O presente trabalho descreve a elaboração e aplicação de uma história em quadrinhos (HQ) voltada ao tema radioatividade, almejando avaliar o modo de leitura dos estudantes, bem como a aceitação da HQ. O intuito da HQ foi problematizar tanto a importância da Química quanto conhecimentos sobre o acidente radioativo ocorrido em Goiânia/GO/Brasil em 1987. Para a avaliação da HQ foi realizada sua leitura seguida de atividades escritas, sendo esta conduzida com 71 estudantes de uma escola da rede pública de Porto Velho/RO/Brasil. Os resultados indicaram boa aceitação da história pelos estudantes. A partir das atividades escritas foi possível sublinhar aspectos que contribuíram para a aceitação da HQ e que podem ser levados em consideração no seu emprego em sala de aula, como a presença de diálogos e imagens, o contexto, além de informações químicas.
This paper describes the development and implementation of a comic related to radioactivity, in order to assess the reading mode as well as its acceptance by students. The purpose of this comic was to problematize chemistry role in the society as well as the knowledge about the radioactive accident occurred in Goiania (GO, Brazil) in 1987. The comic evaluation was achieved by means of reading followed by writing activities performed with 71 students from a public school in Porto Velho (RO, Brazil). The results indicated good acceptance of the comic by students. From the writing activities it was possible to highlight aspects that have contributed to the acceptance of the comic by students which can be taken into account for use in classroom, like dialogues and images, the context, besides chemistry information.
A leitura é entendida como fundamental no desenvolvimento crítico e social do indivíduo. Porém, seu ensino nas escolas brasileiras tem sido objeto de preocupação, conforme resultados de algumas avaliações. Dados do SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica) (Brasil, 2006) mostram que 42.1% dos estudantes em fase final da educação básica encontram-se no estágio crítico ou muito crítico de leitura. Resultados do PISA (Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes) na área de leitura colocam o Brasil em 55.° lugar de 65 países na última pesquisa. Para que efetivamente se construa uma sociedade de leitores críticos, vislumbrando suas contribuições para uma mudança da atual conjuntura social, é necessário engendrar projetos de incentivo à leitura e à escrita (Zilberman, 1999) e que o professor seja também um leitor, inserindo atividades de leitura em sua prática.
Um gênero que está ganhando espaço na educação em ciências são as histórias em quadrinhos (HQs). Nas décadas de 50 e 60, as HQs eram vistas como uma ameaça à intelectualidade dos jovens (Pizarro, 2000). Entretanto, com linguagem singela e informativa passaram a ter aceitação entre variados públicos. Para Luyten (2011), os quadrinhos são um meio de expressão com um código ideológico gráfico que não precisa de uma chave para interpretação. Assim, podem atingir diferentes faixas etárias e vêm sendo utilizadas na educação em ciências em diferentes contextos.
Gonçalves e Machado (2005), por exemplo, analisaram a presença de conceitos geológicos e paleontológicos nas histórias da Turma da Mônica, propondo alternativas e cuidados para o uso didático. No campo da física, Caruso, Carvalho e Silveira (2005) apresentam um projeto multidisciplinar que, de modo geral, consiste na produção de quadrinhos abrangendo não só os alunos, mas professores e futuros professores, fomentando a busca do conhecimento e aprimorando a criatividade dos envolvidos. Em outro trabalho (Caruso, Carvalho e Silveira, 2002) propõem diversas formas do uso de HQs, dentre as quais: introdução aos temas abordados no livro didático, criação de quadrinhos pelos estudantes, leitura da história seguida de experimentos condizentes ao assunto, exercícios e problemas a partir dos quadrinhos, identificação e correção de problemas conceituais em HQs, criação de texto pelos alunos.
Testoni e Abib (2004) desenvolveram um trabalho com alunos do último ano do ensino fundamental, trazendo à discussão a primeira Lei de Newton. Após análise prévia da HQ foi estabelecida uma discussão e realizada a leitura de um texto complementar. Os alunos confeccionaram outras HQs sobre o mesmo tema. Santos, Lima e Silva Filho (2010) empregaram HQs na Educação de Jovens e Adultos (EJA). A história foi criada pelo professor e apresentada para introduzir o assunto de densidade. Os alunos leram, interpretaram e dramatizaram a história, demonstrando grande aceitação. Além de estimular o aluno à prática da leitura, os quadrinhos podem ser também um meio para o desenvolvimento cognitivo e social.
