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Páginas 203-209 (julio 2014)
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Automedicação no Ensino de Química: uma proposta interdisciplinar para o Ensino Médio
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Graziela Piccoli Richetti
, José de Pinho Alves Filho**
* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Científca e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
** Professor Doutor do Departamento de Física, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil
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Abstract (The self-medication in Chemistry education: an interdisciplinary proposal to secondary school)

Self-medication is a common practice for the Brazilian population, and because of its consequences, it has been treated as a public health problem in Brazil, since it is linked to the various reasons why a person decides to take a drug to reduce symptoms or cure a disease. For chemistry education, it is a social issue that can assist the process of teaching and learning, in addition to forming the student for citizenship. In this work we present three proposals for linking the contents of chemistry with self-medication social issue, based on the methodological proposal of Scientific and Technological Literacy, called Interdisciplinary Island of Rationality. Each proposal presents possibilities for contextualization and association between contents of chemistry and social, economic, cultural and political aspects, as well as other school subjects. In this perspective, the approach of formal content issues with those related to self-medication provides the construction of ideas about the benefits and harms caused by this practice.

Keywords:
self-medication
chemistry education
interdisciplinary
scientific and technological literacy
Resumen (La automedicación en la enseñanza de la química: una propuesta interdisciplinar para la enseñanza secundaria)

La automedicación es una práctica habitual para la población brasileña y debido a sus consecuencias negativas es considerada como un problema de salud pública, relacionado con las diferentes causas socioculturales que llevan a las personas a consumir medicinas para curarse o aliviar los síntomas de una enfermedad. Para la enseñanza de la química la automedicación es un tema de carácter social que puede favorecer el proceso de enseñanza y aprendizaje, además de contribuir en la formación para la ciudadanía. En este trabajo presentamos tres propuestas de articulación de los contenidos de química con el tema de la automedicación, basados en una propuesta metodológica de Alfabetización Científica y Tecnológica, denominada Islote de Racionalidad. Cada propuesta introduce bastantes posibilidades de contextualización y asociación de los contenidos de química con aspectos sociales, económicos, culturales y políticos, así como con otras asignaturas escolares. La aproximación de los contenidos formales con cuestiones relacionadas con la automedicación desde esta perspectiva, proporciona la construcción de ideas propias sobre los beneficios y perjuicios ocasionados por esta práctica.

Palabras clave:
automedicación
enseñanza de la química
alfabetización científica y tecnológica
Texto completo
Introdução

Incorporar temas contemporâneos às práticas pedagógicas de professores de Química tem sido uma tendência no ensino escolar brasileiro. A maioria dos estudantes do Ensino Médio1 demonstra falta de interesse pelos conteúdos de Química, o que pode ser atribuído à dificuldade de associá-los às situações cotidianas. Chassot (1993, p.41) considera ser “preciso um ensino que desenvolva no aluno a capacidade de ‘ver’ a Química que ocorre nas múltiplas situações reais, que se apresentam modificadas a cada momento”. Essa perspectiva vai ao encontro dos pressupostos da Alfabetização Científica e Tecnológica (ACT), que sugere a articulação dos conhecimentos científicos e do cotidiano por meio de trabalhos interdisciplinares (Fourez, 1997). Na ACT, os conteúdos científicos devem ser ministrados obedecendo a critérios de significação e utilidade para os estudantes. Dessa forma, seria possível despertar o interesse dos estudantes pelo conhecimento científico, através da resolução de situações -problema, relacionadas ao seu cotidiano.

