A doença de Machado-Joseph (DMJ)/ataxia espinocerebelosa do tipo 3 (SCA3) é uma doença neurodegenerativa autossómica dominante de manifestação tardia. A presença da doença faz-se acompanhar, frequentemente, por alterações psicológicas assinaláveis, sobretudo nas fases avançadas. O presente trabalho teve como principal objetivo explorar os níveis de bem-estar psicológico, satisfação familiar, aceitação e autocompaixão numa amostra de 40 portadores da mutação da DMJ, dos quais 11 eram assintomáticos e 29 sintomáticos, e avaliar de que forma esses constructos estariam interrelacionados. Para tal, aplicou-se um protocolo que incluiu uma entrevista semiestruturadas e vários instrumentos de avaliação psicológica, e que obedeceu a um desenho retrospetivo. Nos portadores assintomáticos a aceitação associa-se com a satisfação familiar, bem-estar psicológico e autocompaixão. No caso dos portadores sintomáticos, a aceitação revela-se associada à autocompaixão e bem-estar psicológico Os resultados indicam, ainda, que os níveis de aceitação, bem-estar psicológico, satisfação familiar e autocompaixão diminuem com o aparecimento da sintomatologia. Estes dados sugerem a pertinência de desenvolver planos psicoterapêuticos que incrementem a aceitação, não apenas quando a sintomatologia se instala, mas também numa perspetiva preventiva, através de intervenções psicológicas que integrem a prática de mindfulness e compaixão, dirigidas ao indivíduo, bem como à sua família e rede social.
Machado-Joseph disease (MJD), also known as spinocerebellar ataxia type 3 (SCA3), is an autosomal dominant neurodegenerative disorder of late onset. The presence of the disease is frequently accompanied by important psychological alterations, especially in more advanced stages of the disease. The present work aims to examine the levels of acceptance, psychological well-being, family satisfaction, and self-compassion in a sample of 40 carriers of the MJD mutation, of whom 11 were asymptomatic and 29 symptomatic, as well as how these constructs were interconnected. A protocol was used that followed a retrospective design, and included a semi-structured interview and various psychological assessment scales. In asymptomatic carriers, acceptance was associated with family satisfaction, psychological well-being, and self-compassion. In the case of symptomatic carriers, acceptance proved to be significantly associated with self-compassion and psychological well-being. The results indicate that the levels of acceptance, psychological well-being, family satisfaction, and self-compassion decrease with the onset of symptoms. Data supports the importance of developing psychotherapeutic plans aimed at increasing acceptance, not only upon the appearance of symptoms, but also as a preventive approach, through psychological interventions that integrate the practice of mindfulness and compassion, not only directed at the individuals but also their family and social network.
A doença de Machado Joseph (DMJ), também designada por ataxia espinocerebelosa do tipo 3 (SCA3), é uma doença neurodegenerativa de transmissão autossómica dominante com início tardio que envolve, em graus variáveis, os sistemas cerebeloso, piramidal, extrapiramidal, periférico e oculomotor (Coutinho, 1992). Para além do comprometimento motor, a presença da doença faz-se acompanhar, frequentemente, por alterações psicológicas assinaláveis, sobretudo nas fases avançadas (Flemming e Lopes, 2000), que incluem a sintomatologia depressiva (Silva, Hallak, Marques e Osório, 2013) e ansiosa (Braga-Neto et al., 2012a; Braga-Neto et al., 2012b).
