O atendimento à vítima de violência sexual nos serviços de saúde tem priorizado o atendimento global e interdisciplinar nas diversas áreas para além das urgências médicas.
ObjetivoAmpliar o conhecimento acerca das experiências emocionais das pacientes atendidas em um serviço de referência em Caxias do Sul, Brasil, para o atendimento de vítimas de violência sexual e mulheres em situação de aborto previsto em lei.
MétodoForam avaliados 23 depoimentos escritos por meio de análise de conteúdo privilegiadas as categorias: motivo do atendimento, atendimento no serviço, relação com a equipe e papel da rede familiar e social. Do total, 14 depoimentos são das mulheres atendidas e nove dos parentes.
ResultadosConstataram‐se as potencialidades e destacou‐se a relação favorável das pacientes com a equipe cuidadora; e eventuais fragilidades nos protocolos de atendimento da equipe interdisciplinar responsável pelo serviço. Salientou‐se o contexto em que a paciente ingressa no serviço, ainda sob o impacto da violência e/ou do diagnóstico.
ConclusãoIniciativas interdisciplinares que estabeleçam mediações em tais situações são estimuladas para a adesão das pacientes aos protocolos de atendimento previstos nessa área.
The service for victims of sexual violence in health services has prioritized the global and interdisciplinary care in several areas beyond medical emergencies.
ObjectiveTo increase understanding on the emotional experiences of patients attended at a referral center in Caxias do Sul, Brazil for caring to victims of sexual violence and women undergoing abortion provided by law.
MethodIt was analyzed 23 testimonials written by content analysis concentrating on the categories: the reason for seeking treatment, the treatment in the care service, the relationship with the team and the role of family and social network after the event. Of the total, 14 are women and nine are from the family attended.
ResultsRealize the potential outcomes, highlighting the favorable ratio of patients with the caretaker staff and possible weaknesses in the protocols of the interdisciplinary care team responsible for the service, emphasizing the context in which the patient enters the service still under the impact of violence or diagnosis.
ConclusionInterdisciplinary initiatives that establish mediations in such situations are encouraged to adherence of patients to treatment protocols provided in this area.
A gravidez é um evento biológico natural permeado por conflitos situacionais e transitórios, os quais podem ser exacerbados pela condição da gestação com malformação fetal e/ou decorrente de violência sexual. Nesses casos, a gestante pode optar pelo abortamento. Sua decisão é amparada na legislação brasileira. O aborto previsto em lei é considerado como conduta não criminosa nos casos de aborto necessário (risco de vida materna) e aborto sentimental (violência sexual). Nos casos em que o feto apresente doenças comprovadamente incompatíveis com a vida e sob autorização judicial, determina‐se a antecipação terapêutica do parto (ATP).1
De acordo com o Decreto‐Lei n.° 2848, de 7 de dezembro de 1940, artigo 128, inciso II do Código Penal, o abortamento é permitido quando a gravidez resulta de estupro ou, por analogia, de outra forma de violência sexual. Constitui um direito da mulher, que tem garantido, pela Constituição e pelas Normas e Tratados Internacionais de Direitos Humanos, o direito à integral assistência médica e à plena garantia de sua saúde sexual e reprodutiva.1
Para atender a essas demandas, o Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Pravivis) tem como foco o atendimento às vítimas de violência sexual e às mulheres em situação de aborto legal. Faz um trabalho já reconhecido pela comunidade, cujos resultados têm sido divulgados em eventos regionais e nacionais. Atualmente, esse programa é referência para o Município de Caxias do Sul, para o Estado do Rio Grande do Sul e para o Ministério da Saúde.
O Pravivis atende vítimas pós‐violência sexual e recebe as solicitações de interrupção da gravidez amparadas legalmente com a parceria de outras áreas de atuação, a saber: Serviço Social, Psicologia, Enfermagem e Medicina (Ginecologia, Obstetrícia, Infectologia, Ultrassonografia e Anestesia). Os atendimentos e procedimentos de interrupção da gestação obedecem às normativas legais e éticas vigentes no país.2
Assim, o objetivo deste estudo é ampliar o conhecimento acerca das experiências emocionais das pacientes atendidas em um serviço de referência para o atendimento às vítimas de violência sexual e mulheres em situação de aborto previsto em lei.
MétodoForam analisados 23 depoimentos escritos por meio de análise de conteúdo com o propósito de sistematizar as informações obtidas e que, segundo Moraes (1999),3 têm como etapas primordiais a categorização, a descrição e a interpretação do material com que se trabalha. Privilegiaram‐se as seguintes categorias: o motivo do atendimento, o atendimento no serviço, a relação com a equipe e o papel da rede familiar e social após o evento.