O consumo de medicamentos sem orientação médica —a automedicação— é um hábito no cotidiano dos brasileiros e, nas últimas décadas, tem aumentado significativamente. É um tema social controverso, de grande repercussão nos veículos de comunicação. Por essas razões, decidimos investigar o contexto da automedicação para buscar elementos de problematização que possam ser articulados aos conteúdos de Química ensinados na escola. Realizamos um estudo bibliográfico, na literatura específica da área da Saúde, para compreender porque pesquisadores brasileiros afirmam que a automedicação é um problema de Saúde Pública. Também analisamos documentos curriculares brasileiros, que oferecem orientações metodológicas e pedagógicas ao professor para abordar esse tema em suas aulas (Richetti, 2008). Os pressupostos do Ensino de Química para a formação cidadã e a ACT foram articulados para o contexto educacional de nosso interesse. Ao final, sugerimos três propostas organizadoras de Ilhas Interdisciplinares de Racionalidade (IIR).

Investigando o terreno: um panorama da automedicação

No Brasil, a automedicação é uma prática que acompanha gerações, através do uso de receitas caseiras, medicamentos veiculados nas propagandas de televisão ou indicação de pessoas próximas. Apesar de ser uma decisão pessoal, se automedicar ou sugerir medicação para terceiros é uma prática que envolve riscos e beneficios. A World Health Organization (1998) reconhece que o uso de medicamentos sem orientação médica é um ato inevitável e, dentro de certos limites, aceita e estimula esta prática, por compreendê-la como um direito do cidadão, quando este conhece o sintoma que lhe acomete e foi previamente diagnosticado por um médico. Ao adquirir um medicamento sem orientação médica, mas que conhece seus efeitos e implicações, o indivíduo estaria praticando a automedicação responsável.

Os problemas surgem quando as pessoas desconhecem os efeitos colaterais provocados pelos medicamentos consumidos. Para Lopes (2001), qualquer prática de automedicação é efetuada com incerteza quanto aos resultados, implicando riscos, conscientes ou não, constituindo uma opção entre: i) o risco de consumir o medicamento para tratar determinado problema de saúde, podendo não resultar o efeito esperado ou agravar os sintomas e ii) o risco de não consumir o medicamento, podendo resultar no aumento dos sintomas e/ou complicar o problema de saúde (Lopes, 2001).

O consumo de medicamentos é um problema de Saúde Pública no Brasil, não apenas pela deficiência do sistema público de saúde, mas por ser a expressão social da hegemonia da mercadoria (Lefèvre, 1991). Para o consumidor leigo, no desejo de adquirir saúde, o medicamento seria a possibilidade mágica que a Ciência, através da Tecnologia, disponibiliza e representa a saúde em pequenos frascos e/ou alguns comprimidos (Richetti, 2008; Richetti e Pinho-Alves, 2009a).

Os estudos desenvolvidos por Galduróz et al., (2005) e Gandolfi e Andrade (2006) revelaram que as causas atribuídas à automedicação estão relacionadas a aspectos individuais e sociais, por exemplo, suicídio, administração incorreta, dependência, uso excessivo, associação com bebidas alcoólicas, entre outros. Galduróz, et al. (2005) sugerem que o consumo de drogas e medicamentos seja tratado de maneira global, envolvendo todos os segmentos da sociedade. Ressaltam a necessidade de capacitar profissionais, entre eles os da Educação, para que tenham condições de trabalhar essa temática com os estudantes.

É oportuno destacar a influência da propaganda de medicamentos, que intensifica o discurso de vender saúde na forma de comprimidos e xaropes. Os Parâmetros Curriculares Nacionais2 para o Ensino Médio (PCNEM) chamam a atenção quanto às mensagens transmitidas nessas propagandas, destinadas a estimular o consumo de medicamentos, que prometem alívio rápido dos sintomas, não importando o comprometimento da saúde (Brasil, 1997; 1999). Os PCNEM sugerem que os professores abordem o tema destacando a importância dos hábitos individuais e coletivos, bem como cuidados com o próprio corpo.