Nessa direção, o presente trabalho descreve a elaboração de uma história em quadrinhos sobre o tema radioatividade, com sua posterior inserção em sala de aula, almejando problematizar a importância do estudo da química e investigar o modo de leitura empreendido pelos estudantes, além de incentivar o hábito de leitura.
MetodologiaA elaboração da história em quadrinhosPor se tratar de um acontecimento de grande impacto ocorrido no Brasil, o tema escolhido para a elaboração da HQ foi o acidente radioativo com o Césio-137, que em 1987 fez muitas vítimas na cidade de Goiânia/GO. Para a elaboração da história, os pesquisadores realizaram uma consulta a reportagens da época sobre o caso, disponíveis em jornais, telejornais e revistas. Após o conhecimento do incidente, foi elaborado, também pelos pesquisadores, o roteiro para história. Na História, as personagens encontram-se inicialmente em uma sala de aula (comum à maioria das escolas de nível médio brasileiro), onde a professora de química propõe um trabalho. Em princípio, as personagens principais (compostas por três mulheres) desvalorizaram a atividade assim como a própria disciplina de Química (fig. 1). Porém, ao fazerem a busca de informações acerca do acidente radioativo, modificam suas ideias sobre o papel da Química na sociedade. A figura 1 apresenta alguns quadros da história.
Após a elaboração do roteiro foi conduzida a montagem dos quadrinhos a partir do site bitstrips.com. O site permite ao usuário a construção de quadrinhos online, disponibilizando personagens e cenários pré-elaborados, assim como a criação de novas personagens e novos cenários, sendo possível a mudança dos cenários prévios. Pode-se considerar como ponto negativo a disposição apenas do idioma inglês, que não possui acentos em sua ortografia. Para inserção dos sinais ortográficos foi utilizado o programa de edição de imagens Photoshop®.
Aplicação e avaliação da história em quadrinhosA pesquisa foi desenvolvida em uma escola estadual da cidade de Porto Velho/RO/Brasil, sendo conduzida com alunos de duas turmas do 1.° ano (51 alunos) e uma turma do 3.° ano (20 alunos) do Ensino Médio. O objetivo de investigar a leitura de estudantes de primeiro e terceiro ano foi avaliar possíveis diferenças na interação com o texto. Inicialmente, a leitura foi efetuada de forma individual e em silêncio. Em seguida, responderam algumas questões por escrito, sendo duas de múltipla-escolha acompanhadas de justificativas e quatro questões discursivas (tabela 1).
Questionário para avaliação dos alunos
1. | Você já leu histórias em quadrinhos em aulas? Em qual ocasião? E nas aulas de química? |
2. | Sobre a história em quadrinhos que leu, você achou: () nada interessante () pouco interessante () razoavelmente interessante () interessante () muito interessante. Justifique apontando porque você gostou ou não da leitura |
3. | Em sua opinião, a leitura da história foi: () muito difícil () difícil () razoavelmente fácil () fácil () muito fácil. O que facilitou ou dificultou a leitura? |
4. | Em sua opinião, você compreendeu a história? Justifique com pelo menos dois argumentos. |
5. | Em sua opinião, quais as principais ideias da história em quadrinhos? Cite pelo menos duas. Justifique porque estas seriam as principais ideias. |
6. | Escolha algum trecho (um ou dois) da história que você tenha achado interessante. Aponte porque achou este trecho interessante (caso não tenha achado nenhum trecho interessante justifique o porquê) |
As questões de múltipla-escolha tiveram por objetivo um levantamento quantitativo da opinião dos leitores em relação ao texto. Já as questões discursivas visaram a uma análise qualitativa da interação leitor-texto e dos principais aspectos captados. No que se refere às análises das questões de múltipla-escolha, estas foram contadas, sendo os resultados apresentados de forma descritiva. Com isso, obteve-se um quadro geral, em termos de quantidade, sobre a opinião dos leitores em relação ao texto. Já para as questões abertas, após a leitura inicial das justificativas, foram identificadas unidades de significação nas respostas, sendo dispostas em categorias, que representam o agrupamento de unidades de significação em comum. Por último, procedeu-se nova leitura, no intuito de identificar novas unidades de significado e/ou reagrupamento das respostas em novas categorias ou subcategorias.