A conceção atual de bem-estar psicológico enfatiza características positivas do desenvolvimento humano (Bradburn, 1969) e é caracterizada com base em 6 componentes distintas: 1) autoaceitação; 2) objetivos de vida; 3) domínio ambiental; 4) crescimento pessoal; 5) relacionamentos interpessoais positivos; e 6) autonomia (Leite, Paúl e Sequeiros, 2002). Para além de se tratar de uma experiência individual, a doença é também uma vivência familiar, com implicações na sua estrutura e processos, bem como ao nível cognitivo-emocional (Góngora, 2004; Miller, McDaniel, Rolland e Feetham, 2006), em que a satisfação familiar é um indicador importante de bem-estar familiar, individual e social (Nave, Jesus, Barraca e Parreira, 2006). O constructo de aceitação define-se como a atitude de abraçar a experiência do momento presente de uma forma ativa, aberta e sem julgar (Hayes e Smith, 2005), e tem sido descrita como decisiva na gestão de emoções dolorosas quando os indivíduos e as suas famílias são confrontados com adversidades (Didonna, 2011). Aceitar pressupõe permitir que as experiências sejam tal como são, a partir do momento em que nos tornamos conscientes delas – tolerando experiências positivas, mas também dolorosas (Germer, Siegel e Fulton, 2005), ao invés de tentativas de modificar a sua frequência ou forma (Hayes, Luoma, Bond, Masuda e Lillis, 2006). O desenvolvimento de uma atitude aceitante tem subjacente a prática de mindfulness, definido como «prestar atenção ao momento presente» (Kabat-Zinn, 1990). Outro conceito relacionado com o de aceitação é o de autocompaixão. De acordo com Neff (2003a,b), define-se como estar aberto ao seu próprio sofrimento, desejando ameniza-lo com bondade; conceptualiza-se de acordo com 3 componentes bipolares fundamentais: a) bondade – representa uma atitude de benevolência para consigo próprio, ao contrário de uma atitude demasiado crítica; b) condição humana – implica um sentido de ligação com a humanidade ao percecionar as próprias experiências dolorosas como uma pequena parte da amplitude da experiência humana, em vez de se considerar como um ser isolado no seu sofrimento; e c) mindfulness – envolve uma atitude de aceitação consciente dos próprios pensamentos e emoções dolorosos, em vez de se sobre-identificar com eles, evitá-los ou negá-los. Sabe-se que a prática de mindfulness é um pré-requisito para incrementar os níveis de autocompaixão (Neff e Germer, 2012). Segundo Germer e Neff (2013), a autocompaixão é relevante quando se consideram as imperfeições pessoais, erros e fracassos, mas também quando nos confrontamos com situações de vida dolorosas que estão fora do nosso controlo. Numa perspetiva evolucionária, Gilbert (2005) postula que o desenvolvimento de uma mente autocompassiva depende da forma como o cérebro humano foi sendo moldado de acordo com experiências de vida, sobretudo vinculativas com os cuidadores. Ambas as conceptualizações salientam a importância de reconhecer e de aceitar o próprio sofrimento. Uma das conclusões mais robustas na literatura é que a autocompaixão se relaciona negativamente com depressão e ansiedade (Neff, 2003a, Neff et al., 2007), e positivamente com uma perspetiva mais flexível dos problemas (Leary, Tate, Allen, Adams e Hancock, 2007), desempenhando um efeito moderador na relação entre acontecimentos de vida com impacto negativo e sintomatologia depressiva (Vieira, 2012).
O estudo de Gonzalez et al. (2012)1 sublinhou a importância de incrementar os níveis de aceitação da condição de portador da DMJ, de forma a minimizar o impacto negativo de um resultado de portador no teste preditivo, uma vez que se prevê que um aumento nos níveis de aceitação se associe a um aumento nos níveis de bem-estar psicológico, satisfação familiar e de autocompaixão. Apesar da relevância da aceitação nas novas abordagens psicoterapêuticas, a sua aplicação no âmbito da patologia crónica é ainda escassa (McCracken e Eccleston, 2005). O presente trabalho propôs-se a explorar, numa amostra de indivíduos portadores assintomáticos e sintomáticos da mutação da DMJ, os níveis de: i) bem-estar psicológico; ii) satisfação familiar; iii) autocompaixão; e iv) aceitação, explorando, ainda, as relações entre aquelas variáveis. A pertinência deste estudo reside na possibilidade de compreender o papel da aceitação enquanto constructo psicológico protetor na DMJ, bem como refletir sobre a necessidade de desenvolver novos planos psicoterapêuticos, de forma a minimizar o impacto negativo da condição de portador assintomático ou sintomático.