O estudo se alinha com material usado no próprio serviço com o propósito de dar voz ao depoimento da paciente atendida. Por ser um relato espontâneo, nem todas as categorias escolhidas para análise são encontradas nas narrativas das pacientes. Não houve inserção de instrumento adicional de coleta de informações, considerando que o objetivo deste estudo é a análise do material já existente.
Por se tratar de monitoramento do serviço, a participação seguiu sem alterar a rotina dos atendimentos. Os relatos analisados são de mulheres que foram acolhidas por solicitação de aborto ou em casos de violência sexual e que, posteriormente, enviaram relatos por escrito. Alguns relatos contêm a narrativa de parentes que acompanharam as pacientes.
Dos depoimentos, sete correspondem aos das vítimas de violência sexual, cinco aos de aborto previsto em lei, dez aos casos de antecipação terapêutica do parto e um depoimento escrito cujo motivo da procura ao atendimento não foi explicitado pela paciente. Do total dos depoimentos, 14 são das mulheres atendidas e nove dos parentes.
Foi feita a análise de depoimentos datados de 2010 até 2012, seis de 2010, um de 2011, cinco de 2012 e 11 sem data explicitada. A coleta do material foi feita nas dependências do hospital onde o serviço é oferecido. Posteriormente, foi feita a entrega dos depoimentos por escrito e, numa sala de pesquisa da Universidade de Caxias do Sul, foram feitas a sistematização e a análise.
As pesquisadoras firmaram um Termo de Confidencialidade e Privacidade em que se comprometeram a manusear as informações somente com a finalidade científica.
Resultados e discussãoO Pravivis iniciou em setembro de 2001 o atendimento de vítimas de violência sexual, com enfoque na profilaxia das doenças sexualmente transmissíveis (DST) e da gravidez decorrente da violência, e, logo após, passou a receber grávidas no contexto da violência. O acolhimento também é prestado às grávidas com doenças que resultem em risco de morte e para gestantes de fetos com diagnóstico intrauterino de condição incompatível com a vida após o nascimento. Num segundo momento, o serviço de atendimento às pacientes vítimas de violência sexual se ampliou ao atendimento das mulheres em situação de aborto previsto em lei.2
Os relatos analisados são de mulheres que foram acolhidas por solicitação de aborto e que, posteriormente, enviaram relatos por escrito. As narrativas abordaram, principalmente, o período em que vivenciaram o diagnóstico da gravidez, os motivos para que não desejassem mantê‐la, a busca de atendimento médico, a maneira como foram acolhidas, o atendimento hospitalar, policial e no Ministério Público, seus relacionamentos com parentes e suas experiências físicas e emocionais.
Indiferentemente do motivo que gera a decisão da mulher de não manter a gravidez em questão, houve um período de tempo, geralmente longo, entre o diagnóstico e a chegada ao Pravivis. Uma gama de sensações e emoções acompanhou essas mulheres, que, geralmente, ao ter contato com a equipe do serviço, estavam sensibilizadas e fragilizadas.
Houve interesse da equipe em analisar se o acolhimento do serviço estava nivelado com as expectativas dessas mulheres. A análise epidemiológica das pacientes atendidas no serviço foi o de mulheres jovens, com baixa escolaridade, com idade gestacional média de 14 semanas e encaminhadas por outros serviços.2 Em estudo feito anteriormente no Pravivis, com perfil epidemiológico das vítimas, percebeu‐se a necessidade de um aprofundamento sobre as questões do abandono parcial ou total na adesão ao tratamento proposto pelo serviço (tabela 1).2
Síntese da análise de conteúdo dos depoimentos de mulheres vítimas de violência sexual ou com solicitação de aborto previsto em Lei, Caxias do Sul
Relatos | Motivo do atendimento | Atendimento no serviço | Relação com a equipe | Papel da rede familiar e social |
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23 depoimentos14 pacientes9 parentes(7 mães e 2 parceiros) | Sete casos: violência sexual.Cinco casos: aborto sentimentalDez casos: ATPUm caso: não especificado | Cinco casos: manifestações favoráveisTrês casos: manifestações desfavoráveisTrês casos: manifestação neutra | 12 Favoráveis1 Desfavorável1 Neutro | 9 relatos de parentes |
Os resultados constataram as potencialidades e eventuais fragilidades nos protocolos de atendimento da equipe interdisciplinar responsável pelo serviço. Entre as potencialidades, merece destaque a relação favorável das pacientes com a equipe cuidadora: acolhedora e continente das angústias daquele momento.