Ao solicitar as atividades escritas, porém mantendo-se um grau de abertura para a leitura, não se restringiu à busca por compreensões únicas, ou seja, por respostas a perguntas formuladas previamente. No entanto, ao escrever sobre o lido, o sujeito pode reformular os sentidos produzidos ou engendrar novas compreensões. As respostas dos estudantes foram apresentadas no texto entre aspas e itálico e sem qualquer forma de identificação dos sujeitos, uma vez que o objetivo é apresentar as unidades de significação.
Resultados e discussãoOs resultados obtidos acerca da leitura de HQs em sala de aula indicaram a prevalência dessa atividade nas disciplinas relacionadas à Língua Portuguesa (Português, 30 respostas; Literatura, 3 respostas; aula de leitura, 2 respostas). Outras disciplinas foram mencionadas como História (1 resposta), Artes (2 respostas) e Filosofia (1 resposta). Dois estudantes deixaram as respostas em branco e outros 13 sublinharam que a leitura foi por entretenimento e fora da sala de aula; 17 estudantes mencionaram que nunca leram HQs em aula.
A disciplina de português é, usualmente, o bojo das atividades de leitura. É nela que as crianças têm o primeiro contato com livros e textos, incluindo HQs, sendo seu uso recomendado por documentos oficiais brasileiros (Brasil, 2006). No decorrer da vida estudantil, essa realidade parece não se modificar, prevalecendo o contato com a leitura nessa disciplina. Tais resultados não são de estranheza quando se leva em consideração o papel desempenhado pela leitura na formação de professores das áreas das Ciências Naturais. Andrade e Martins (2006), em estudo com professores de Química, Física e Biologia, destacam que durante a formação inicial estes não tiveram espaço para reflexões acerca da leitura na aprendizagem e no ensino de Ciências. Por sua vez, Teixeira Júnior e Silva (2007), em levantamento realizado com estudantes de Química, verificaram um hábito de leitura pouco sólido durante a formação inicial.
Sobre a leitura da história produzida (questão 2), a maioria dos estudantes, independente da série, a considerou interessante (24 estudantes do 1.° ano e 8 do 3.° ano) ou muito interessante (21 estudantes do 1.° ano e 9 do 3.° ano), resultados provavelmente associados à novidade da atividade. Sete estudantes assinalaram a leitura como razoavelmente interessante (5 estudantes do 1.° ano e 2 do 3.° ano) e dois como pouco interessante (um em cada série). Nenhuma resposta foi marcada para a opção nada interessante. Ao se analisar as justificativas apresentadas, os resultados se diferenciaram conforme a série dos estudantes (tabela 2).
No caso específico dos alunos do 1.° ano, as justificativas foram semelhantes entre aqueles que consideraram a história muito interessante, interessante e razoavelmente interessante. Vários (17) destacaram a química e a importância de seu estudo para o cotidiano:
“Pois a história demonstra o quanto a química é importante e vai ser na nossa vida”.
“Mostra a importância da química e desperta a curiosidade até pra quem lê a história”.
“Gostei porque é uma maneira de incentivar o aluno a ver com outros olhos a matéria”.
Outros (11) enfatizaram os conceitos sobre radiação presentes no decorrer da história:
“Gostei porque ensina um pouco mais sobre radioatividade”.
“Porque ela conta o que significa radioatividade, muitas pessoas não sabem”.
Divulgar ciência faz parte do rol de estratégias para a formação crítica da sociedade, haja vista a possibilidade de construção de opiniões para que os indivíduos possam exercer ativamente sua cidadania. Para Caruso, Carvalho e Silveira (2002), t orn a -se u rge n t e a cria çã o e o desenvolvimento de material didático com a intenção de dinamizar as aulas, motivando os alunos a participarem ativamente na construção do conhecimento. Os quadrinhos podem ser uma opção nesse sentido, informando e introduzindo temas. Algumas justificativas caminharam nesse direcionamento, quando apontaram o risco de acidentes em função do desconhecimento:
“Gostei porque eles estão dando a alerta pra quem ainda não sabe do risco”.
“Eu gostei porque fala de um assunto que não é muito comentado nas escolas e também porque ajuda os alunos a tomarem cuidado com o que pegam por aí”.
Também houve alunos que expuseram em suas justificativas uma posição de contrariedade em função da disciplina:
“Porque química não é minha matéria preferida, então eu não gostei”.