Em torno do simples ato de tomar um medicamento existem diversos aspectos envolvidos, por exemplo: a) familiares e sociais: a mãe medica seu filho sem consultar um médico; hábitos de consumo de medicamentos; b) culturais: diferença entre natural e artificial; quanto maior a dose, melhor é o efeito do medicamento; c) econômicos: sistema de saúde pública deficiente; superfaturamento das indústrias farmacêuticas; d) políticos: prioridades do sistema público de saúde; e) éticos: uso abusivo; tentativa de suicídio; aborto e homicídio; e f) científicos: conteúdos das Ciências relacionados. Embora nossa ideia esteja direcionada para o Ensino Médio brasileiro, cabe destacar que em outros países a automedicação também gera problemas de saúde pública e está presente no cotidiano de muitas famílias (WHO, 1998). Os grupos de aspectos ora citados contém outras situações que não foram listadas, e que também podem ser elencadas com a colaboração dos estudantes.

A química cidadã e a Alfabetização Científica e Tecnológica

Na maioria das escolas brasileiras, os conteúdos de Química são ensinados de forma desvinculada da realidade dos estudantes, na qual o professor utiliza uma linguagem muito abstrata e específica. Isso se deve, principalmente, à fragmentação das disciplinas que compõem o currículo do Ensino Médio e dos métodos de avaliação que preconizam a obtenção de notas, que por sua vez determinarão a aprovação ou não do estudante para prosseguir nos estudos. Essa forma de ensinar e avaliar exige que os estudantes decorem conceitos para conseguirem boas notas e serem aprovados ao final do ano letivo. Evidentemente, as consequências desse método são negativas. Após alguns dias, os estudantes esquecem os conceitos decorados, visto que são pouco signifcativos para serem apreendidos. Talvez a maior consequência negativa seja a resistência em querer aprender, compreender e conviver com a Química. Os conhecimentos prévios dos es-tudantes podem difcultar a construção do conhecimento científco, pois foram adquiridos ao longo de sua vivência e estariam acomodados (Driver, et al., 1999). Ao serem apre-sentados aos conteúdos científcos, através das disciplinas escolares, os estudantes passam por mudanças em sua visão de mundo. Alguns começam a entender que o conhecimen-to do senso comum não é o único que pode explicar situa-ções reais. Os mais resistentes sentirão difculdades no aprendizado.

Os PCNEM sugerem que a integração entre os diferentes conhecimentos ofereça possibilidades para uma aprendizagem motivadora (Brasil, 1999). Além de aprender os conhecimentos químicos e percebê-los em seu cotidiano, muitas vezes o estudante precisa resolver problemas e, para isso, deve dispor de informações básicas, auxiliando-o a compreender melhor os problemas da sua comunidade. Pressupondo que o principal objetivo da educação básica brasileira seja preparar o indivíduo para atuar como cidadão (Brasil, 1997; 1999), as novas propostas, didáticas e curriculares, devem considerar esse objetivo, pois a “conquista da cidadania ocorre por meio da atuação do indivíduo nas diferentes instituições3 que compõem a sociedade” (Santos e Schnetzler, 2010, p. 31). O desenvolvimento individual da cidadania constitui um processo de conquistas, concebidas pelas ações cotidianas do indivíduo na sociedade, cabendo à escola apenas uma parte desse processo.

Santos e Schnetzler (2010) recomendam a abordagem de temas sociais para o desenvolvimento das habilidades essenciais do cidadão, como a participação e a capacidade de tomar decisões. Os temas sociais oferecem possibilidades de abordagens mais dinâmicas dos conteúdos e evidenciam a inter-relação entre a informação química e o contexto social. Assim, o estudante teria condições de pensar sobre determinadas questões, interpretá-las e propor uma resposta fundamentada e mais adequada ao problema apresentado. Valores de solidariedade e compromisso social podem ser desenvolvidos por meio do Ensino de Química, mostrando aos estudantes que esses conhecimentos podem ser de domínio público e “se a Química está presente na vida do cidadão, poderemos ensiná-lo a participar da sociedade ativamente”, através do conhecimento dos problemas sociais relacionados à Química como Ciência (Santos e Schnetzler, 2010, p. 98). Liso, Guadix e Torres (2002, p. 259) ressaltam “a importância de carregar de realismo o currículo de Química e utilizar a Química cotidiana como eixo central, para projetar um currículo em que prevaleçam as relações entre o conhecimento cotidiano do aluno e o conhecimento científico”.

