejam em favor das necessidades humanas e não da dominação imposta pelos sistemas econômicos e políticos.

A educação científica com enfoque CTS

O movimento de educação científica tem recebido diferentes slogans de acordo com o contexto sociopolítico e tem aproximações com o movimento Ciência-Tecnologia-Sociedade – CTS no ensino de ciências (ver, e.g.,Aikenhead, 1997; Jenkins, 1997; Laugksch, 2000; Santos, 2007). Essa aproximação é coincidente com a perspectiva de educação para a participação fundamentada em valores éticos e no princípio da igualdade social que defendemos anteriormente, na medida em que a educação CTS propicia a reflexão crítica sobre as inter-relações ciência-tecnologia-sociedade (ver, e.g.,Aikenhead, 2005; Garritz, 1994; Santos e Mortimer, 2000; Solomon, 1993; Solomon e Aikenhead, 1994; Yager, 1993). Como apontam López e Cerezo (1996), os currículos CTS correspondem a uma integração entre educação científica, tecnológica e social, em que conteúdos científicos e tecnológicos são estudados considerando seus aspectos históricos, éticos, políticos e socioeconômicos visando a formação da cidadania.

Segundo Aikenhead (1997, 2005), o movimento CTS surgiu em um contexto marcado pela crítica ao modelo de desenvolvimento científico e tecnológico, originalmente inspirado no movimento ambientalista e na sociologia da ciência. Walks (1990) comenta que esse movimento teve defensores de teses antitecnocráticas, defendidas por educadores liberais e de esquerda preocupados com questões ambientais e com o temor da guerra nuclear. Deve-se considerar, contudo, como afirma Fourez (1997), que esse movimento não seria contra a tecnologia, mas propriamente contra um modelo particular de desenvolvimento tecnológico.

Essa concepção de educação científica centrada nas relações CTS com perspectivas de analisar modelos de desenvolvimento e suas consequências sociais e ambientais implica em um olhar mais crítico sobre a celebração do AIQ. Isso porque, com o intuito de desmistificar a imagem negativa construída pela mídia sobre a Química na sociedade associada a desastres, podemos por outro lado, repassar para o público uma visão ingênua de que as práticas tecnológicas da Química são a salvação para o destino da humanidade. Nesse sentido, entendemos que o AIQ se constitui em uma boa oportunidade para se resgatar os propósitos da educação CTS.

Como apresentamos no início deste artigo, vivemos em uma sociedade tecnológica mergulhada na Química e dela dependemos em praticamente todas as atividades humanas. Sem dúvida, as práticas dessa ciência central que afetam e determinam o nosso modo de vida não podem ser conduzidas de forma neutra isolada da sociedade, nem os cidadãos podem afastar a Química de suas vidas. Assim é fundamental que ocorra o que Santos (2005b) denominou de “civilizar a ciência” e “cientifizar a cidadania”. Civilizar a Química seria desenvolver uma prática de pesquisa comprometida com a sociedade, enquanto cientifizar a cidadania, ou, parafraseando, “Quimificar” a cidadania, seria desenvolver uma prática cidadã envolvida nas questões relacionadas à Química.

Nesse sentido, seria oportuno neste Ano Internacional da Química incluir temas químicos sociocientíficos tanto em cursos de graduação de Química como em currículo da educação básica para discutir o papel social da Química. Envolver os químicos na compreensão das relações CTS teria o objetivo de civilizar a Química. Já a inclusão no currículo da educação básica teria a função de preparar para a cidadania, de forma que os estudantes possam se envolver em debates públicos relativos a questões sociocientíficas da Química, por meio de uma prática que Irwin (1995) denominou de “Ciência Cidadã”.

Essa educação CTS teria um papel central de propiciar um processo de domínio cultural dentro da sociedade tecnológica, em que a linguagem científica se constitua como ferramenta cultural na compreensão da cultura moderna. Com esse domínio espera-se que os cidadãos possam participar cada vez mais de decisões de ciência e tecnologia, que, em geral, são decididas basicamente por técnicos. Entendemos que essa participação cívica não se restringe a simples escolha de tecnologias, mas em uma visão crítica do processo tecnológico, o que implica abordagem crítica das relações CTS.

Uma perspectiva freireana de educação CTS

Auler e Delizoicov (2001) têm classificado os currículos com ênfase em CTS em relação às forças de poder presentes nas decisões em ciência e tecnologia (CT) em duas visões: a reducionista e a ampliada. A visão reducionista é marcada por reproduzir uma ênfase na concepção da neutralidade das decisões em CT, de forma a contribuir para a consolidação dos mitos da superioridade do modelo de decisões tecnocráticas, da perspectiva salvacionista da CT e do determinismo tecnológico (Auler e Delizoicov, 2001). Já a visão ampliada busca a compreensão das interações entre CTS, na perspectiva de problematização desses mitos e da compreensão da existência de construções subjacentes à produção do conhecimento científico-tecnológico, o que em outras palavras significa uma análise e crítica ao atual modelo de desenvolvimento econômico (Auler e Delizoicov, 2001).