“Não gosto de química, mas acho interessante esse tipos de informação”.
Diferentemente do 1.° ano, os estudantes do 3.° ano não apresentaram justificativas a respeito da necessidade de se estudar química. A maior parte das justificativas é pautada pelas informações oferecidas sobre a radioatividade.
“Gostei porque alerta as pessoas das poluições (…) e ficamos mais atentos”.
“Porque eles falam sobre o perigo que a radioatividade faz. No caso tem gente que não tem conhecimento”.
Como apresentado na tabela 2, a radioatividade (categoria conceitos) também foi destacada pelos alunos do 3.° ano como um tema interessante e informativo:
“Gostei de saber as formas do qual a radiação se espalha e qual a origem dela”.
“Interessante porque passou informação sobre os danos que a radiação pode causar aos seres humanos”.
Também é importante sublinhar duas justificativas que destacaram a leitura em si. Provavelmente, a pouca presença das HQs em aulas de química, bem como suas características textuais fizeram com que os alunos achassem a leitura dinâmica e divertida.
“A leitura é dinâmica, vemos o nosso dia-a-dia nela, assim fica bem mais interessante”.
“Gostei porque é objetivo, divertido e simples e bem desenvolvido”.
Em relação às dificuldades para a leitura, a maioria dos estudantes opinou que a história em quadrinhos foi de fácil (32) e muito fácil leitura (26). Já nove assinalaram que a leitura da HQ foi razoavelmente fácil. Apenas um estudante considerou a leitura difícil ou muito difícil.
A partir da interpretação das justificativas (tabela 3), é possível inferir que a linguagem das HQs foi um aspecto primordial na facilitação da leitura. “Acho que os ‘esqueminhas’ de desenhos facilita bastante para se ter uma ideia do assunto”. “Por ela ser em quadrinhos, a história ficou mais descontraída”. “Pela linguagem utilizada em gibi”.
A linguagem mais direta pela presença de diálogos, o uso de termos acompanhados das explicações, assim como presença de imagens associadas aos textos são aspectos destacados pelos leitores. Alguns estudos vêm revelando especial coincidência entre as características dos textos lidos, o interesse e a facilidade de leitura. De acordo com Francisco Junior (2013), textos com caráter dialógico despertam em maior grau o interesse dos leitores, além de serem considerados de leitura mais fácil, a despeito da densidade de informações presentes.
Em estudo envolvendo a leitura de um texto didático e de um texto de divulgação científica sobre o mesmo tema, Nigro (2010) acena que este último favoreceu atitudes mais positivas em relação à leitura, como maior velocidade, melhor compreensão imediata e produção de textos escritos mais extensos. O texto de divulgação também apresentou maior dialogicidade, enquanto o texto didático se caracterizou pela voz passiva e presença de termos técnicos (Nigro, 2010). No caso específico dos quadrinhos, Luyten (2011) sublinha que as imagens apoiam o texto e fornecem aos leitores pistas contextuais para o significado da palavra. As imagens atuam como espécie de andaime para o conhecimento do estudante.
Dessa forma, o texto selecionado parece estar intimamente ligado à postura do leitor durante e após a leitura. A dialogicidade da HQs, aliada à presença de imagens e o alerta sobre a importância do conhecimento químico podem estar associados à boa receptividade do texto pelos estudantes. O conhecimento prévio sobre o assunto também foi citado pelos alunos como um dos fatores que ajudou na leitura dos quadrinhos.
“Não foi difícil, o assunto era fácil e eu já tinha uma noção sobre radiação”.
“Facilitou porque eu já tinha lido um pouco sobre o assunto”.
Compreender um texto passa pela ativação do conhecimento prévio, ou seja, todo aquele conhecimento que o leitor possui e que foi adquirido ao longo da vida. É possível afirmar que sem esse conhecimento prévio não há compreensão textual. O conhecimento prévio é de caráter extralinguístico, isto é, não está no material lido, mas sim na memória do leitor, que faz uso de diversos níveis de conhecimento (Kleiman, 2008). Esses níveis de conhecimento, como o linguístico, o textual e o conhecimento de mundo, interagem entre si no momento da leitura. O desconhecimento de palavras, conceitos, estrutura textual etc., promove falhas na compreensão, assim como, por outro lado, o seu conhecimento, facilita a compreensão.
