Caracterizar aspectos étnicos, econômicos e sociodemográficos das mulheres que acessaram o Serviço de Reprodução Assistida de um hospital universitário, encaminhadas pela atenção básica, e discutir as condições que fazem com que as usuárias adiem o tratamento ou desistam dele, com destaque no quesito raça/cor das usuárias.
MétodosEstudo transversal, em que a totalidade das usuárias que deram entrada no programa do Serviço de Reprodução Assistida de um hospital universitário, de janeiro de 2013 a março de 2014, foram entrevistadas presencialmente (145). Na segunda etapa do trabalho, em outubro e novembro de 2015, foi feito contato por telefone, com as mulheres que já haviam participado da primeira entrevista, com o intuito de compreender as dificuldades, o sucesso ou o insucesso do tratamento e as razões para a não permanência no programa.
ResultadosFoi observado que as mulheres pretas/pardas tiveram acesso e permaneceram no serviço, em proporções semelhantes às mulheres brancas, de acordo com a representatividade dessa raça/cor no Estado do Rio Grande do Sul. O estudo mostrou uma desistência de 35% antes mesmo do início do tratamento e um abandono de 30% durante o tratamento, o principal motivo foi de ordem financeira.
ConclusãoApesar do custo elevado dos medicamentos, existe fila de espera para o atendimento, embora, paradoxalmente, ocorra um número expressivo de desistências e abandonos do tratamento.
To characterize racial, economic and socio‐demographic aspects of women who accessed Assisted Reproduction Service at a university hospital, referred by primary care, and to discuss the conditions that cause the users to postpone or quit treatment, highlighting the item of user's race/color.
MethodsIt was performed a cross‐sectional study in which all of the users that entered the Assisted Reproduction Service program, from January 2013 to March 2014, were interviewed in person (145 women). In the second stage of the work, in October and November 2015, telephone contact was made with women who had participated in the first interview, in order to understand the difficulties, success or failure of treatment and the reasons for not persisting in the program.
ResultsIt was observed that the black women had access and remained in the service in proportions similar to white women, according to the representativity of this race/color in the state of Rio Grande do Sul The second stage showed abandonment of 35% even before the start of treatment, and 30% during the treatment, and financial issues being the main reason for quiting.
ConclusionDespite the high cost of medicines, there is a waiting list for the service, although, paradoxically, there is an expressive number of abandonment.
As tecnologias reprodutivas são opções para os casais inférteis que são impossibilitados de ter filhos biológicos naturalmente. Apesar de a primeira fertilização in vitro ter ocorrido em 1978 na Inglaterra, e essa tecnologia ter chegado ao Brasil em 1983, ainda existem barreiras para o seu acesso, principalmente para as populações de baixa renda.1 A infertilidade é uma situação carencial, mesmo que não ocorra o comprometimento da integridade física (e nem represente um risco vital), ela influencia negativamente na saúde psíquica, do casal e muitas vezes da própria família. Dessa forma, produz frustação e desmotivação, além de efeitos deletérios prolongados, e, por se tratar de um problema de saúde pública, deve ser enfrentado conjuntamente com outros problemas reprodutivos, como a contracepção, as doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), a gravidez e o parto.2
As tecnologias reprodutivas não são oferecidas pelo sistema público de saúde no Brasil e estão disponíveis apenas nos programas de hospitais universitários. Um estudo feito nos centros de reprodução assistida na Região Sudeste do Brasil demonstrou que os motivos mais comumente alegados pelos gestores para justificar a pouca oferta desse serviço foram tanto a inexistência de uma política decisiva para a sua implantação como a falta de recursos humanos e fontes de financiamento.1 Em outro estudo, em que foram avaliados cinco centros públicos de reprodução assistida no Brasil, em quatro deles as usuárias eram as responsáveis pelos custos da medicação e, em alguns casos, ainda deviam pagar uma taxa pelo uso dos equipamentos e realização dos procedimentos. As taxas e os valores cobrados são incompatíveis com a possibilidade econômica da maioria dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso indica que grande parte da população brasileira tem barreiras econômicas para acessar as tecnologias reprodutivas mesmo no âmbito do serviço público.3