Essa visão ampliada de CTS se caracteriza como uma visão crítica, no sentido de considerar relações sociopolíticas e forças de poder presentes em CT, em uma perspectiva de transformação para um novo modelo de desenvolvimento. Ao contrário, a visão reducionista da educação científica CTS reproduz um modelo ideológico de submissão a um sistema tecnológico já estabelecido. Uma proposta de visão crítica de CTS que tem sido considerada é da perspectiva que incorpora os ideais de Paulo Freire (ver, e.g.,Auler, 2003; Santos, 2008 e 2009; Teixeira, 2003).

A proposta de educação de Paulo Freire (1970) teve um caráter revolucionário que levou em conta o contexto histórico da sociedade brasileira, em sua época, caracterizada pela opressão. Segundo ele, essa sociedade estava em transição e tinha todas as características de uma sociedade fechada em um contexto cultural de alienação. Para essa sociedade, era necessário um processo educacional como prática da liberdade que tivesse como meta a mudança do contexto de alienação gerado pela opressão (Freire, 1967).

Para Freire (1970), seria a práxis dialógica que permitiria o desvelamento, pelos oprimidos, da sua situação de opressão. Segundo Freire (1970), palavra não é mero pensamento expresso, é práxis, ação transformadora no mundo e do mundo. Diálogo não é o que impõe, o que maneja, mas o que desvela a realidade. Daí a importância da problematização. Para Freire (1970), problematizar é exercer uma análise crítica sobre a realidade problema a partir da reflexão das contradições básicas da situação existencial.

Assim, educação científica para a cidadania deveria levar em consideração o contexto da sociedade tecnológica atual. Esse contexto é caracterizado de forma geral por um processo de dominação dos sistemas tecnológicos marcado por valores da dominação, do poder, da exploração que estão acima das condições humanas e que impõem valores culturais e oferecem riscos para a vida humana. Isso significa levar em conta a situação de opressão em que vivemos, a qual é, no caso dos países do chamado terceiro mundo, caracterizado por um processo de exclusão social em que apenas uma parcela da população usufrui seus benefícios, enquanto a maioria fica na marginalidade. Isso implica uma educação científica em que valores e atitudes sejam discutidos, na perspectiva de os alunos compreenderem o mundo tecnológico em que estão inseridos e poderem transformá-lo com base nos valores humanos.

Ao pensar em uma proposta de CTS na perspectiva freireana, busca-se uma educação que não se restrinja ao uso e não uso de aparatos tecnológicos ou ao seu bom e mau uso. Além disso, propõe-se uma educação capaz de pensar nas possibilidades humanas e nos seus valores, em fim em uma educação centrada na condição existencial. Nesse sentido, essa educação incorpora ao currículo discussões de valores e reflexões críticas que possibilitem desvelar a condição humana. Não se trata de uma educação contra o uso da tecnologia e nem para o seu uso, mas educação de reflexão sobre a condição existencial no mundo frente aos desafios postos pela ciência e tecnologia.

Conclusões

O desenvolvimento tecnológico da Química tanto tem trazido inúmeras contribuições para o aumento da qualidade de vida, como tem aumentado o risco e as desigualdades sociais. Assim também tem sido a educação, tanto tem reproduzido processos de dominação com tem tido um papel de transformação social.

Uma educação científica comprometida com a cidadania precisa considerar esses aspectos. Os cidadãos precisam compreender os avanços e as potencialidades da Química para incentivar investimentos na área e para saberem lidar com os seus avanços. Ao mesmo tempo, eles precisam ter uma visão crítica de repensar o seu desenvolvimento de forma a diminuir riscos e a buscar redução das desigualdades.

A inclusão na agenda da AIQ de temas sociocientíficos com uma perspectiva de análise crítica das relações CTS é uma forma de engajarmos os cidadãos com discussões em que o conhecimento químico se torna fundamental no debate. Isso se torna mais relevante no contexto da América Latina, quando se considera os efeitos da degradação ambiental é mais forte em populações mais pobres.

Acreditamos que essa análise crítica, considerando questões socioambientais possibilitará a conjunção dos ideais tanto da AIQ, quanto da celebração da Década da Educação e do Desenvolvimento Sustentável. Nesse sentido, temos que incluir na agenda da AIQ metas relativas ao desenvolvimento de atitudes comprometidas com a educação ambiental, como muito bem discutem Vilches e Gil Pérez (2011).

Nesse sentido, os químicos têm um papel muito importante tanto no esforço de mostrar a necessidade dos empresários mudarem a sua atitude em relação ao meio ambiente, como o de demonstrar para a população os resultados positivos que temos alcançado e como podem se engajar no uso adequado dos produtos químicos. Cabe aos químicos, enquanto cidadãos do planeta, atitudes engajadas em associações que venham a exigir investimentos governamentais e ações empresariais para que o conhecimento químico seja posto em benefício da construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Para isso a necessidade de ação política sobre os modelos vigentes.

Toda a história da humanidade, da sua evolução cientifica e tecnológica, tem mostrado, que não basta apenas o conhecimento técnico especifico para que se possa construir um novo modelo de vida social. Se nos limitarmos a celebrarmos os benefícios da Química, sem uma análise crítica de suas implicações sociais, certamente pouco contribuiremos para a formação de cidadãos informados que façam com que a Química transforme o contexto global de dominação da sociedade moderna.

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