A leitura preconiza a busca, pelo leitor, de informações disponíveis em seus esquemas mentais, ainda que inconscientemente. Em geral, o que é recordado de uma leitura não é o que o texto sinaliza, mas sim as inferências construídas a partir do conhecimento prévio (Kleiman, 2008). O que se espera de um leitor, à medida que este desenvolva sua capacidade crítica de leitura, é que seja capaz de fazer inferências de forma consciente.
No tocante aos alunos que apontaram dificuldade na leitura, as justificativas foram calcadas nos signos gráficos escritos, que em algumas partes dos quadrinhos estavam pequenos:
“As letras estavam pequenas demais, mas o texto estava ótimo”.
“O que facilita são os bonequinhos. O que dificulta é que as letras são pequenas”.
Em relação à quarta questão (“em sua opinião, você compreendeu a história?”), nenhum discente considerou como não tendo compreendido a história e 4 alunos deixaram a resposta em branco. No entanto, quando solicitados a argumentar sobre a compreensão, algumas respostas demonstraram certa desconexão ou desacordo com informações apresentadas no texto, como uma confusão acerca do papel da caixa de chumbo no descarte de material radioativo.
“Sim, pois quando pensamos que só por causa do nome difícil ‘radioatividade’ não chegamos a uma resposta. Pois com a causa desses chumbinhos muitas pessoas morreram”.
“Sim, entendi que o chumbo é um material radioativo e que pode contaminar diversas pessoas”.
Tendo em vista as categorias depreendidas a partir das justificativas (tabela 4), foi destacada entre os alunos do 1.° ano a justificativa sobre a importância da química, presente na maioria dos argumentos. Em geral os estudantes explicaram com suas palavras o que entenderam do texto, ou ainda a função da atividade aplicada.
“Sim, a história é de crianças que tem que fazer um trabalho, então elas acham um fato que aconteceu no Brasil, e em seguida aprendem a importância que a química tem na vida”.
“Sim, a ideia da história é mostrar que a química é importante não só na escola, mas para o cotidiano das pessoas”.
Somente 3 dos estudantes do 3.° ano citaram a importância da química. Tal diferença entre os alunos já concluintes de Ensino Médio e aqueles que cursavam o primeiro ano pode ser fruto do próprio ensino de química ao longo desse período. Não é novidade que o ensino da química, historicamente, tem se caracterizado pelo uso excessivo de regras, nomenclaturas e cálculos fora de contexto em detrimento à compreensão da realidade por meio da química. Um dos intuitos da história em quadrinho elaborada foi, justamente, apresentar uma situação real em que o conhecimento químico estivesse envolvido e poderia ter feito diferença no desfecho. Sob esse prisma, a história em quadrinhos chamou mais atenção dos alunos do 1.° ano acerca da importância do conhecimento químico, pois eles estão iniciando seu estudo da disciplina.
Os conceitos presentes no texto foram destacados por 10 alunos do 1.° ano e por 7 do 3.° ano para justificarem a compreensão do texto, o que corresponde a 20 e 35% dos alunos, respectivamente.
“Compreendi, pois, só assim aprendemos mais sobre radioatividade”.
“Compreendi que a radioatividade pode matar muita gente”.
O fato de terem destacado aspectos conceituais revela atenção dispensada para os conceitos durante a leitura. As informações disponibilizadas no texto também aparecem nas justificativas. Outros três discentes alegaram já conhecer o assunto (conceito conhecido), por isso compreenderam a história.
Em se tratando das distinções, é importante destacar mais uma vez as diferenças entre os estudantes do 1.° e 3.° anos com relação à importância da química. Pode-se constatar que a maioria dos alunos do 1.° ano utiliza a importância da química como seus principais argumentos da compreensão textual. Os alunos do 3.° ano, por sua vez, justificam terem compreendido a história apresentando em sua maioria argumentos que destacam os conceitos, podendo indicar que para esses alunos a história referia-se exclusivamente a um conteúdo adicional.
Uma forma de se atingir com maior propriedade a produção de inferências e sentidos a partir da leitura é estabelecendo objetivos e propósitos claros. A capacidade de estabelecer objetivos, segundo Kleiman (2008), permite lembrar mais e melhor daquilo que foi lido. Quando os estudantes devem refletir sobre os motivos que os levaram a compreender o texto, explicitam características a partir das quais é possível inferir sobre a abrangência da leitura. Para decidir se entenderam um texto e avaliar sua compreensão, leitores competentes empregam diversas estratégias ou critérios, como o léxico, a coerência interna e externa, a coesão estrutural e proposicional e a suficiência informativa (Maturano, Mazzitelli e Macías, 2003), apresentados resumidamente a seguir.