Estudos demonstram que a infertilidade está presente em mulheres de todos os continentes e etnias.4–7 Em um serviço de reprodução assistida foram avaliadas as diferenças sociodemográficas e étnicas das usuárias e as mulheres negras apresentaram um maior período de infertilidade até chegar aos serviços, levaram mais tempo para acessar os tratamentos, quando comparadas com as mulheres brancas. Além disso, as negras e hispânicas apresentaram maior número de casos de infertilidade de origem tubária, em relação às mulheres brancas,5 o que também foi verificado em outro estudo.4 Em uma revisão sistemática sobre fatores étnicos e raciais, a taxa de nascidos vivos nas mulheres brancas foi maior, seguidas pelas asiáticas e hispânicas, a taxa foi menor entre as negras.7
No Brasil foi instituída a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) em 2007, uma resposta do Ministério da Saúde às desigualdades em saúde que acometem essa população e o reconhecimento de que as suas condições de vida resultam de injustos processos sociais, culturais e econômicos presentes na história do país.8 Segundo dados do Censo de 2010, a população do Brasil deixou de ser predominantemente branca (47,73%). Entretanto, no extremo sul do Brasil, no Estado do Rio Grande do Sul, a população de brancos continua a ser maioria, atinge 83,3%.9
É importante destacar a relevância da variável raça/cor nos sistemas de informações de saúde para o estudo do perfil epidemiológico dos diferentes grupos populacionais, pois as características que distinguem esses grupos podem subsidiar o planejamento de políticas públicas que levem em conta as necessidades específicas de cada um deles.10 Todavia, é recorrente a subnotificação da variável cor (quesito cor) na maioria dos sistemas de informação da área de saúde, o que tem dificultado uma análise mais consistente sobre a saúde da população negra no Brasil, inclusive a coleta de dados mais concretos sobre o racismo institucional. Em Porto Alegre, destaca‐se positivamente a Lei Municipal n° 8.470/2000, a qual estabelece a inclusão da etnia nos dados cadastrais da população.11
Desde o início dos anos 2000 se descreve mais nitidamente o perfil das desigualdades étnicas no acesso a serviços e a procedimentos em saúde; diferenciais de morbimortalidade em situações como mortalidade materna e infantil e a inobservância de doenças de maior incidência entre a população negra têm sido tratados como problema de saúde pública.12 Considerar as diferenças étnicas é fundamental para a criação de estratégias de intervenção que minimizem as iniquidades dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que esse tem por objetivo a universalidade, a integralidade e a equidade.
O objetivo deste trabalho foi caracterizar aspectos étnicos, econômicos e sociodemográficos das mulheres que acessaram o serviço de reprodução assistida, encaminhadas pela atenção básica, e discutir as condições que fazem com que as usuárias adiem ou desistam do tratamento, além de destacar as dificuldades ocorridas para o sucesso do tratamento para infertilidade, com análise da raça/cor das usuárias.
MetodologiaO Serviço de Reprodução Assistida desse hospital universitário de Porto Alegre/RS é referência estadual para as mulheres encaminhadas pelas unidades básicas da rede do Sistema Único de Saúde (SUS) e, por fazer parte de um programa próprio do hospital, é de responsabilidade das usuárias apenas a compra dos medicamentos indicados no tratamento. O programa dispõe de três tipos de tecnologia de reprodução assistida: inseminação intrauterina (IIU), fertilização in vitro (FIV) e injeção intracitoplasmática de espermatozoide (ICSI).13 Para fazer parte do programa, o casal deve comparecer a uma consulta de enfermagem, na qual são verificados os exames laboratoriais e explicadas detalhadamente todas as etapas do tratamento. São necessários os seguintes pré‐requisitos: a usuária deve ter até 35 anos no dia da primeira consulta de enfermagem; o casal deve estar ciente dos custos com os medicamentos; e a paciente (ou o casal) deverá concordar em fazer um curso preparatório antes do início do tratamento. O programa prevê o uso de três ciclos estrais para serem feitos os procedimentos da reprodução assistida (IIU, FIV e ICSI) e a usuária, uma vez dentro do programa, pode fazer três tentativas no momento em que desejar.