Sujeitos e métodosParticipantesFoi conduzido um estudo retrospetivo para uma amostra de 40 sujeitos, residentes na ilha de São Miguel (Açores, Portugal), com confirmação molecular da presença da mutação causal da DMJ. A participação foi voluntária e todos os indivíduos deram o seu consentimento. Os dados foram recolhidos durante o ano de 2013, na Consulta Externa do Hospital do Divino Espírito Santo, E.P.E., e na Associação Atlântica de Apoio a Doentes de Machado-Joseph (Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, Açores). Os sujeitos foram divididos, de acordo com a ausência ou presença de sintomas, em 2 grupos: 1) portadores assintomáticos e 2) portadores sintomáticos. O estatuto de portador assintomático ou sintomático foi estabelecido mediante um exame realizado por um neurologista experiente.
ProcedimentoFoi utilizada uma entrevista semiestruturada, de carácter qualitativo, que contemplou informações de carácter demográfico e clínico (Gonzalez, Lima, Kay, Silva, Santos e Santos, 2004); Gonzalez et al., 2012). As escalas General Well Being Index ([PGWB] Dupuy, 1984) e Family Satisfaction Scale by Adjectives ([ESFA] Mairal e López-Yarto, 2003) foram utilizadas para avaliação dos níveis de bem-estar psicológico e satisfação familiar. Para medir a aceitação, foi utilizado o Questionário de Aceitação da Dor Crónica (Chronic Pain Acceptance Questionnaire [CPAQ], McCracken, Vowles e Eccleston, 2004; tradução e adaptação por Costa e Pinto-Gouveia, 2011). A escala original foi adaptada para esta amostra, a fim de ser aplicada aos 2 grupos de portadores: 1) assintomáticos (modificado em termos de aceitação do resultado de portador); e 2) sintomáticos (modificado em termos de aceitação dos sintomas/doença). Para avaliar os níveis de autocompaixão, foi utilizada a escala de autocompaixão (Self-Compassion Scale [SELFCS], Neff, 2003a; tradução e adaptação por Pinto-Gouveia e Castilho, 2006).
AnálisesO tratamento dos dados foi realizado com recurso ao software Statistical Package for Social Sciences ([SPSS] versão 15.0). A normalidade dos dados foi testada com o teste de Kolmogorov-Smirnov e, para o estabelecimento de correlações, usou-se o coeficiente de correlação de Spearman.
Todos os valores com probabilidade associada igual ou inferior a 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
ResultadosCaracterização da amostraA amostra incluiu um total de 40 sujeitos, 16 homens (40%) e 24 mulheres (60%), sendo a média de idades de 41,50 anos (DP=14,05). As características demográficas da amostra estudada constam da tabela 1.
Características gerais da amostra estudada
Género | |||
---|---|---|---|
Masculino (n=16) | Feminino (n=24) | Total (n=40) | |
Idadea | 48,75±16,33 | 36,58±9,95 | 41,50±14,05 |
Estado civil | |||
Solteiro | 17,50 (3) | 18,80 (4) | 17,50 (7) |
Casado | 60,00 (10) | 62,50 (14) | 60,00 (24) |
Divorciado | 22,50 (3) | 18,80 (6) | 22,50 (9) |
Naturalidade | |||
São Miguel | 100 (16) | 79,20 (19) | 87,50 (35) |
Flores | 0 | 16,70 (4) | 10,00 (4) |
Faial | 0 | 4,20 (1) | 2,50 (1) |
Situação profissional | |||
Activo | 25,00 (4) | 41,70 (10) | 35,00 (14) |
Desempregado | 0 | 16,70 (4) | 10,00 (4) |
Aposentado | 75,00 (12) | 37,50 (9) | 52,50 (21) |
NR | 0 | 4,20 (1) | 2,50 (1) |
NR: não respondeu.
Na amostra estudada, 27,50% dos indivíduos eram portadores assintomáticos e 72,50% apresentam sintomatologia; 57,50% dos sujeitos tinha realizado TP (teste preditivo). No grupo de doentes a média de idade de início dos sintomas foi de 33,03 anos (DP=11,27) (tabela 2).