Para colocar em prática os objetivos do Ensino de Química visando a formação cidadã (EQ-C), Santos e Schnetzler (2010) apresentam sugestões de procedimentos de ensino: a) experimentação no Ensino de Química; e b) estratégias que desenvolvam a participação ou a capacidade de tomada de decisão: fóruns e debates, estudo de caso, análise de dados, desempenho de papéis, projetos, pesquisas de campo e ações comunitárias. Ensinar conteúdos de Química contextualizados com temas relacionados à Ciência e à Tecnologia oportuniza ao estudante compreender os fenômenos químicos diretamente relacionados à sua vida, o que pode incentivá-lo a buscar novos conhecimentos (Milaré, Richetti e Pinho-Alves, 2009b). É evidente que o conhecimento do senso comum é importante, mas, na maioria das vezes, precisa de um olhar crítico, por não se constituir um fim em si mesmo e nem ser suficiente para explicar situações do cotidiano (Milaré, 2008; Richetti, 2008; Milaré, Richetti & Pinho-Alves, 2009b). Esta assertiva encontra respaldo em Fourez (1997; 2002). Para esse autor, considera-se um conhecimento contextualizado quando sofreu alterações para ser utilizado num contexto diferente do qual foi inicialmente elaborado.

O movimento da Alfabetização Científica (AC), oriundo dos anos 50 do século passado, tornou-se um rótulo que abrange diversos significados, dados por autores em contextos variados (Milaré, 2008). Igualmente, surgiram outras vertentes, por exemplo, o movimento Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) e a Alfabetização Científica e Tecnológica (ACT), proposta por Fourez em 1995. Fourez (1997) explica que essa expressão é uma metáfora que “designa um tipo de saberes, de capacidades ou de competências que, em nosso mundo técnico-científico, corresponderá ao que foi a alfabetização no século passado” (Fourez, 1997, p.15). A ACT seria parte da formação para os estudantes, futuros cidadãos, que pode mostrar as complexas relações entre a Ciência e a Sociedade, para que compreendam que a Ciência faz parte da nossa cultura e nosso dia-a-dia.

Fourez (1997) estabelece três objetivos pedagógicos para um indivíduo ser considerado alfabetizado científica e tecnologicamente: i) autonomia, permite negociar suas decisões diante das situações de mundo; ii) comunicação, capacidade de encontrar a maneira mais adequada para expor seu ponto de vista e iii) domínio do conhecimento, concede segurança na tomada de decisões. Esses atributos estão firmados na negociação, termo usado para designar alguém que não recebe passivamente as normas ou informações, mas que sabe negociar com elas, isto é, sabe ganhar ou perder na argumentação (Fourez, 1997).

A proposta metodológica das Ilhas Interdisciplinares de Racionalidade (IIR), sugerida por Fourez (1997), preconiza a mobilização dos conhecimentos das diversas disciplinas e dos saberes da vida cotidiana para a construção de uma representação ou modelização, apropriada a um contexto e projeto específicos, visando à compreensão de uma situação -problema. O modelo proposto é discutível e modificado de acordo com as especificidades do projeto, construído pelos estudantes e mediado pelo professor. Proporciona aos participantes uma discussão racional sobre a situação estudada e o produto fnal deve ser “eficaz num contexto preciso, em função de um projeto determinado e na intenção de destinatários que a utilizarão” (Fourez, 2002, p.72). Para a construção de uma IIR Fourez (1997) sugere algumas etapas4 que, embora se apresentem de forma linear para esquematizar o trabalho, não precisam ser seguidas rigorosamente, pois existe a possibilidade de suprimir ou agrupar algumas delas.