Adotou‐se uma abordagem metodológica quantitativa e qualitativa, definida como híbrida.14 Essa combinação assegura duas formas de comunicação diferenciadas, devem ambas convergir para a mesma meta, aproximar‐se, o máximo possível, da realidade que se propõem discutir. Os dados quantitativos foram analisados mediante o cálculo de distribuição de frequência e os dados qualitativos foram analisados por meio de categorização de discurso.
Na primeira etapa da pesquisa, fez‐se um estudo transversal em que a totalidade das usuárias que entraram no programa do Serviço de Reprodução Assistida, de janeiro de 2013 a março de 2014, foram entrevistadas presencialmente (145 mulheres). Em relação ao quesito raça/cor das usuárias, foram autodeclaradas 110 brancas, 34 pretas/pardas e uma indígena, que foi retirada da análise pela pequena representação. A coleta de dados ocorreu por meio de um instrumento de pesquisa estruturado, com questões que avaliavam o acesso ao serviço e caracterizavam as usuárias quanto às condições socioeconômicas, culturais, demográficas e étnicas.
Na segunda etapa do trabalho, que ocorreu entre outubro e novembro de 2015, foi feito contato por telefone, por meio de um roteiro semiestruturado, com as mulheres que haviam participado da primeira entrevista. Foi feita uma abordagem qualitativa com o intuito de compreender as dificuldades, o sucesso ou o insucesso do tratamento e as razões para não permanência no programa. Entretanto, foi possível apenas o contato com 40 das usuárias que participaram da primeira etapa do trabalho. Esse reduzido número foi por diferentes motivos, como troca de número de telefone ou não disposição de participar.
Respeitaram‐se os preceitos éticos, conforme as normas expressas na Resolução n° 496 de 2012 em relação à submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e uso do Termo de consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi aprovado pelo CEP do Hospital de Clínicas de Porto Alegre sob o número 23641.
ResultadosNa primeira etapa do estudo foram entrevistadas todas as 144 usuárias que entraram no programa de reprodução assistida no período analisado. Foi possível observar que a raça/cor predominante foi a branca, atingiu 76% das entrevistadas, versus 24% de pretas/pardas.
A figura 1 demonstra os locais de origem das usuárias, distribuídos pelas mesorregiões do Estado do Rio Grande do Sul, para ilustrar o deslocamento em busca de atendimento no Programa de Reprodução Assistida.
Conforme a figura 1, a maioria das mulheres pretas/pardas (82%) residia na Mesorregião Metropolitana do Estado do Rio Grande do Sul. Para as mulheres brancas, a concentração na Mesorregião Metropolitana foi de 75%. Neste estudo, 65% das mulheres declararam não ter dificuldade de acesso às consultas e ao tratamento no Serviço de Reprodução Assistida desse hospital. No entanto, para 35% das usuárias, as dificuldades relatadas foram relacionadas à distância das suas residências até o serviço e à falta de recursos financeiros, tanto para a compra dos medicamentos necessários para o tratamento quanto para o deslocamento.
Com relação à escolaridade, 56% das mulheres pretas/pardas e 45% das brancas apresentavam ensino médio completo ou superior incompleto. Enquanto 20% das mulheres brancas tinham ensino superior completo e/ou pós‐graduação, apenas 9% das mulheres pretas/pardas encontravam‐se nessa categoria. Por outro lado, as pretas/pardas apresentaram maior frequência no ensino fundamental incompleto do que as brancas (23% versus 17%).
No presente estudo, em relação à ocupação, a metade das pretas/pardas (53%) tinha trabalho fixo, 27% eram do lar e 21% autônomas. Quanto às mulheres brancas, 70% tinham trabalho fixo e apenas 16% e 12% eram do lar e autônomas, respectivamente. Destaca‐se também o fato de que quase um terço das mulheres pretas/pardas era do lar, enquanto apenas um sexto das brancas tinha a mesma ocupação.
Quanto à renda familiar, para as mulheres negras, 24% estavam na faixa acima dos três salários mínimos, já para as mulheres brancas, 39% estavam na faixa acima dos três salários mínimos. Com relação à religiosidade das usuárias, em sua maioria, eram católicas, porém com maior representação das mulheres brancas (65%) do que as pretas/pardas (56%). Apenas 2% das brancas e 6% das pretas/pardas eram de religiões de matriz africana.