Caracteristicas clínicas da amostra
Género | |||
---|---|---|---|
Masculino (n=16) | Feminino (n=24) | Total (n=40) | |
Idade de início dos sintomasa | 39,25±14,02 | 28,88±6,51 | 33,03±11,27 |
Sintomatologia | |||
Sem | 2,50 (2) | 37,70 (9) | 27,50 (11) |
Com | 87,50 (14) | 62,30 (15) | 72,50 (29) |
Teste molecular | |||
TP | 37,50 (6) | 70,80 (17) | 57,50 (23) |
TD | 62,50 (10) | 29,20 (7) | 42,50 (17) |
TD: teste diagnóstico; TP: teste preditivo.
Relativamente ao significado assumido pela doença, 36,40% dos portadores assintomáticos percecionavam-na enquanto «perda», mas uma percentagem idêntica considerou-a como «desafio» (36,40%). Todos os indivíduos deste grupo registaram alterações familiares depois de conhecido o resultado positivo do teste, sendo que 81,80% notou uma aproximação da família. À pergunta «Faria novamente o TP?», 72,70% responderam afirmativamente (tabela 3).
Impacto psicológico consoante o significado assumido pela doença
Sexo | Masculino (n=16) | Feminino (n=24) | Total (n=40) | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Sintomatologia | Ausente | Presente | Ausente | Presente | Ausente | Presente |
(n=2) | (n=14) | (n=9) | (n=15) | (n=11) | (n=29) | |
Representação da doença | ||||||
Hábito | 0 | 14,30 | 11,10 | 0 | 9,10 | 6,90 |
Perda | 0 | 50,00 | 44,40 | 73,30 | 36,40 | 62,10 |
Ameaça | 0 | 7,10 | 22,20 | 0 | 18,20 | 3,40 |
Revolta | 0 | 21,40 | 0 | 26,70 | 0 | 24,10 |
Desafio | 100 | 7,10 | 22,00 | 0 | 36,40 | 3,40 |
Alterações familiares | ||||||
Aproximação | 100 | 54,20 | 77,80 | 45,80 | 81,80 | 82,80 |
Afastamento | 0 | 20,00 | 22,20 | 80,00 | 18,20 | 17,20 |
Faria novamente o TM? | ||||||
Sim | 100 | 83,30 | 66,70 | 76,50 | 72,70 | 78,30 |
Não | 0 | 16,70 | 33,30 | 23,50 | 27,30 | 21,70 |
TM: teste molecular.
Relativamente ao grupo dos portadores assintomáticos observou-se que 54,50% apresentaram bem-estar psicológico, 36,40% apresentaram satisfação familiar muito elevada, 54,50 e 72,70% apresentaram níveis moderados de aceitação e de autocompaixão, respetivamente (tabela 4).
Impacto psicológico consoante a ausência ou presença de sintomatologia (em %): resultados dos instrumentos de avaliação psicológica
Género | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Masculino n=16 | Feminino n=24 | Total n=40 | ||||
Sintomatologia | Ausente n=2 | Presente n=14 | Ausente n=9 | Presente n=15 | Ausente n=11 | Presente n=29 |
PGWB | ||||||
Bem-estar psicológico | 100 | 28,60 | 44,40 | 13,30 | 54,50 | 20,70 |
Stress moderado | 0 | 21,40 | 22,20 | 26,70 | 18,20 | 24,10 |
Stress severo | 0 | 50,00 | 33,30 | 60,00 | 27,30 | 55,20 |
ESFA | ||||||
Muito baixa | 0 | 21,40 | 0 | 6,70 | 0 | 13,80 |
Baixa | 0 | 7,10 | 22,20 | 0 | 18,20 | 3,40 |
Média baixa | 0 | 21,40 | 33,30 | 60,00 | 27,30 | 41,40 |
Média elevada | 0 | 14,30 | 11,10 | 20,00 | 9,10 | 17,20 |
Elevada | 50,00 | 14,30 | 0 | 13,30 | 9,10 | 13,80 |
Muito elevada | 50,00 | 21,40 | 33,30 | 0 | 36,40 | 10,30 |
CPAQ | ||||||
Baixa | 0 | 64,30 | 11,10 | 66,70 | 9,10 | 65,50 |
Moderada | 0 | 35,70 | 66,70 | 33,30 | 54,50 | 34,50 |
Elevada | 100 | 0 | 22,20 | 0 | 36,40 | 0 |
SELFCS | ||||||
Baixa | 0 | 14,30 | 11,10 | 33,30 | 9,10 | 24,10 |
Moderada | 50,00 | 42,90 | 77,80 | 53,30 | 72,70 | 48,30 |
Elevada | 50,00 | 42,90 | 11,10 | 13,30 | 18,20 | 27,60 |
CPAQ: Chronic Pain Acceptance Questionnaire ou Questionário de Aceitação da Dor Crónica – modificado; ESFA: Family Satisfaction Scale by Adjectives; PGWB: General Well Being Index; SELFCS: Self-Compassion Scale ou Escala de Autocompaixão.
