“Uma homenagem”, assim Antônio Carlos Robert Moraes define o livro Território na Geografia de Milton Santos. Dedicado à memória deste importante geógrafo brasileiro nascido em Brotas de Macaúba (Bahia), a obra em questão tem como objectivo analisar o conceito de território percorrendo o universo de livros assinados por Milton Santos.
Antonio Carlos Robert Moraes é professor titular do departamento de Geografia da Universidade de São Paulo e pôde, desde a sua formação na pós-graduação, conviver com o autor que agora homenageia. Bacharel em Geografia (1977) e em Ciências Sociais (1979), Moraes é autor de livros importantes na História do Pensamento Geográfico (Moraes, 2002; 2003) e também sobre a formação territorial brasileira (Moraes, 2000; 2011), entre outras temáticas, como o meio ambiente e a gestão do território.
Neste livro, Robert Moraes nos fornece uma análise precisa da produção bibliográfica de Milton Santos, tendo como eixo central aquele que é um dos conceitos fundamentais da Ciência Geográfica. Assim, o livro nos permite imergir com segurança nas tendências e influências teórico-metodológicas que permearam a obra do autor reverenciado, reconhecendo sua complexidade e eclectismo, evidenciando ainda o estilo textual particular, além de ensaiar contextualizar as obras com a precisão que apenas um ex-aluno e ex-colega de departamento poderia ser capaz. É nesta interface entre o conhecimento interpessoal e a capacidade analítica que consideramos ser este livro uma contribuição fundamental à teoria da Geografia de Milton Santos, autor falecido em 2001, mas cujo legado prático e teórico permanece vivo.
Para além de uma breve introdução e de um também breve epílogo onde se sintetiza “um uso do conceito de território de Milton Santos”, o livro encontra-se dividido em duas seções principais: a primeira intitula-se “O uso do conceito de território na teoria da geografia de Milton Santos: uma leitura ‘internalista” e alguns comentários metodológicos”, enquanto a segunda trata “‘O retorno do território’: um comentário crítico e algumas ilações contextuais”.
Na primeira seção, Robert Moraes opta pela análise de conteúdo, tendo como recurso a frequência com que o termo território aparece em cada obra. De modo geral, a partir desta forma de tratamento fica evidente que a preocupação com o conceito é crescente na geografia de Milton Santos, sendo raramente citado nas primeiras obras e ganhando volume nos livros que seguem. À contagem do termo —e, também, de terminologias correlatas, como territorialidade e configuração territorial—, soma-se a análise interpretativa. A organização das obras de modo cronológico, segunda data de publicação, junto à combinação desses modos de análise, contagem e interpretação directa, atribuem um carácter sistemático e mesmo didáctico a redacção do livro, facilitando a apreciação do leitor.
Todavia, a percepção das obras não se limita à análise estrita do conceito, sendo comuns inserções nas quais Robert Moraes se propõe identificar as principais influências teórico-metodológicas adoptadas por Milton Santos recorrendo, por vezes, ao mesmo recurso de identificação e contagem dos principais autores citados ou referidos por Santos. Essa forma de tratamento do material bibliográfico mostra-se bastante eficaz no que diz respeito a contextualização e identificação de momentos diferenciados e de rupturas, permitindo uma categorização das distintas metodologias de trabalho do autor homenageado, sempre enfatizando o crescente ecletismo.