A causa mais frequente de infertilidade, tanto para as mulheres pretas/pardas quanto para as brancas, foi a aderência/obstrução das trompas, com 44% e 41%, respectivamente. Outros impedimentos mais frequentemente encontrados foram infertilidade masculina e endometriose. A síndrome de ovários policísticos teve a frequência de 2% nas pretas/pardas e 9% nas brancas. A gravidez tubária também ocorreu em proporção bastante semelhante entre pretas/pardas e brancas.
A segunda etapa deste estudo evidenciou que, das 40 usuárias que foram entrevistadas pela segunda vez por telefone, nove eram negras (22,5%). As localidades de origem das 40 usuárias foram: 15 de Porto Alegre, 10da Região Metropolitana e 15 do interior do estado. Observou‐se a predominância de usuárias da capital e da Região Metropolitana (62,5%). A faixa etária das usuárias foi concentrada entre 31 e 35 anos (47,5%). Sobre o desfecho do tratamento para infertilidade feito pelas usuárias entrevistadas na segunda etapa da pesquisa, 14 das 40 não iniciaram o tratamento e, portanto, não fizeram qualquer tipo de biotecnologia reprodutiva (35%). Dessas, três usuárias eram pretas/pardas e 11 eram brancas; cinco viviam em Porto Alegre e nove no interior do estado; oito tinham o ensino médio completo (57%), uma com ensino superior incompleto e uma com pós‐graduação. Os motivos alegados pelas 14 usuárias que desistiram do tratamento mesmo antes do seu início foram: problemas de ordem financeira (50%); problemas de saúde na família (28,6%) e problemas na saúde da usuária (21,4%).
Das 40 usuárias, 26 efetivamente fizeram ao menos um ciclo de tratamento e sete engravidaram (27%). Foi possível observar que seis dessas sete, que gestaram, tinham ensino médio completo e uma o ensino fundamental incompleto; duas eram pretas/pardas e cinco brancas; três viviam em Porto Alegre e quatro no interior do estado (fig. 2).
Das 19 mulheres que fizeram alguma biotecnologia reprodutiva e que não engravidaram, três (9% das 40 usuárias) tentaram os três ciclos e não engravidaram e 16 (48,5% das 40 usuárias) adiaram ou desistiram de fazer as fertilizações, por diversos motivos. Dessas, 13 eram brancas e três, pretas/pardas. Os motivos alegados pelas 16 usuárias que adiaram ou desistiram do tratamento foram: dificuldades financeiras (37,5%); problemas de saúde reprodutiva incompatível com a fertilização (12,5%); esgotamento emocional (12,5%); problemas familiares como separação ou doença na família (6,2%) e outros sem especificação (31,2%).
No caso de uma usuária fazer as três tentativas de fertilização in vitro (três ciclos estrais com acompanhamento e fertilização) que o programa oferece e não obter sucesso, ela poderá novamente entrar no programa, encaminhada pela atenção básica, desde que não tenha mais de 35 anos. Três pacientes usaram suas três tentativas e não gestaram; eram todas do interior do estado. Os desfechos das 40 usuárias entrevistadas na segunda etapa da pesquisa estão sistematizados na figura 3.
DiscussãoNa primeira etapa do estudo, quando foram entrevistadas todas as usuárias que entraram no programa de reprodução assistida no período analisado, foi possível observar que a raça/cor predominante das mulheres atendidas foi a branca, 76% das mulheres entrevistadas, versus 24% de pretas/pardas. Essas proporções estão próximas das encontradas no Censo de 2010 para o Rio Grande do Sul, quando a população de mulheres brancas foi de 4.597.000 e a de mulheres pretas e pardas foi de 574.000, essas últimas equivalem a 12,5% do total no estado9. Percebe‐se que a entrada no programa de mulheres autodeclaradas pretas/pardas foi semelhante à frequência estadual.
Conforme a figura 1, a maioria das mulheres pretas/pardas (82%) residia na Mesorregião Metropolitana do Estado do Rio Grande do Sul. Para as mulheres brancas, a concentração na Mesorregião Metropolitana foi de 75%. Essa observação pode demonstrar uma dificuldade de acessar o serviço por mulheres que vivem em regiões mais distantes da capital. Independentemente da raça/cor, se verificou que o serviço atende em maior parte as usuárias que vivem mais próximas ao hospital, apesar de o programa ser referência para toda a atenção em saúde do estado.