No grupo de indivíduos assintomáticos, a aceitação do resultado de portador associou-se significativamente com as escalas de satisfação familiar (ρ(10)=0,77; p=0,006) e bem-estar psicológico (ρ(10)=0,75; p=0,008). Verificou-se, igualmente, que a aceitação do resultado de portador se associou de forma positiva, moderada e significativa com a escala de autocompaixão (ρ(10)=0,65; p=0,030) (tabela 5).
Impacto psicológico da condição de portador sintomáticoRelativamente à representação da doença, 62,10% dos portadores sintomáticos percecionam-na em termos de perda. No que se refere a aspetos familiares, todos os indivíduos reconhecem a ocorrência de alterações familiares a partir da altura em que tiveram conhecimento da condição de portador, nomeadamente a perceção de maior aproximação e suporte familiar (82,80%). À pergunta «Faria novamente o teste molecular (TP ou TD)?», 78,30% responderam positivamente (tabela 3).
Verificou-se que 55,20% dos indivíduos sintomáticos reportou stress severo. No que respeita à dimensão satisfação familiar, 41,40% dos sujeitos reportou satisfação familiar média-baixa. Relativamente à aceitação dos sintomas da doença, 65,50% dos indivíduos reportou níveis baixos de aceitação. Quanto à variável autocompaixão, 48,30% reportou níveis moderados (tabela 4). Observa-se uma associação positiva e elevada entre aceitação da doença e a autocompaixão (ρ(28)=0,82; p<0,0005), bem como com a escala de bem-estar psicológico (ρ(28)=0,75; p=0,002). A associação entre a aceitação da doença e a variável satisfação familiar mostrou-se positiva, mas sem significância estatística (tabela 5).
DiscussãoA aceitação foi uma variável utilizada para efeitos de avaliação psicológica no estudo de González et al. (2004), mas que incidia na aceitação de realizar o TP e não na aceitação do seu resultado. Tal como no estudo de Gonzalez et al. (2012), o presente estudo propôs conhecer os níveis de bem-estar psicológico e de satisfação familiar dos portadores. Além disso, incluiu a variável aceitação, descrita na literatura enquanto decisiva na gestão de emoções dolorosas na presença de adversidades (Didonna, 2011), e a variável autocompaixão, por se tratar de um constructo de grande relevância no campo da regulação emocional (p.e., Leary et al., 2007), podendo representar uma porta de entrada para o incremento da aceitação. A presença de associações entre as variáveis descritas foi avaliada, partindo de uma amostra dividida consoante a ausência ou presença de sintomatologia.
A maioria dos sujeitos desta amostra apresenta sintomatologia. Foi verificado que a grande maioria dos sujeitos aceitaria realizar novamente o teste molecular, dado que permite inferir que, mesmo conhecendo o seu resultado desfavorável, a sua realização parece, globalmente, ser percecionada como um ganho, tornando assim possível conhecer o estatuto genético e, assim, facilitar o desenvolvimento de planos de vida (Gonzalez et al., 2004).