Após definir o tema, o professor deve realizar planejar previamente a IIR, buscando: a) reorientar as ações que deve tomar, diante de situações que não estavam previstas e b) cuidar para que o desenvolvimento não seja apenas responder a situação-problema, o que direcionaria a IIR para uma perspectiva disciplinar. Essa etapa serve como ponto de referência, quando houver a necessidade de modificar caminhos durante a construção da IIR. Pesquisadores brasileiros que já aplicaram IIR em sala de aula (Pinheiro et al., 2000; Schmitz, 2004; Pinheiro e Pinho-Alves, 2005), a denominam esta etapa de “etapa zero.

Compartilhamos a afirmação de Liso, Guadix e Torres (2002, p.259) de que “a Química cotidiana pode ajudar na concretização dos objetivos” da ACT “sempre que o seu tratamento tenha esse propósito”. Nesse contexto, verificamos semelhanças entre ACT e EQ-C: (a) habilitar os estudantes para se relacionarem melhor com o mundo em que vivem e (b) realizar atividades para que os estudantes alcancem níveis mais elevados de conhecimento científico, desde que seus conhecimentos prévios sejam valorizados. Liso, Guadix e Torres (2002) salientam que os fenômenos cotidianos abordados no Ensino de Química devem ser utilizados no planejamento de situações-problema, para que façam emergir a teoria, a fim de aplicá-la no dia-a-dia dos estudantes. O EQ-C e a ACT podem ser inspiradores para o desenvolvimento de trabalhos interdisciplinares, e a automedicação é um tema social apropriado para ensinar conteúdos de Química interdisciplinarmente na ótica da ACT.

A automedicação e a metodologia da IIR: juntando as peças do quebra-cabeça

Para nortear a construção da IIR, sugerimos a noção popular de automedicação, uma definição na qual não há um concei-to científico que a determine, mas remete a uma “ideia vaga”, em que o indivíduo “sabe do que ‘se’ fala”, embora seu conhecimento esteja limitado à compreensão do senso comum (Fourez, 1995, p. 228). Assim, nos referimos à noção de automedicação como hábito cultural, adotado pelo indivíduo, e que não pertence à cultura científica. A partir do currículo da disciplina de Química do Ensino Médio, elaboramos três propostas organizadoras da etapa zero, que serão apresentadas a seguir nas figuras 1, 2 e 3.

Figura 1.

Planejamento da etapa zero da IIR para a primeira série do Ensino Médio.

(0.32MB).
Figura 2.

Planejamento da etapa zero da IIR para a segunda série do Ensino Médio.

(0.36MB).
Figura 3.

Planejamento da etapa zero da IIR para a terceira série do Ensino Médio.

(0.34MB).

Em cada proposta, buscamos possibilidades de articulação entre conteúdos de Química, conteúdos de outras disciplinas escolares e aspectos relacionados à automedicação, identificados no estudo bibliográfico. Esses aspectos, por nós denominados elementos de problematização, favorecem a aproximação entre conteúdos científicos e questões do cotidiano, visto que suscitam a abordagem de questões inerentes às relações CTS, ou seja, as contribuições da ciência e da tecnologia e seus efeitos e suas implicações na sociedade.

As três propostas pressupõem o trabalho interdisciplinar. Utilizamos diferentes formas e cores, conectadas por setas, que podem ser explorados pelo professor de diferentes formas, seja para o planejamento da IIR, questionar os estudantes sobre o tema ou direcionar as etapas para um determinado enfoque, de acordo com as escolhas dos estudantes. Cada proposta foi organizada considerando a automedicação como tema principal e medicamentos, intoxicações e tipos de medicamentos como temas secundários, por envolverem uma grande quantidade de aspectos que podem ser tratados com os estudantes.