Neste estudo, 35% das usuárias relataram dificuldades de acessar o programa devido à distância das suas residências e falta de recursos financeiros, tanto para a compra dos medicamentos necessários para o tratamento quanto para o deslocamento. Em uma revisão sobre os trabalhos apresentados na Conferência sobre Problemas Reprodutivos em Mulheres de Cor (tradução livre dos autores para Conference on Reproductive Problems in Women of Color), se destacou que a primeira barreira para o acesso de mulheres negras e hispânicas às tecnologias de reprodução assistida nos EUA é a de ordem financeira.13 Segundo esse estudo, há desvantagem dessas mulheres no acesso ao serviço, o que também foi verificado em outro estudo.15
De modo geral se observou, com relação à escolaridade das usuárias entrevistadas, que as brancas tiveram mais anos de estudo do que as negras, pois foi encontrado que as pretas/pardas apresentaram maior frequência no ensino fundamental incompleto do que as brancas (23% versus 17%). No Brasil, embora o cenário atual seja de redução das desigualdades sociais, ainda persistem padrões diferenciados de participação na educação e no mercado de trabalho, que afetam de forma específica as mulheres, em especial as negras. No quesito educação, as negras e hispânicas têm em média menos quatro anos de estudo, quando comparadas com as brancas.4
No presente estudo, em relação à ocupação, 27% das usuárias pretas/pardas eram do lar e 21% autônomas e as mulheres brancas 16% eram do lar e 12% autônomas. Esses números, mesmo analisados de forma descritiva, fazem refletir sobre as consequências da atual posição da mulher negra em nosso país. Em geral, os territórios brasileiros mais empobrecidos se relacionam com a distribuição de raça/cor das populações, implica que sejam os negros os que ocupam as posições menos qualificadas e menor remuneradas no mercado de trabalho. São os negros os que apresentam os níveis mais baixos de instrução, os que residem em áreas com menos serviços de infraestrutura básica e os que sofrem maior restrição no acesso aos serviços de saúde.8
Quanto à renda familiar, para as mulheres negras, 24% estavam na faixa acima dos três salários mínimos e para as mulheres brancas, 39% estavam nessa faixa salarial. Corroborando a desigualdade racial nas questões socioeconômicas, o presente estudo demonstrou a tendência de as mulheres brancas terem renda maior do que as pretas/pardas, quase a metade dessas recebia até dois salários mínimos como renda familiar. Um estudo populacional feito em uma cidade no sul do Brasil mostrou que à medida que ocorre o “escurecimento” da pele pioram as condições de acesso dessas mulheres ao mercado de trabalho, o que reflete diretamente nas condições socioeconômicas.16
Com relação à religiosidade das usuárias, em sua maioria eram católicas. O tema religião foi discutido em um estudo que demonstrou sua importância no enfrentamento da infertilidade.17 Entretanto, outros autores não encontraram associação entre a religião e a busca pelo tratamento para infertilidade, apesar de afirmarem que a maioria das religiões enfatiza a importância da paternidade e dos valores familiares. Isso sugere uma associação positiva entre religião e o uso do serviço de infertilidade.18
A causa mais frequente de infertilidade, tanto para as mulheres pretas/pardas quanto para as brancas, foi aderência/obstrução das trompas, com 44% e 41%, respectivamente. Pesquisas avaliaram que as negras e hispânicas apresentaram maior número de casos de infertilidade de origem tubária quando comparadas com as brancas.4,5 Nos países desenvolvidos, em função de fatores socioeconômicos, as mulheres tendem a se casar mais tarde e adiam a maternidade, apresentam, portanto, dificuldades para gestar de ordem primária. Nos países em desenvolvimento, ocorre o contrário: os casamentos se dão mais cedo, não há tanta preocupação em adiar a maternidade, o que facilita a contaminação com doenças sexualmente transmissíveis (DST). A maior causa de infertilidade nesses países é de ordem secundária, por infecções pélvicas sexualmente adquiridas, ou por inadequados cuidados em momentos de aborto ou puerpério.19 No presente estudo, os grupos de mulheres (brancas e pretas/pardas) não foram homogêneos em função do acesso naturalmente desigual pela maior proporção de mulheres brancas no estado. Em virtude disso, ocorreu a dificuldade de se encontrarem diferenças estatísticas.