Nos portadores assintomáticos, foi verificada uma representação da doença em termos de perda, mas também de desafio. Já no caso dos portadores sintomáticos, estes percecionam a doença sobretudo enquanto perda, uma representação que está na base da sintomatologia depressiva. Este estudo também indica que é o grupo assintomático a apresentar níveis superiores de bem-estar psicológico e o grupo sintomático a apresentar maioritariamente stress severo, resultados que vão ao encontro com os obtidos em Gonzalez et al. (2012).
Além de se tratar de uma experiência individual, uma doença deste tipo é, também, uma vivência da família, pelo que não é raro assistir a alterações no seu seio, nomeadamente ao nível da sua estrutura, processos e na sua dimensão cognitivo-emocional (Góngora, 2004; Miller et al., 2006). Os resultados da medida objetiva de satisfação familiar revelaram, em média, níveis de satisfação familiar muito elevada para os portadores assintomáticos, e médios-baixos nos sintomáticos. Tendo em conta uma perspetiva de ciclo vital familiar e individual, parece-nos mais provável que se assista a um bloqueio ou disfunção evolutiva no grupo sintomático, patente numa diminuição da capacidade do sistema familiar em mudar de estrutura, regras e papéis em resposta à crise (Gonzalez et al., 2004). É cada vez mais reconhecido o impacto da dimensão relacional na saúde mental e física (Siegel cit in Surrey e Kramer cit in Germer et al., 2005). Apesar de os portadores sintomáticos reportarem uma diminuição nos seus níveis de satisfação familiar, verificou-se que, na sua grande maioria, ambos os grupos de portadores notaram uma maior aproximação, suporte e colaboração (Rolland, 1994) familiar depois de conhecido o resultado positivo no teste molecular.
O nosso estudo mostrou que o grupo assintomático apresenta uma aceitação mais elevada da sua condição de portador, parecendo adotar uma perspetiva mais ampla e flexível do problema. Por outro lado, os portadores sintomáticos indicam uma aceitação sobretudo baixa da doença. A literatura baseada numa nova geração de abordagens psicológicas tem sublinhado a importância da aceitação na alteração da relação que o indivíduo com a doença e sintomas associados, na medida em que promove a atribuição de um sentido mais positivo à experiência indesejada (p.e., McCracken e Vowles, 2008).
Concluímos, também, que o grupo assintomático é o mais autocompassivo, ao mostrar-se mais aberto ao próprio sofrimento, experienciando sentimentos de bondade e de não julgamento para com as suas imperfeições, e reconhecendo mais facilmente que a sua experiência é parte de uma experiência humana partilhada (Neff, 2003a). Por outro lado, o grupo sintomático apresenta níveis inferiores de autocompaixão, tendendo a apresentar uma atitude mais autocrítica, sentindo-se mais isolado no seu sofrimento e sobre-identificando-se mais com pensamentos e emoções dolorosas (Neff, 2003a).
Verificámos, inclusivamente, que quanto mais altos os níveis de aceitação da condição de portador assintomático, superiores são também os seus níveis de satisfação familiar, bem-estar psicológico e autocompaixão. No caso dos portadores sintomáticos, verificou-se que quanto mais altos os níveis de aceitação da doença, mais altos se revelam também os seus níveis de autocompaixão e de bem-estar psicológico. O facto de os portadores sintomáticos da nossa amostra não fazerem depender a aceitação da doença de uma elevada satisfação familiar, pode significar que atribuem maior relevo a outras variáveis, talvez mais individuais, como o bem-estar psicológico e a autocompaixão.
Os nossos resultados vêm também corroborar que a autocompaixão é uma atitude chave que se desenvolve à medida que a aceitação é trabalhada, podendo tratar-se de um processo mais ou menos moroso, tendo em conta que a predisposição para a autocompaixão depende em larga medida dos comportamentos parentais vinculativos e securizantes (Castilho e Pinto-Gouveia, 2011; Gilbert, 2005). Comportamentos de afeto, segurança e suporte transmitidos pelos cuidadores tornam a criança capaz de evocar memórias emocionais de afeto pelo Eu, ajudando-as a lidar mais positivamente com situações indutoras de stress no futuro (Gilbert, 2005, 2009). Tais experiências favorecem a plasticidade cerebral necessária para a regulação de emoções relacionadas com a ameaça e incentivo (Gilbert, 2009; Sapolsky, 1994; Bowlby, 1969, 1973, 1980). Transpondo para o caso da doença crónica de início tardio, consideramos que a família, bem como outros grupos de apoio social na comunidade, têm um papel fulcral no diálogo externo compassivo que vai estabelecendo com o portador, que é, de resto, indissociável de uma perceção de maior satisfação familiar por parte deste, bem como da sua capacidade para ser compassivo consigo próprio.