Na figura 1, organizamos conteúdos de Química Geral e Físico-Química pertencentes ao currículo da primeira série. As questões relacionadas à tecnologia podem ser trabalhadas com a discussão sobre a composição e efeitos dos medicamentos no organismo. Isso pode ser associado aos conteúdos de substâncias e misturas, unidades de medida e ligações Químicas. Os conteúdos de Biologia estão muito presentes nessa proposta, o que pode sugerir uma consulta a um especialista, por exemplo, o professor de Biologia. A contribuição da História pode oferecer um melhor entendimento sobre o surgimento dos medicamentos, a alquimia e o curandeirismo. Outras áreas do conhecimento podem ser inseridas convidando um especialista para conversar com os estudantes ou da própria pesquisa desenvolvida por eles.

A seguir, a organização da figura 2 favorece a contextualização dos conteúdos de Química com questões sobre o uso abusivo de medicamentos, interações entre medicamentos e álcool, anabolizantes, entre outros. Desta forma, o estudante compreenderá a necessidade de ações individuais e coletivas, para saber comunicar-se com seus colegas e outras pessoas a esse respeito. Na figura 2, a automedicação está diretamente relacionada aos conteúdos “Soluções” e “Cinética Química”. Os temas secundários têm grande afinidade com esses conteúdos, pois as intoxicações podem ser originadas pelo consumo excessivo de medicamentos, pela associação entre diferentes medicamentos ou pela mistura com bebidas alcoólicas. Outros aspectos geradores de discussão podem ser relacionados às tentativas de suicídio, uso abusivo, acidentes domésticos, aborto e influência da propaganda de medicamentos. Nessa perspectiva, a presença de um Psicólogo pode ser significativa para os estudantes esclarecerem suas dúvidas. O professor de Português pode trabalhar com a interpretação das bulas dos medicamentos, estabelecendo-se a possibilidade do estudo de diferentes tipos de linguagem utilizados pela sociedade. A Matemática tem especial participação na Química ensinada na segunda série, presente nos conteúdos de Soluções, Cinética Química, Termoquímica e Reações de Óxido-redução. Sugerimos o trabalho com gráficos que forneçam dados sobre os medicamentos mais consumidos por automedicação. Permeando toda essa proposta, a disciplina de Física permite abordar os elementos de problematização relacionados à Cinética Química.

A seguir, a figura 3 mostra o predomínio de assuntos da Química Orgânica na terceira série do Ensino Médio. Cabe destacar que muitos medicamentos têm em sua composição uma ou mais substâncias orgânicas. Por esse motivo, as relações entre os elementos de problematização e Funções Orgânicas, Compostos orgânicos e Isomeria são mais evidentes na figura 3. Em particular, este diagrama permite um melhor desenvolvimento dos objetivos pedagógicos da ACT. A Biologia pode tratar dos aspectos bioquímicos, relacionados à ação dos medicamentos, mostrando a importância do cuidado com a própria saúde, através da prevenção e tratamento de doenças. Por sua vez, a História contribuirá com a discussão dos hábitos culturais, nas diferentes sociedades ao longo dos tempos, curandeirismo, origem dos medicamentos, evolução da indústria farmacêutica, entre outros. A análise da linguagem utilizada nas propagandas de medicamentos poderá ser feita nas aulas de Português, enquanto a Física abordará os conceitos de energia, calor e temperatura.

Ressaltamos que as figuras 1, 2 e 3 não são mapas conceituais, pois os conteúdos de Química e os elementos de contextualização não foram organizados de forma hierárquica. Isso possibilita ao professor escolher os aspectos serão privilegiados para a construção da IIR. Salientamos que os diagramas apresentados nas figuras 1, 2 e 3 não são definitivos, permitem outros encaminhamentos e, sobretudo, constituem uma possibilidade proficua para a abordagem de temas sociais nas aulas de Química.