A segunda etapa deste estudo evidenciou que das 40 usuárias entrevistadas cerca de um ano após a entrada no programa no período do estudo, nove eram negras (22,5%). Esse número é proporcional à população dessa etnia/cor no Estado do Rio Grande do Sul, novamente evidencia, como na primeira etapa do trabalho, um acesso igualitário ao serviço nesse quesito. As localidades de origem das 40 usuárias foram Porto Alegre e a Região Metropolitana (62,5%). Observou‐se a predominância de usuárias da capital e da Região Metropolitana. Embora esse serviço seja de referência estadual, é natural que as usuárias da capital e redondezas sejam as mais frequentes, pois esse serviço é para as usuárias do SUS, é, portanto, em sua maioria de baixa renda. Nesse caso, o serviço longe da cidade de origem é de grande impedimento para o acesso igualitário.
Com relação ao tipo de tratamento para infertilidade, 90% das mulheres fizeram ou fariam a fertilização in vitro (FIV). A FIV é muito usada, pois auxilia em muitos problemas reprodutivos, como a obstrução das trompas de falópio, a endometriose ou até mesmo alguns problemas relacionados com a infertilidade masculina, como, por exemplo, oligospermia.20 Além disso, a FIV é usada para a infertilidade idiopática e também quando há falha para responder a outros tratamentos. As técnicas de reprodução assistida (RA) têm se aperfeiçoado de modo notável em todo o mundo e após o primeiro nascimento, milhões de crianças nasceram pelas diferentes modalidades de FIV.21,22
Sobre o seguimento do tratamento para infertilidade feito pelas usuárias, 14 nem iniciaram o tratamento e não fizeram, portanto, algum tipo de biotecnologia reprodutiva (35% das 40 usuárias). Das 26 que iniciaram o tratamento, sete engravidaram (27%). Essa taxa atingiu a usualmente obtida no Programa de Reprodução Assistida deste hospital universitário, que gira em torno de 25%.23 Foi possível observar que seis das sete mulheres que engravidaram tinham ensino médio completo, duas eram pretas/pardas e cinco brancas; três viviam em Porto Alegre e quatro no interior do estado. São, portanto, bastantes distribuídas a etnia/cor das usuárias nos quesitos estudados.
Das 19 que iniciaram o tratamento e não engravidaram, 16 desistiram mesmo ainda não tendo usado as três tentativas de fertilização que o programa oferece, por diversos motivos, os de maior frequência foram dificuldades financeiras, mas também problemas de saúde e sofrimento emocional. Três fizeram as três tentativas do programa sem sucesso. Para os casais inférteis e suas famílias, a reprodução assistida não é um processo simples, pois pode envolver perdas e tristezas traumáticas, sentimentos de inadequação e inveja, além de um período quase sempre longo de interação com os médicos, que se tornam extremamente envolvidos na vida do casal.24 Em outro estudo, mulheres entrevistadas revelaram diversos sentimentos desencadeados pela decisão de fazer o tratamento para infertilidade, tais como: ansiedade, frustração, nervosismo, grande expectativa de gravidez, vontade desesperada de ter um filho e ter de lidar com a dor do marido e dos parentes.25
No entanto, pôde ser observado que os motivos para a desistência do tratamento para infertilidade foram, em sua maioria, de origem financeira, chegaram a 50% dos motivos de desistência para aquelas usuárias que nem iniciaram o tratamento e 37,5% para as que iniciaram e desistiram após um ou dois acompanhamentos de ciclos. A maioria da população brasileira não tem acesso a serviços de reprodução humana ou condições financeiras para arcar com os altos custos de medicação e procedimentos em reprodução assistida.26 Por muitos anos, restou a esses casais menos favorecidos aguardar em intermináveis filas de espera ou simplesmente aceitar sua condição e decidir‐se pela adoção. Em todos os serviços incluídos em um estudo (em que os pacientes precisavam pagar para o procedimento), uma estratégia comum para a redução de custos do tratamento foi fazer alguns procedimentos, como monitoramento por ultrassom ou testes laboratoriais, por meio de serviços ofertados pelo SUS. Outros custos, tais como as medicações usadas para o desenvolvimento folicular e, em alguns casos, anestesia e materiais descartáveis, foram cobrados diretamente dos pacientes.3 A infertilidade, embora não comprometa a integridade física, nem apresente um risco vital, pode influenciar negativamente o desenvolvimento psíquico da pessoa, do casal e muitas vezes da família, produzindo frustração e desmotivação que podem ter efeitos prolongados.2