Assim, a partir da leitura das primeiras obras de Milton Santos, Robert de Moraes percebe a sua clara filiação na geografia regional francesa. Todavia, nota também que esta mesma filiação será criticada e reelaborada nas obras posteriores da década de 1960, momento no qual emergem influências diversas, como a fenomenologia de Jean Baudrillard, o existencialismo de Paul Sartre e, em termos metodológicos, o estruturalismo de origem marxista que, além do próprio Marx, referencia autores da Escola de Frankfurt e a influência central de Herbert Marcuse, tal como se torna patente no livro O espaço do cidadão (1987). Em fase posterior, soma-se a esse escopo a influência da teoria dos sistemas, fundamental na própria concepção de espaço geográfico proposta por Milton Santos. O reconhecimento dessas influências evidencia a crescente rejeição de qualquer tipo de ortodoxia metodológica, seja ela de origem neopositivista ou, mesmo, afim à rigidez economicista advinda do marxismo. Tal postura surge ilustrada depoimento verbal que Santos produziu para o filme Encontro com Milton Santos: O mundo Global visto do lado de cá (2006), no qual se declara marxizante como modo de fugir a ortodoxia dos “ismos”.
No que tange ao aspecto central do livro ora resenhado, isto é, a apreciação do conceito de território, Robert de Moraes demonstra cabalmente que o termo ganha relevo crescente à medida que a dimensão política é incorporada à teoria geográfica de Milton Santos, reafirmando a cada novo livro o papel fundamental do território e do Estado como forma de compreender e resistir ao processo de globalização, o qual, em sua leitura, assume uma feição perversa.
Robert Moraes mostra também que o conceito de território ganha maior complexidade na obra de Milton Santos, passando da simples associação a uma unidade político-administrativa, como em A Cidade no Países Subdesenvolvidos (1965), para uma categoria de análise que se aproxima do conceito de espaço geográfico, cuja importância é facilmente percebida no esforço de interpretação empírica do Brasil a partir do seu território, presente no livro O Brasil. Território e Sociedade no Início do Século XXI (2001), escrito por Milton Santos e Maria Laura Silveira.
Na referida segunda seção principal deste livro, Robert Moraes analisa o texto “O retorno do território” publicado por Milton Santos na coletânia Território, Globalização e Fragmentação (1994). É curioso perceber que este texto é considerado por Moraes como estranho ao conjunto de obras de Milton Santos. Isso porque, no seu entender, apresenta uma aproximação à concepção pós-moderna da transnacionalização do território, o que, por sua vez, vai de encontro a concepção desenvolvida por Milton Santos em livros publicados na mesma época, como é o caso de Por uma economia da política da cidade (1994a) e Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e Meio Técnico-Científico-Informacional (1994b), nos quais destaca a escala nacional ainda como dominante.
A leitura da obra miltoniana que Robert Moraes promove neste livro não se reduz, no entanto, à análise das respectivas obras tendo como eixo central o conceito de território. Incitando abertamente a continuidade de releituras à obra de Milton Santos, Robert Moraes propõe a associação entre a actividade política e as ideias do autor estudado como forma de compreender sociologicamente sua produção.
Encerrando o tributo, tal como Robert Moraes define o próprio livro, a última seção/Epílogo apresenta uma aplicação prática dos conceitos de territòrio, isto é, a materialidade do espaço e o conceito de “territòrio usado”, tal como definidos nas últimas obras de Milton Santos, com destaque ao Manifesto do LABOPLAN-USP, distribuído no Encontro Nacional da Associação dos Geógrafos Brasileiros (agb) ocorrido em Florianópolis em 2000. Admitindo o seu próprio ceticismo inicial diante da necessidade teórica do conceito de “território usado”, Robert Moraes revela que sua compreensão se mostrou adequada, mediante a aplicação concreta a um problema de pesquisa com o qual se deparava, nomeadamente a diferenciação entre o território concebido formalmente (ou seja, correspondente ao exercício da soberania, por meio de tratados e acordos, em sintonia com uma leitura geopolítica tradicional) e, por outro lado, aquele efetivamente ocupado (habitat do colonizador).
O exemplo supracitado, mais do que ilustrar a utilidade, a precisão absoluta ou inamovível do conceito, serve para evidenciar que o legado de Milton Santos deve ser compreendido com criatividade, permitindo a renovação metodológica na própria teoria da geografia; em outras palavras, deve ser reconhecida e estimulada a inquietação teórica típica de Milton Santos.