Estes resultados apontam para a pertinência em desenvolver a aceitação nos 2 grupos de portadores, através do desenvolvimento da autocompaixão enquanto porta de entrada. Gilbert (2005) refere que a compaixão do terapeuta e determinados exercícios (p.e., terapia focada na compaixão, Gilbert e Procter, 2006) poderão reativar o sistema de tranquilização. Gilbert e Procter (2006) sugerem que, ao desativar o sistema de ameaça (associado a sensação de vinculação insegura, mecanismos de defesa psicológicos e activação autonómica), e ativar o sistema de tranquilização e prestação de cuidados (associado a sensação de vinculação segura e ao sistema oxitocina-opiácio), promove competências de regulação emocional (Germer e Neff, 2013). Também o programa Mindful Self-Compassion (Neff e Germer, 2012) pretende desenvolver o recurso interno de autocompaixão, de tal forma que possamos lidar de uma forma mais segura e natural com as adversidades, integrando uma variedade de meditações e exercícios informais para utilizar no dia-a-dia. A prática de mindfulness é uma componente fundamental do programa, uma vez que amenizar o sofrimento implica reconhecê-lo (Germer e Neff, 2013).
Apesar de os nossos resultados apontarem para que a presença de sintomas parece um fator fundamental no bem-estar psicológico, satisfação familiar, aceitação e autocompaixão, sabe-se que a sobrecarga psicológica e familiar implicada nas doenças hereditárias genéticas de início tardio precede o início da doença propriamente dita (Sequeiros et al., 1998 cit in Zagalo-Cardoso e Rolim, 2005), daí nos parecer importante não apenas uma intervenção quando à sintomatologia existe, mas também um trabalho de prevenção, prévio ao aparecimento dos sintomas, preparando os indivíduos e famílias, através de uma abordagem integradora mindfulness e autocompassiva, cujo fim último será a promoção da aceitação (Hayes e Wilson, 2003).
Visto que a DMJ é uma doença genética atualmente sem cura e o seu tratamento é apenas sintomático, o objetivo último da intervenção psicológica com esta população passa por proporcionar-lhes uma melhor qualidade de vida. Assim, antecipando a possibilidade de dificuldades psicológicas, a minimização do impacto negativo do conhecimento da condição de portador poderá passar pelo desenvolvimento de intervenções psicológicas que incidam no incremento dos níveis de aceitação, com indivíduos portadores assintomáticos e sintomáticos e respetivas famílias e rede social.
Considerações finaisA um nível teórico, uma grande vantagem a destacar neste trabalho prende-se com a integração de sujeitos que se encontram em diferentes fases da doença, o que permitiu a adoção de uma visão mais rica acerca dos aspetos psicológicos com maior peso em cada uma das fases. Este estudo representou a primeira abordagem para compreender a DMJ, tendo em conta a aceitação, e foi tida a preocupação não apenas com o valor dos pressupostos concetuais, mas sobretudo com a sua potencial aplicabilidade no contexto desta doença, concretamente através de uma intervenção psicológica que integre o mindfulness e a autocompaixão. Seria pertinente avaliar a eficácia da mesma, bem como continuar a replicação do estudo das variáveis estudadas neste trabalho e nesta população clínica, noutras ilhas do arquipélago dos Açores.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.
Este trabalho contou com o apoio do Governo Regional dos Açores. Os autores gostariam, também, de agradecer à Associação Atlântica de Apoio a Doentes de Machado-Joseph, pela disponibilidade e simpatia que prestaram para este trabalho.