No Brasil há raros serviços que dispõem do tratamento gratuito ou semigratuito para infertilidade e ainda assim a falta de recursos impossibilita a repetição de ciclos de fertilização por muitos casais. Na análise dos serviços públicos de reprodução humana foi observado que todos impunham algum tipo de limitação de acesso, como idade da mulher e seu estado conjugal, e foi visto nos serviços a discussão sobre a adoção de critérios ainda mais restritivos, como renda familiar e filhos de casamentos anteriores, com a justificativa de que não há disponibilidade de recursos para atender a todos.27
A escolaridade das mulheres entrevistadas mostra que o padrão socioeconômico não é compatível com o tratamento para infertilidade nem no setor privado nem no público, esse último devido ao custo dos medicamentos. Em geral as mulheres encaminhadas pelas Unidades Básicas de Saúde do Sistema Único de Saúde têm renda baixa, esse é o principal motivo observado para desistência dos tratamentos.
Considerações finaisO presente trabalho buscou conhecer o perfil de todas as usuárias de um programa de reprodução assistida, em um período de um ano, e discutir as condições que fazem com que as usuárias adiem o tratamento ou desistam dele, destacaram‐se as dificuldades ocorridas para o sucesso do tratamento para infertilidade, com ênfase no quesito raça/cor. O atendimento feito pelos profissionais deve considerar as especificidades étnicas, contribuir para aprimorar o acesso igualitário aos serviços de saúde. O preenchimento de tal quesito fornece importantes indicadores, não só para a formulação de políticas públicas voltadas para o melhor atendimento à saúde da população negra como para aprimorar os protocolos terapêuticos.
Foi observado tanto na primeira, quanto na segunda etapa do trabalho, que as mulheres pretas/pardas tiveram acesso e permaneceram no serviço, em proporções semelhantes às mulheres brancas, de acordo com a representatividade dessa raça/cor no Estado do Rio Grande do Sul. No entanto, o número de mulheres atendidas no primeiro período do estudo indica o quanto ainda é reduzido o acesso ao serviço gratuito para tratamento da infertilidade no Estado do Rio Grande do Sul e segunda etapa mostrou uma desistência de cerca da metade antes mesmo do início do tratamento e uma desistência de 30% durante o tratamento. Apesar do custo elevado dos medicamentos, há filas de espera para o atendimento, embora, paradoxalmente, ocorra um número expressivo de desistências e abandonos. Mesmo que a infertilidade venha sendo considerada por muitos autores como um problema de saúde pública, o SUS não cobre os custos das biotecnologias reprodutivas e da medicação, o que limita o acesso da população de baixa renda ao tratamento para infertilidade. As limitações do estudo foram em relação à dificuldade na localização das usuárias na etapa da entrevista não presencial. Algumas usuárias trocaram o número do telefone, outras optaram por não participar. O contato posterior com as usuárias é complexo em alguns casos, um fator importante para a falta de acompanhamento do tratamento. Com respeito à autodeclaração de raça/cor, muitas usuárias não tinham o costume de responder a essa pergunta ou nem sabiam como definir esta variável. A política do preenchimento do quesito raça/cor é uma estratégia recente nos serviços de saúde e ainda pouco usada e entendida pelos profissionais da área.
Como referido neste trabalho, embora as elaborações de novas políticas públicas tenham provocado impactos importantes na redução das desigualdades raciais (no que diz respeito ao acesso aos serviços de saúde pública), e ainda que a amostra pesquisada neste trabalho não tenha apontado uma diferença nos números de acesso por raça/cor, deve‐se atentar para a questão racial, uma vez que a equidade no atendimento é um dos princípios do Sistema Único de Saúde Brasileiro.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
À Pró‐Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul pelo auxílio ao projeto por meio das bolsas de iniciação científica.