Nossa sugestão é desenvolver a temática da automedicação de maneira centralizada, por série, ou de forma sequencial, iniciando em uma série e dando continuidade no ano seguinte, através do aprofundamento, ampliação ou redirecionamento do tema. Os elementos problematizadores podem conduzir interessantes discussões no âmbito da dimensão social do conhecimento. Também sugerimos que o professor apresente o tema aos estudantes por meio de uma notícia de revista, jornal ou Internet. Após a leitura, propõese a seguinte situação-problema: “Quais cuidados devem ser tomados antes de consumir um medicamento sem orientação médica?”. Por ser bem abrangente, é preciso delimitá-la, para que se torne executável. E isso deverá ser negociado com os estudantes. Por exemplo, o professor pode delimitar o destinatário (para quem se responderá a situação-problema) e os estudantes decidirem o tipo de doença e a forma de apresentação do produto final (um documentário, folders informativos, blog na Internet). Para avaliá-los, o professor pode lançar mão de diversas estratégias, atribuindo pesos diferenciados para as avaliações, deixando para o produto fnal uma pontuação maior. Cabe acrescentar que os rumos de uma IIR podem se modificar durante o percurso, devido às escolhas dos estudantes por determinados temas em detrimento de outros, razão pela qual sugerimos neste trabalho apenas a etapa zero.

Considerações finais

Neste trabalho buscamos subsídios para justificar a abordagem do tema automedicação na disciplina de Química do Ensino Médio. Pesquisadores brasileiros (Silva e Giugliani, 2004; Galduróz et al., 2005) recomendam a realização de campanhas educativas que orientem a população sobre o uso racional de medicamentos. Por meio das disciplinas escolares e outras atividades, a escola pode contribuir para o esclarecimento dos beneficios e riscos deste hábito. A abordagem deste tema, com os jovens do Brasil e de outros países, pode gerar interessantes discussões sobre questões sociais de interesse individual e coletivo.

As três propostas organizadoras de IIR oportunizam o desenvolvimento dos objetivos pedagógicos para a ACT dos estudantes. Abordar questões relacionadas à automedicação amplia a capacidade de comunicação, através do domínio dos conhecimentos adquiridos durante o projeto da IIR. Contribui para a construção da autonomia, fomentando no estudante a segurança devida na tomada de decisões e na negociação diante das situações do cotidiano. Valores éticos e morais também são contemplados nas etapas da IIR. Por fim, permite a realização de abordagens multidisciplinares, devido à transversalidade do tema.

Entendemos que não basta ensinar conteúdos científicos porque fazem parte do currículo oficial. É preciso associá-los aos temas da atualidade, a fim de que façam sentido para os estudantes. Nossa proposta é para o professor “montar seu quebra-cabeça”, propiciando aos estudantes melhor compreensão dos aspectos sociais, culturais, científicos e tecnológicos relacionados à automedicação, contribuindo assim para a formação cidadã.

Agradecimentos

Os autores agradecem à CAPES pelo apoio financeiro, concedido por meio de uma bolsa de mestrado, no período entre março de 2007 e fevereiro de 2008.

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No Brasil, o Ensino Médio compreende três anos de escolaridade e corresponde ao Ensino Secundário dos outros países, ministrado a estudantes com faixa etária entre 14 e 18 anos.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) são documentos elaborados pelo Ministério da Educação Brasileiro que apresentam diretrizes para os professores do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. De forma geral, orientam para uma abordagem de conhecimentos necessários para que estudantes cresçam como cidadãos conscientes, participativos, refexivos e autônomos para atuarem na sociedade.

Essas instituições envolvem família, clubes, associações, sindicatos, partidos políticos, etc.

Além de Fourez (1997), indicamos os trabalhos de Schmitz (2004) e Pinheiro, et al., (2000), que contém o detalhamento de cada etapa da IIR elaborada e desenvolvida pelos referidos autores.

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