No relato 8, a fala da paciente traz os aspectos positivos quanto ao atendimento no serviço: “No primeiro dia eu não gostei, mas depois eu comecei a gostar [do atendimento]”. Em outro, relato 1, a paciente descreve o atendimento de maneira neutra: “[…] conversaram muito comigo, até para saber se eu estava ciente de toda a situação e se era isso mesmo que eu queria. Houve momentos de quase desistir, pois meu coração estava muito apertado, mas ao mesmo tempo tinha plena consciência de que não havia outro caminho possível”. No relato 2, a paciente narra sua experiência com relação à equipe: “Apesar de algumas pessoas não concordarem com o que fiz, em nenhum momento sofri qualquer tipo de recriminação ou hostilidade por parte da equipe”.
Quanto às fragilidades, salienta‐se o contexto em que a paciente ingressa no serviço, ainda sob o impacto da violência e/ou do diagnóstico, o que altera, de alguma maneira, o estabelecimento das relações interpessoais decisivas para uma adequada adesão ao serviço e ao tratamento.
Nesse sentido, o relato 4 mostra uma narrativa desfavorável ao atendimento: “Achei muito desagradável fazer tantos exames”. No que se refere ao papel da rede familiar e social, observa‐se o relato 10, com a fala do marido de uma paciente: “A [nome da paciente] teve todo o carinho da família”.
Os depoimentos das pacientes, em geral, fazem referência à equipe de saúde como acolhedora diante da situação. Esse fato se alinha com a posição de Drezett et al. (2012)4 ao enfatizar a indicação de equipe interdisciplinar capacitada a oferecer prevenção, tratamento e reabilitação nesse tipo de serviço. Por outro lado, segundo diversos autores, as representações frente ao abortamento legal refletem o despreparo dos profissionais de saúde para o acolhimento das demandas, o que gera necessidade de constante capacitação para o atendimento.5‐7
A relação com os parentes pode ficar complicada em alguns casos, quando não há aceitação deles da decisão da paciente, fato que, segundo Souza e Diniz (2011),8 possivelmente gera conflito dentro da família. Porém, em grande parte dos relatos analisados observa‐se o apoio da família, incluindo narrativas relacionadas ao atendimento e à equipe que acolheu a paciente. A fragilidade das vítimas na situação de violência sexual e de aborto legal é reforçada, pois ficam expostas às drogas, à depressão, à prostituição e ao aborto inseguro, importante causa de morbimortalidade.2,4,9,10
Entretanto, as limitações dos profissionais, que incluem questões jurídicas, religiosas, valores, bem como os sentimentos de culpa que a paciente traz consigo, como destaca Soares (2003),11 provavelmente agravam o vínculo entre a equipe e paciente e influenciam na adesão dela ao serviço oferecido.11
A percepção dos profissionais da saúde acerca do aborto legal deve ser entendida como direito da mulher, embora eles se encontrem numa situação desconfortável e incongruente com sua cultura de salvar vidas. Muitos convivem com o conflito entre o comprometimento com a assistência, a pressão externa e a influência religiosa frente à interrupção da gestação e consideram a rede de apoio familiar um importante suporte emocional para as vítimas.5,11
Este estudo atingiu os objetivos na medida em que agrega os depoimentos das pacientes diante de complexa situação, dá voz aos seus sentimentos e emoções por meio da escrita de suas experiências. A análise dos depoimentos permitiu reunir elementos para qualificar ainda mais o atendimento prestado no serviço, apontar suas qualidades e, também, suas fragilidades. Tais circunstâncias podem estar associadas às questões de adesão ou abandono das pacientes ao tratamento oferecido.
A violência sexual é percebida como uma grave violação dos direitos humanos e um problema de saúde pública, por ser universal e trazer graves danos psicológicos e físicos para as vítimas. Entende‐se a necessidade da manutenção e ampliação de campanhas de informação, que assegurem o máximo possível a disseminação da informação e orientação qualificadas sobre a pertinência do atendimento imediato a essas vítimas, a fim de que possam ser evitadas gestações indesejadas e possa ser reduzido o número de abortos, tanto legais quanto inseguros.
Destaca‐se também a necessidade de uma equipe inter e multidisciplinar capacitada a acolher, cuidar e atender de forma humanizada essas pacientes em situação de violência, aborto previsto em lei ou antecipação terapêutica do parto.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.