Léxico: o leitor verifica se compreende o significado das palavras; coerência externa: verifica se as ideias do texto são verdadeiras ou compatíveis com aquilo que já sabe; coesão proposicional: analisa se as proposições do texto são adequadas ao contexto local; coesão estrutural: avalia se as ideias do texto são tematicamente compatíveis; coerência interna: considera a consistência lógica dos argumentos expressos no texto; suficiência informativa: verifica se o texto contém informações necessárias para atingir determinado objetivo.
O critério léxico é uma justificativa bastante comum em outras pesquisas, empregadas em especial por leitores menos profícuos (Maturano, Mazzitelli e Macías, 2003; Francisco Junior, 2010). Tal critério não foi apresentado para argumentar a respeito da compreensão textual no caso aqui estudado. Isso revela que, embora a linguagem das HQs tenha sido um fator determinante para os estudantes se interessarem pela leitura, outros aspectos associados ao conteúdo e à estrutura textual foram mais proeminentes para a compreensão textual.
Grande parte das justificativas, por exemplo, se concentrou na importância da química para a vida das pessoas, fato que está relacionado à coerência interna do texto. No início do texto, uma das personagens se indaga: “Mãe, pra que química, no que ela vai ser útil pra mim?”. Ao desenrolar da história, com o estudo do tema, a personagem vai se convencendo: “E a gente ainda reclamando de química”, “agora vamos prestar mais atenção às aulas”. Esta é a consistência lógica dos argumentos, pensada premeditadamente durante a elaboração da história e que parece ter influenciado a leitura, conforme algumas justificativas apresentadas (a ideia da história é mostrar que a química é importante não só na escola, mas para o cotidiano das pessoas).
Ao mesmo tempo, outras justificativas (“a história é de crianças que tem que fazer um trabalho, então elas acham um fato que aconteceu no Brasil, e em seguida aprendem a importância que a química tem na vida”) acenam para o uso de mais de um tipo de critério, no caso coesão proposicional (“fato que aconteceu no Brasil”), coesão estrutural e coerência interna (“a história é de crianças que tem que fazer um trabalho [de química]… em seguida aprendem a importância que a química tem”). Quanto maior for a compreensão textual, maior é a variedade de critérios que o leitor emprega para refletir metacognitivamente sobre sua leitura. De tal maneira, pode-se entender que o texto tenha influenciado tais resultados. A coerência externa também pode ser notada quando estudantes justificam alegando já conhecer o assunto ou quando destacam a presença de conceitos e informações.
Considerações finaisUm dos focos da presente pesquisa recaiu sobre a aceitação da HQ produzida. A partir dos resultados pode-se afirmar que sua recepção foi algo destacável entre os estudantes. Para tanto, a linguagem diferenciada, com imagens e diálogos, bem como a presença de um tema socialmente relevante sem deixar conceitos químicos em segundo plano parecem ser fundamentais. Especialmente para os alunos do 1.° ano, notou-se grande ênfase à importância social da química. Sendo esta a série inicial do Ensino Médio, a introdução de HQs atuaria positivamente na relação do estudante com as ciências. Contudo, a aceitação da HQ é apenas o primeiro passo. Pesquisas cuja finalidade seja investigar o papel da leitura das HQs na aprendizagem e desenvolvimento crítico do discente ainda são escassas e seriam relevantes para suportar e direcionar a sua utilização mais consistente em sala de aula.
Assim, especial atenção deve ser dada aos modos de leitura. As estratégias de leitura empregadas permitiram analisar a interação dos estudantes com o texto, sinalizando aspectos que chamaram a atenção. Não obstante, em função de serem variadas, não permitiram avaliar aspectos da significação conceitual das temáticas abordadas na HQ. Sobre isso, é importante destacar que diferentes estudantes leem a mesma HQ diferentemente e com variados focos. Entretanto, dentro da sala de aula seu uso exige intencionalidade pedagógica para se evitar o puro entretenimento. É preciso, portanto, equacionar a diretividade e a idiossincrasia da leitura, equilibrando o prazer da leitura de uma HQ com a finalidade pedagógica que subsidia seu uso.